Já. Logo após escutar as doutrinas mais profundas, devem comportar-se como se uma brisa ligeira lhes houvesse acariciado os ouvidos, como se uma brisa deleitosa houvesse passado em um abrir e fechar de olhos. Não devem, de nenhuma maneira, tentar seguir tais doutrinas. Trabalhar de acordo com essas instruções é alcançar profundidade. A contemplação fixa dos Tathagatas entranha a mentalidade do Zen de alguém que deixou de lado a roda dos nascimentos e mortes para sempre. Desde os dias em que Bodhidharma não transmitiu outra coisa que a Mente Única, não houve outro Dharma válido. Assinalando a identidade da Mente e do Budha, mostrou como podem transcender para formas mais elevadas de Iluminação. Não resta dúvida alguma de que não deixou atrás de si outro pensamento senão este. Se desejar entrar usando nossa escola como entrada, este deve ser o único Dharma que a seguir.
Se pensas ganhar algo com mestres de outras doutrinas, por quais razões vens aqui? Assim é que se dizes que tens a mais leve intenção de entregar-se aos pensamentos conceituais, eis aqui que sua intenção mesma lhes tornará presa dos demônios. Do mesmo modo a consciente carência de tal propósito e inclusive a consciência de que não tens a carência de tal propósito, será suficiente para jogá-los ao poder dos demônios. Porém não serão demônios externos; serão demônios criados por suas mentes mesmas. A única realidade que existe é o “Bodhisatva” cuja existência é totalmente não-manifesta, inclusive no sentido espiritual: o Sem Rastro. Se alguma vez cheguem a crer em algo mais que a pura existência transitória dos fenômenos, terão caído no grave erro conhecido da crença herética na vida eterna; porém, se ao contrário, tomam a intrínseca vacuidade dos fenômenos como indicando a mera vacuidade, então terão caído em outro erro: a heresia da extinção total 88.
Assim, pois “o Mundo Triplo é tão somente Mente; as miríades de fenômenos são só Consciência” é o que se ensina a quem previamente sustentou idéias ainda mais falsas e sofreu erros de percepção89 ainda mais graves. De modo similar, o ensinamento de que o Dharmakaya 90 é algo que se alcança tão somente depois de realizar a completa Iluminação, tem somente por objeto converter os santos Theravadas, salvando-os de mais graves erros. Tendo achado o Buda Gautama, que estas opiniões predominavam, refutou duas classes de idéias mal entendidas: a noção de que a Iluminação conduz a uma percepção da substancia universal composta de partículas que alguns consideram grosseiras e outros sutis91.
Como é possível que Buda Gautama que negou toda opinião semelhante às mencionadas, pudesse haver originado as concepções presentes da Iluminação? Porém, como esses ensinamentos são ainda ensinados comumente, as pessoas se envolvem na dualidade de desejar a “luz” e de afastar a “escuridão”. Em sua ansiedade por buscar a Iluminação por um lado, e para escapar das paixões e da ignorância da existência corporal, por outro lado, concebem ao Buda Iluminado e aos seres sencientes não iluminados, como se fossem entidades separadas. A continua propensão de usar tais conceitos dualísticos os conduzirá a posteriores renascimentos nas seis ordens de seres, vida após vida, eras após eras, para sempre. E qual é a causa disso? A causa é a falsificação dos ensinamentos de que a fonte original dos Budas é a Natureza que existe por si mesma. Eu me permito assegurar-lhes que o Buda não reside na luz, nem os seres sensientes residem nas trevas, uma vez que a Verdade não permite tais distinções. O Buda não é poderoso, nem os seres sensientes são frágeis, pois a Verdade não dá lugar a tais distinções. O Buda não é iluminado nem os seres sensientes são ignorantes, pois a Verdade não permite distinções semelhantes. O que acontece é que vocês tomam ao seu cargo explicar o Zen!
Tão logo alguém abre a boca, surgem os desatinos. As pessoas, ou bem falam dos ramos e fazem caso omisso das raízes, ou bem se esquecem da realidade do mundo “ilusório” e falam somente da Iluminação. Ou, de outro modo, fofocam sobre as atividades cósmicas que conduzem às transformações, enquanto descuidam a substância, da qual se originaram; na verdade, jamais encontrarão proveito algum nessas discussões.
Digamos, pois, uma vez mais: todos os fenômenos carecem basicamente de substância própria, embora não possa dizer-se agora que sejam inexistentes: O carma produzido, nem por isso existe; o carma que se destruiu, nem por isso deixou de existir. Inclusive sua raiz carece de existência, pois tal raiz não é raiz. Além disso, a Mente não é Mente, já que, seja lá o que for o significado desse termo, está muito longe de ser a realidade que simboliza. A forma, igualmente, não é realmente forma, assim, pois se afirmo agora que não existem fenômenos e que não há Mente Original, começarão a compreender algo do Dharma intuitivo transmitido silenciosamente à Mente com a Mente. Posto que os fenômenos e os não fenômenos são uma mesma coisa, não há nem fenômenos nem não fenômenos e a única transmissão possível é a da Mente para a Mente.
Quando se verifica semelhante faísca de pensamento em sua mente e o reconhecem como um sonho ou uma ilusão, então podem entrar no estado alcançado pelos Budas do passado (não é que os Budas do passado existam realmente nem que os Budas do futuro não tenham vindo ainda à existência). Sobretudo, não tenham desejos de se converterem em um Buda; sua única motivação deve consistir, logo que um pensamento segue a outro pensamento, em evitar a se apegar a algum deles. E não devem abrigar a mais leve ambição de ser um Buda aqui e agora. Ainda que surgisse um Buda diante de vocês, não pensam nele como se fosse iluminado ou estivesse “alucinado”, como se fosse “bom” ou “mau”. Apressem-se a se livrarem do desejo de se apegarem a ele; isso os separará dele em um abrir e fechar de olhos. Não o agarrem de forma alguma. Não tentem detê-lo, pois nem milhares de fechaduras poderiam encerrá-lo, nem poderia ser atado com 10.000m de corda. Assim sendo, esforcem-se em afastá-lo e aniquilá-lo.
Agora esclarecerei com luz meridiana como deverão proceder para manterem-se livres desse Buda. Considerem a luz do Sol! Talvez digam que está próxima, no entanto, se a seguirem de mundo em mundo, nunca a colhereis em suas mãos. Então talvez a qualifiquem de longínqua; porém eis aqui que a estarão vendo diante de seus olhos. Sigam-na, e eis que se escapa de vocês; afastem-se e lhes alcançará em qualquer lugar. Não podem possuí-la nem terminar com ela. Desse exemplo podem deduzir o que acontece o que sucede com a verdadeira natureza de todas as coisas e, de hoje para diante, não terão necessidade de afligirem-se nem de se preocuparem com tais coisas.
Muito bem, precavenham-se de ir dizendo que minhas recomendações de suprimir o Buda é profana, ou que a comparação do Buda com o Sol foi piedosa, como se eu tivesse oscilado de um ao outro extremo. Os adeptos de outra escola ficarão então de acordo com vocês; porém a Escola do Zen não admitirá nem a profanação no primeiro caso nem a piedade no segundo. Nem consideraremos o primeiro caso como de acordo com os ensinamentos do Buda e o segundo como o que pode esperar-se de ignorantes seres sencientes 92.
Assim, pois todo o universo visível é o Buda, e igualmente o são todos os sons; unam todos a um único princípio e todos os demais serão idênticos. Ao ver algo, vê-se tudo. Quando se percebe uma mente individual, se percebe todas as Mentes. Logre um vislumbre de um caminho e todos os caminhos estarão compreendidos em sua visão, pois não há em nenhuma parte coisa alguma que se encontre privada do Caminho. Quando seu olhar cai em um grão de poeira, o que vês é idêntico a todos os vastos sistemas de mundos, a todos os rios, e a todas as montanhas. Contemplar uma gota d’água é contemplar a natureza de todas as águas do Universo. Além disso, ao contemplar assim a totalidade dos fenômenos, se contempla a totalidade da Mente. Todos os fenômenos são intrinsecamente vacuidade e, no entanto, esta Mente com a qual se identificam não é meramente o “nada”. Com isso quero dizer que existe; porém de um modo que é muito maravilhoso para que nós o compreendamos. É uma existência que não é existência; uma não-existência que não obstante é existência. Assim é que este verdadeiro vazio, de certo modo maravilhoso, “existe”93.
Segundo o que foi dito, nos é dado abarcar toda a vastidão dos universos, ainda que sejam tão inumeráveis como os grãos de areia, com nossa Mente Única. Então, por que falar de “interior” e “exterior”? Tendo o mel a invariável característica da doçura, segue-se que todo o mel é doce. Falar de mel como doce e do mel como amargo seria um disparate. Como poderia ser tal coisa? Daí dizermos que o Vazio não tem interior nem exterior. O único que existe é o espontaneamente criado Bhutatathata (Absoluto). E pela mesma razão dizemos que não tem centro. O único que existe é o espontaneamente existente Bhutatathata.
Assim, pois os seres sencientes são o Buda. O Buda é uno com eles. Ambos são constituídos inteiramente pela mesma “substância”. O universo fenomenal e o nirvana, a atividade e a imóvel placidez; todos são de uma e mesma “substância”. Igualmente acontece com os mundos e com o estado que transcende os mundos. Assim é; com os seres que passam pelos seis reinos da existência; os que experimentaram os quatro gêneros de nascimentos; todos os sistemas mundiais com suas montanhas e seus rios, a natureza de Bodhi e a da ilusão: todos eles são o mesmo. Ao dizer que todos estão constituídos pela mesma substância queremos dar a entender que seu nome e forma, sua existência e sua não existência são vazios. Os grandes sistemas de mundos, inumeráveis como as areias do Ganges, estão na realidade inseridos no vazio ilimitado único. Então, onde podem estar os Budas salvadores ou os seres sencientes a salvar? Quando a verdadeira natureza de todas as coisas que “existem”, é um “Tathata” (é o que é) idêntico, como vão ter realidade alguma tais distinções?
Se supuserem que os fenômenos se produzem por si mesmos, cairão na heresia de que as coisas têm uma existência própria e independente. Se, por outro lado, aceitam os ensinamentos de “anatma”, (sem eu) este conceito os levará a formar parte dos “Theravadas” 94.
Vocês tentam medir todo o vazio metro a metro, centímetro a centímetro, e eu lhes repito que todos os fenômenos carecem de distinções de forma. Intrinsecamente pertencem ao estado de perfeita tranqüilidade que se estende além da esfera das atividades produtoras das formas, de maneira que todas elas coexistem com o espaço e estão unidas com a realidade. Como não existem corpos que possuem forma verdadeira, falamos dos fenômenos como falaríamos do vazio; e, como a Mente carece de forma, falamos da natureza de todas as coisas como falaríamos do vazio. Ambos carecem de forma e ambos se denominam vazio. Além disso, nenhum dos numerosos ensinamentos tem existência fora de sua Mente Original. Todo esse perorar sobre Bodhi, do Nirvana, do Absoluto, da Natureza Búdica, do Mahayana, do Theravada e dos Bodhisatvas e dos demais é algo semelhante a tomar as folhas de outono por ouro. Usando o símbolo do punho fechado, quando se abre, todos os seres (tanto deuses como humanos) se darão conta que não há absolutamente nada dentro. Portanto, está escrito:
Nunca jamais existiu coisa alOnde poderá, então o pó se acumular? 95
Se “não existiu jamais coisa alguma”, o passado, o presente e o futuro não têm nenhum significado. Por esta razão aqueles que buscam o Caminho devem penetrar nele subitamente, como uma facada. A completa compreensão desse fato deve acontecer previamente. Então, embora Bodhidharma tenha atravessado muitos países em seu caminho da Índia à China, encontrou somente um homem, o Venerável Ko, a quem pode transmitir em silêncio o sacramento da Mente, o Sêlo de sua Mente verdadeira. Os fenômenos o Selo da Mente, do mesmo modo que esta é o Sêlo dos Fenômenos. Seja o que for a Mente, igualmente são os fenômenos: ambos são igualmente verdadeiros e participam igualmente da Natureza do Dharma, que pende no vazio. Quem quer que recebeu a intuição desta Verdade, se converteu em Buda e alcançou o Dharma. Não posso fazer por menos senão repetir que a Iluminação não pode agarrar-se, (alcançar, perceber, etc.) uma vez que o seu “corpo” não tem forma própria; nem tampouco mentalmente, pois a mente carece de forma; nem por sua natureza essencial, posto que tal natureza é a Fonte Original de onde ‘procedem’ todas as coisas, a Natureza verdadeira de tudo quanto existe, a Realidade permanente, o Buda mesmo. Como é possível usar o Buda para apoderar-se do Buda?, usar a carência de forma para apoderar-se da carência de forma, sujeitar a mente valendo-se da mente, o vazio por meio do vazio, valer-se do Caminho para apoderar-se do Caminho? Na realidade não há nada para agarrar (perceber, alcançar, conceber e etc.); nem sequer o não agarrar se pode agarrar. Assim é que se diz: “Nada existe para alcançar”. Nós ensinamos simplesmente como compreender a Mente Original.
Além disso, quando chega o momento da compreensão não pensem em termos de compreender, de não-compreender ou de nem compreender nem não-compreender, pois nenhum destes é algo que possa compreender-se. Este Dharma do Tathata, quando “se compreende”, “se compreende”, porém quem o “compreende” não tem mais consciência de havê-lo compreendido, e que o ignorante dele é consciente de sua incompreensão. Este Dharma do Tathata, agora são tão poucos os que chegaram a compreendê-lo, que está escrito: “Quão poucos são os que, vivendo neste mundo, não perdem a noção de seu próprio ser!” enquanto aqueles que procuram compreendê-lo mediante a aplicação de algum princípio especial ou mediante a criação de um ambiente particular, ou seguindo as Sagradas Escrituras, ou a uma doutrina, ou pela idade, ou com o tempo, ou mediante um nome ou palavra, ou por meio dos seis sentidos, em que se diferenciam de um boneco de madeira? Porém se impensadamente aparecesse um homem que não formasse conceito algum baseado em um nome ou em uma forma, posso assegurar que um tal homem poderia buscar-se, mundo após mundo, sempre em vão. A singularidade de sua existência lhe asseguraria a sucessão do patriarcado e conseguiria para ele a denominação de Filho Espiritual Verdadeiro de Sakyamuni: os agregados constituintes de seu ser haveriam se desvanecido e ele seria o Único Eleito. Por isso está escrito: “Quando o rei alcança o estado búdico, os príncipes abandonam seu lugar para fazerem-se monges”. É difícil de interpretar essa sentença. Seu objetivo é ensinar-nos a abster-nos de buscar o estado búdico, posto que toda busca está destinada ao fracasso. Um orador gritando em cima de uma montanha, ao ouvir o eco de sua voz, talvez vá buscar sua origem no fundo do vale. Porém eis aqui que sua busca será em vão. Quando se encontrar no vale, o mesmo eco atrairá sua busca ao cume. Assim, podem passar milhares de renascimentos ou dez mil eras empenhado em encontrar a origem de tais sons. Inutilmente afrontará as turbulentas águas da vida e da morte. Melhor seria não produzir som nenhum; pois então não haveria eco: assim acontece aos moradores do Nirvana: não escutam; não conhecem; não produzem sons; não deixam marcas nem rastro: façam vocês o mesmo e apenas assim estarão longe de serem vizinhos dos Bodhidharma.
Notas:
87. Absoluto
88. Como estamos compostos, na verdade, completamente pela Mente atemporal, a ideia de uma alma individual permanente e a de sua extinção total são igualmente falsas.
89. Na época de Huang Po havia uma seita chamada Wei Shih Tsung que sustentava que, embora nada existisse fora da consciência, esta última é em certo sentido uma substância e, por tanto “real”. Todavia existe.
90. O corpo do Absoluto.
91. Estas opiniões, que se dizem refutadas por Buda parecem ser similares à nova teoria científica de que a matéria do Universo é matéria mental. Essa teoria tem certa semelhança superficial com a doutrina de Huang Po: porém embora seja sem dúvida um avanço sobre a concepção materialista do século passado, se detêm muito antes da verdade tal como entende o zen.
92. Essa passagem toda é uma advertência contra um dos mais difíceis tipos de dualismo que deve ser evitado: o dualismo contido ao conceber o Buda ou Nirvana como separados de sí mesmos e do samsara. A tentativa de apagar o Buda não é mais impia que a tentativa de matar uma imagem de pedra, uma vez que ambos são impenetráveis a esse desígnio.
93. Esta passagem manifesta a perfeita identidade da calma sem igual do Nirvana com o inquieto fluir do universo fenomenal.
94. Anatma quer dizer: nenhum ente que se chame ego existe verdadeiramente a não ser a Mente Única, que compreende todas as coisas e lhes dá sua única verdadeira realidade.
ENSINAMENTOS ZEN DE HUANG PO
Compilação e tradução: John Blofeld
Tradução: Flávio Capllonch Cardoso, revisão: Márcia Pimenta Velloso