Materialismo Espiritual

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Estamos aqui para aprender um pouco sobre espiritualidade.

Eu confio na qualidade autêntica desta busca, mas é preciso questionar sua natureza. O problema é que o ego consegue transformar todas as coisas visando ao seu uso próprio, inclusive a espiritualidade. O ego está constantemente tentando adquirir e aplicar os ensinamentos da espiritualidade em benefício próprio. Os ensinamentos são tratados como uma coisa externa, externa a “mim”, uma filosofia que procuramos copiar. Na realidade, não desejamos identificar-nos com os ensinamentos ou vir a ser os ensinamentos. Assim, quando o nosso mestre fala em renúncia do ego, tentamos imitar essa renúncia. Cumprimos as formalidades, fazemos os gestos apropriados, mas na verdade, não queremos sacrificar parte alguma do nosso modo de vida. Tomamo-nos atores habilidosos e, ao mesmo tempo em que brincamos de surdos-mudos com o verdadeiro significado dos ensinamentos, encontramos algum conforto fingindo seguir o caminho.
Sempre que começamos a sentir qualquer discrepância ou conflito entre as nossas ações e os ensinamentos, imediatamente interpretamos a situação de modo a abrandar o conflito. O intérprete é o ego no seu papel de conselheiro espiritual. A situação se parece com a de um país em que Igreja e Estado sejam separados. Se a política do Estado estiver afastada dos ensinamentos da Igreja, a reação auto¬mática do rei é dirigir-se ao chefe da Igreja, seu conselheiro espiritual, e pedir-lhe a bênção. O chefe da Igreja arquiteta alguma justificativa e confere sua bênção à política, a pretexto de ser o rei o protetor da fé. Em nossa mente, as coisas se processam assim, muito bem arrumadas, sendo o ego, ao mesmo tempo, rei e chefe da Igreja.
Se for para se atingir a verdadeira espiritualidade, essa justificação do caminho espiritual e das nossas ações deve ser ultrapassada. Entretanto, não é fácil lidar com essa justificação porque todas as coisas são vistas através do filtro da filosofia e da lógica do ego, que faz com que tudo pareça arrumado, preciso e muito lógico. Para cada pergunta, tentamos encontrar uma resposta que se auto-justifique. A fim de nos tranqüilizar, procuramos adaptar ao nosso esquema intelectual todos os aspectos de nossa vida que possam trazer confusão. E o nosso esforço é tão sério e solene, tão direto e sincero que é difícil suspeitar dele. Confiamos sempre na “integridade” do nosso conselheiro espiritual.
Não importa o que possamos usar para chegar à auto-justificação: a sabedoria dos livros sagrados, diagramas ou mapas, cálculos matemáticos, fórmulas esotéricas, religião fundamentalista, psicologia profunda, ou qualquer outro mecanismo. Toda vez que nos pomos a fazer avaliações, decidindo se devemos ou não fazer isto ou aquilo, associaremos nossa prática ou nosso conhecimento a categorias contrapostas umas às outras, e isso é materialismo espiritual, a falsa espiritualidade do nosso conselheiro espiritual. Toda vez que temos uma noção dualística como, por exemplo: “Estou fazendo isto porque quero atingir um determinado estado de consciência, um determinado estado de ser”, automaticamente nos separamos da realidade do que somos.
Se perguntarmos a nós mesmos: “Que há de mau em avaliar, que há de mau em tomar partido?”, a resposta será que, quando formulamos um juízo secundário: “Eu devia estar fazendo isto e devia evitar fazer aquilo”, estamos atingindo um nível de complicação que nos faz enveredar por um longo caminho, afastando-nos da simplicidade básica do que somos. A simplicidade da meditação significa apenas vivenciar o instinto simiesco do ego. Se alguém além disso é superposto à nossa psicologia, ela se torna uma máscara muito pesada e espessa, uma armadura.
É importante notar que o aspecto principal de qualquer prática espiritual é deixar para trás a burocracia do ego, isto é, deixar para trás o constante desejo do ego de adquirir uma versão mais elevada, mais espiritual, mais transcendental do conhecimento, da religião, da virtude, do julgamento, do conforto ou de qualquer particularidade que um determinado ego esteja procurando. Precisamos deixar para trás o materialismo espiritual. Se não pusermos de lado o materialismo espiritual, se, na verdade, o praticarmos, poderemos, posteriormente, surpreender-nos na posse de uma imensa coleção de caminhos espirituais. Podemos pensar que esse aglomerado espiritual é muito precioso. Estudamos muito. Talvez tenhamos estudado filosofia ocidental ou filosofia oriental, praticado ioga ou estudado sob a orientação de dúzias de grandes mestres. Conseguimos realizações e adquirimos conhecimentos. Acreditamos ter acumulado um arsenal de conhecimentos. E, no entanto, depois de passar por tudo isso, ainda nos resta abrir mão de alguma coisa. Isso é extremamente misterioso: Como pôde acontecer algo assim? Impossível! Mas, infelizmente, é assim mesmo. Os nossos vastos conjuntos de conhecimentos e experiências são apenas parte da exibição do ego, parte da característica aparatosa do ego. Nós as exibimos ao mundo e, ao fazê-lo, reasseguramo-nos de que existimos, sãos e salvos, como pessoas “espirituais”.
Teremos, porém, apenas criado uma loja, uma loja de antiguidades. Poderemos estar nos especializando em antiguidades orientais ou antiguidades cristãs medievais, ou em antiguidades de uma outra civilização ou de um outro tempo, mas estamos, todavia, gerenciando uma loja. Antes de a enchermos de tantas coisas, a sala era bonita: paredes caiadas de branco, soalho bem simples e uma lâmpada bri¬lhante acesa no teto. No meio da sala havia um belo objeto de arte. Todas as pessoas que chegavam apreciavam sua beleza, inclusive nós mesmos.
Mas não estávamos satisfeitos e pensamos: “Já que este único objeto embeleza tanto a minha sala, se eu conseguir outras antiguidades, minha sala ficará ainda mais bonita”. Assim, pusemo-nos a colecionar, e o resultado fina! Foi o caos.
Percorremos o mundo inteiro à cata de belos objetos – a Índia, o Japão, vários países. E sempre que encontrávamos uma antiguidade, como estávamos lidando apenas com um objeto de cada vez, víamos sua beleza e pensávamos como ficaria bonito em nossa loja. Mas quando levamos o objeto para casa e o colocamos na sala, ele se tomou apenas mais um acréscimo a nossa coleção de quinquilharias. A beleza do objeto já não se irradiava, pois estava cercado de outras tantas coisas bonitas. O objeto já não tinha significado algum. Em lugar de uma sala cheia de belas antiguidades, estávamos criando uma loja de entulhos!
Comprar adequadamente não implica acúmulo de uma grande quantidade de informações ou de coisas bonitas, mas requer uma apreciação plena de cada objeto individualmente. Isto é muito importante. Quando apreciamos de fato um belo objeto, indentificamo-nos completamente com ele e esquecemo-nos de nós mesmos. É como assistir a um filme muito interessante, fascinante, e esquecermo-nos de que somos o público. Naquele momento, o mundo deixa de existir; todo o nosso ser é aquela cena daquele filme. É a esse tipo de identificação que aludimos, o completo envolvimento com uma coisa. Será que efetivamente saboreamos, mastigamos e engolimos, de forma adequada, aquele objeto de arte, aquele ensinamento espiritual? Ou nos limitamos a considerá-Io como parte de nossa vasta a crescente coleção?
Coloco tanta ênfase sobre esse ponto porque sei que todos nós chegamos aos ensinamentos e à prática da meditação não para ganhar bastante dinheiro, mas porque tínhamos um desejo autêntico de aprender, de desenvolver-nos. Se, porém, consideramos o conhecimento como uma antigüidade, como “sabedoria secular” a ser colecionada, estamos no caminho errado.
No que diz respeito à linhagem dos mestres, o conhecimento não se transmite como uma antigüidade. Ao contrário, um mestre vivencia a verdade dos ensinamentos e a transmite como uma inspiração ao seu aluno. Essa inspiração desperta o aluno, tal como seu mestre foi despertado antes dele. Em seguida, o aluno passa os ensinamentos a outro estudante, e assim segue o processo. Os ensinamentos estão sempre atualizados. Não são “sabedoria secular”, uma lenda antiga. Não passam de uma pessoa a outra como informações, não se transmitem como as histórias populares tradicionais que um avô conta a seus netos. Não é assim que as coisas funcionam. Trata-se de uma experiência real.
Há um dito nas escrituras tibetanas: “O conhecimento precisa ser aquecido, malhado e batido como o ouro puro. Só depois podere¬mos usá-la como um ornamento”. Portanto, quando você recebe instrução espiritual das mãos de outra pessoa, não a aceite sem espírito crítico, mas a aqueça, malhe e golpeie até que apareça a cor brilhante e nobre de ouro. Então, você faça dela um ornamento, dando-lhe o desenho que desejar, e passe a usá-la. Dessa forma, o dharma se aplica a todas as épocas, a todas as pessoas; possui urna qualidade viva. Não nos basta imitar o mestre ou guru; não estamos tentando nos transformar em uma réplica do nosso instrutor. Os ensinamentos constituem uma experiência pessoal de cada um, até chegar ao detentor atual da doutrina.
É possível que muitos dos meus leitores estejam familiarizados com as histórias de Naropa, Tilopa, Marpa, Milarepa, Gampopa e outros mestres da linhagem Kagyü. Foi uma experiência viva para eles e é viva a experiência dos atuais detentores da linhagem. Apenas os pormenores das situações de vida é que são diferentes. Os ensina¬mentos têm a qualidade do pão quente, recém-saído do fomo; o pão ainda se conserva quente e fresco. Cada padeiro precisa aplicar os conhecimentos gerais de como fazer pão ao seu próprio amassar e enfornar. A seguir, precisa experimentar pessoalmente o pão fresco, cortá-lo enquanto fresco e comê-lo enquanto quente. Precisa tomar seus os ensinamentos e, depois, praticá-los. Este é um processo muito vivo. Não há engano algum em termos de coletar conhecimentos. Temos de trabalhar com nossas próprias experiências. Quando ficamos confusos, não podemos nos voltar para a nossa coleção de conhecimentos e tentar encontrar alguma confirmação ou consolo: “O mestre e todos os ensinamentos estão do meu lado”. O caminho espiritual não segue por esse rumo. É um caminho solitário, individual.

P: O senhor acha que o materialismo espiritual é um problema particularmente americano?
R: Toda vez que os ensinamentos chegam do exterior a um país, intensifica-se o problema do materialismo espiritual. Neste momento sem dúvida nenhuma, os Estados Unidos são um solo fértil e preparado para receber os ensinamentos. E por ser tão fértil e estar à procura da espiritualidade, os Estados Unidos têm a possibilidade de encorajar charlatães. Os charlatães não decidiriam ser charlatães se não se sentissem motivados a tanto. Não fosse assim, seriam assaltantes de bancos ou bandidos, já que desejam ganhar dinheiro e ficar famosos. E como os Estados Unidos estão buscando a espiritualidade com tanto empenho, a religião toma-se um modo fácil de ganhar dinheiro e conquistar fama. Nessas circunstâncias, vemos charlatães no papel de estudante, chela, assim como no papel de guru. Acho que os Estados Unidos, neste momento atual, oferecem um solo interessantíssimo.

P: O senhor aceitou algum mestre espiritual como guru, algum mestre espiritual vivo em especial?
R: Neste momento, não tenho nenhum. Fisicamente, deixei meus gurus e mestres para trás, no Tibet, mas os ensinamentos permanecem comigo e continuam.

P: Então, quem é que o senhor está mais ou menos seguindo?
R: As situações são a voz do meu guru, a presença do meu guru.

P: Depois que o Buda Shakyamuni alcançou a iluminação, permaneceu nele algum vestígio do ego, de modo que ele pudesse prosseguir nos seus ensinamentos?
R: Os ensinamentos simplesmente aconteceram. Ele não tinha o desejo de ensinar nem de não ensinar. Ele passou sete semanas sentado à sombra de uma árvore e caminhando ao longo de um rio. Então, ocorreu que alguém apareceu por ali e ele começou a falar. Não há escolha. Você está ali, uma pessoa aberta. Então, a situação se apresenta e o ensinamento acontece. É o que se chama “atividade búdica”.

P: É difícil não ser aquisitivo, com relação à espiritualidade. O desejo de adquirir é uma coisa de que nos desfazemos ao longo do caminho?
R: Você deve deixar que o primeiro impulso se esvazie. O seu primeiro impulso em direção à espiritualidade poderá colocá-lo em um cenário espiritual específico; mas se você trabalhar com esse impulso, pouco a pouco ele se extingue e, num determinado ponto, se torna tedioso, monótono. Esta mensagem é muito útil. Veja bem, é essencial relacionar-se consigo mesmo, com sua própria experiência, efetivamente. Quando não nos relacionamos conosco, o caminho espiritual toma-se perigoso, passa a ser mais um entretenimento puramente externo do que uma experiência pessoal, orgânica.

P: Se decidirmos procurar uma saída para a ignorância, podemos supor quase com certeza, que tudo o que fizermos e que nos de prazer será benéfico ao ego e estará, na verdade, bloqueando o caminho. Qualquer coisa que parece certa está errada; tudo que não nos virar de cabeça para baixo acabará por enterrar-nos. Existe alguma saída para isto?
R: Se você executa um ato que seja aparentemente certo, isso não quer dizer que ele seja errado, pela simples razão de que errado e certo estão fora deste contexto. Você não está trabalhando de nenhum lado, nem do lado “bom”, nem do lado “mau”, mas sim com a totalidade do conjunto, para além de “isso” e “aquilo”. Eu diria que há uma ação completa. Não existe ato parcial, embora tudo que façamos relacionado com bom e mau pareça um ato parcial.

P: Quando nos sentimos muito confusos e procuramos nos desvencilhar e sair da confusão, pode parecer que estamos nos esforçando demais. Mas se não fizermos nenhuma tentativa, devemos então entender que estamos nos iludindo?
R: Sim, mas isso não significa que temos de viver nos extremos, esforçando-nos muito ou não fazendo tentativa alguma. Precisamos trabalhar com uma espécie de “caminho do meio”, um estado completo de “sermos como somos”. Poderíamos descrevê-lo com uma porção de palavras, mas temos realmente que passar por ele. Se você começa, de fato, a viver o caminho do meio, então irá enxergá-lo, irá encontrá-lo. Você precisa permitir-se confiar em si próprio, confiar em sua própria inteligência. Somos pessoas incríveis, temos coisas incríveis dentro de nós. Temos simplesmente que nos deixar ser. Auxílio externo não pode oferecer ajuda. Se você não está disposto a se permitir crescer, então cairá no processo autodestrutivo da confusão. Aqui temos autodestruição ao invés de destruição por outra pessoa. Eis por que isso é eficaz: porque é autodestruição.

P: O que é a fé? Ela é útil?
R: A fé pode ser simplista, confiante e cega, ou pode ser uma con¬fiança definitiva que não pode ser destruída. A fé cega é destituída de inspiração; é muito ingênua. Não é criativa, embora não seja exatamente destrutiva. Não é criativa porque entre sua fé e você mesmo nunca se estabeleceu nenhuma conexão, nenhuma comuni¬cação. Você apenas aceitou, cegamente, toda a crença, muito ingenuamente.
No caso da fé como confiança, existe uma razão viva para você ser confiante. Você não espera que uma solução pré-fabricada lhe seja misteriosamente apresentada. Você trabalha com as situações existentes, sem medo, sem qualquer dúvida de envolver-se ou não. Essa atitude é sumamente criativa e positiva. Se sua confiança é definitiva, você está tão seguro de si que não tem que se fiscalizar. Trata-se de confiança absoluta, uma verdadeira compreensão do que está acontecendo agora. Portanto, você não hesita em seguir outros caminhos nem em tomar a atitude necessária frente a cada nova situação.

P: O que é que o guia no caminho?
R: Na realidade, não parece haver nenhum guia em particular. De fato, se alguém estiver nos guiando, isso é suspeito, porque estaremos nos amparando em algo externo. Ser plenamente o que somos em nós mesmos passa a ser o guia, mas não no sentido de vanguarda, porque não há um guia para seguir. Não precisamos seguir os passos de ninguém, mas apenas seguir livremente. Em outras palavras, o guia não caminha à nossa frente, mas ao nosso lado.

P: O senhor poderia dizer mais alguma coisa sobre como a meditação provoca um curto-circuito nos mecanismos protetores do ego?
R: O mecanismo protetor do ego implica você se fiscalizar, o que é uma forma desnecessária de auto-observação. A base da meditação não está no fato de meditar sobre determinado assunto por meio de uma auto-fiscalização; mas a meditação significa uma completa identificação com as técnicas que você estiver empregando. Desse modo, na prática da meditação, não há esforço algum para buscar segurança.

P: Parece que estou vivendo num ferro-velho espiritual. Como posso transformá-lo numa sala simples com apenas um objeto bonito?
R: A fim de desenvolver a capacidade de apreciar sua coleção, você tem que começar com um único objeto. É preciso encontrar uma entrada, uma fonte de inspiração. Talvez não seja preciso passar pelo resto dos objetos da sua coleção se você estudar apenas uma peça. Esse único objeto poderia ser uma placa que você conseguiu furtar em Nova York; poderá ser tão insignificante quanto isso. Mas precisamos começar com uma coisa, enxergar sua simplicidade, a qualidade tosca deste traste velho, ou desta bela peça de antiguidade. Se conseguíssemos começar apenas com uma coisa, isso equivaleria a ter um único objeto numa sala vazia. Creio que é uma questão de encontrar uma entrada. Por termos tantos bens em nossa coleção, o problema, em grande parte, é que não sabemos por onde começar. Você tem que permitir que seu instinto determine qual será a primeira coisa que irá apanhar.

P: Por que o senhor acha que as pessoas protegem tanto o ego delas? Por que é tão difícil abrir mão do nosso ego?
R: As pessoas têm medo do vazio do espaço, da ausência de companhia, da ausência de uma sombra. Poderia ser uma experiência apavorante não ter ninguém nem nada com quem se relacionar. A idéia disso pode ser extremamente assustadora, se bem que a experiência real não o seja. Trata-se, geralmente, de um medo de espaço, de um medo de não sermos capazes de nos ancorarmos em um solo firme, de perdermos nossa identidade como uma coisa fixa, sólida e definida. Isto pode ser muito ameaçador.

ALÉM DO MATERIALISMO ESPIRITUAL – Chögyam Trungpa

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