A base de apoio



A base de apoio

Texto de Charlotte Joko Beck, extraído do livro”Nada Especial

Na vida cotidiana estamos munidos do que podemos chamar de uma base de apoio imaginária: é elétrica e nos arremessa para cima toda vez que temos pela frente algo que nos parece um problema. Podemos imaginar que tem milhões de pontos de saída, todos ao nosso alcance. Toda vez que nos sentimos ameaçados ou aborrecidos, acionamos esse dispositivo e reagimos à situação. Essa base de apoio representa nossa decisão fundamental a respeito do que temos de ser para sobreviver e obter da vida aquilo que queremos. Ainda quando éramos crianças descobrimos que a vida não era sempre do jeito que queríamos que fosse e que as coisas muitas vezes davam errado, do nosso ponto de vista pessoal. Não queríamos que ninguém nos contrariasse, não queríamos vivenciar coisas desagradáveis e, assim, criamos uma reação defensiva para bloquear a possível infelicidade. Essa reação defensiva é nossa base de apoio. Estamos ligados nela, mas damos-lhe uma atenção especial em períodos de estresse e ameaça. Tomamos uma decisão a respeito da vida cotidiana – a vida como ela é realmente: ela é inaceitável. E tentamos nos contrapor ao que está acontecendo.

Tudo isso é inevitável. Nossos pais não foram seres perfeitamente iluminados, nem bodas, mas outros seres e circunstâncias também contribuíram. Quando éramos crianças pequenas, não tínhamos suficiente maturidade para nos haver com eles de maneira sábia. Por isso acionávamos nossa base de apoio e tínhamos acessos de birra, fazíamos escândalos, talvez ficávamos retraídos. Dessa época em diante, a vida não foi mais vivida pelo prazer de se estar vivo, mas para assegurar nossa base de apoio. Parece bobagem, porém é isso que fazemos.
Assim que a base de apoio estiver construída, sempre que algo desagradável nos atingir – mesmo que seja só um olhar um pouco atravessado de alguém -, nós acionaremos essa base. Ela pode conter um número infinito de tomadas de acionamento e, durante o dia, podemos acioná-la infinitas vezes. Como resultado, desenvolvemos uma visão muito estranha da nossa vida. Por exemplo, suponhamos que Gloria falou comigo com muita arrogância. Os fatos em si são ela ter dito uma coisa para mim. Ela e eu podemos ter uma pequena discussão para resolver, mas a verdade da questão é que ela simplesmente disse algo. Na hora, no entanto, sinto-me separada de Gloria. No que me diz respeito, tem algo de errado com ela. “Afinal de contas, veja só o que ela fez! Ela realmente é uma pessoa desagradável!” Agora estou com raiva dela. A verdade, porém, é que minha diferença não é com Gloria; ela não tem nada que ver com isso. Embora seja verdade que ela tenha dito algo, meu aborrecimento não vem dela, mas de ter acionado minha base de apoio. Vivencio essa base como uma espécie de tensão, que é desagradável. Não quero ter nada que ver com essa sensação, então entro em guerra com Gloria. Todavia é a minha base de apoio que está causando” meu incômodo.

Se o incidente for banal, num tempo relativamente curto eu “terei esquecido e acionarei minha base de apoio a respeito de alguma outra coisa. Se o incidente for significativo, no entanto, posso tomar um curso drástico de ação. Lembro-me de um amigo da família, durante a Grande Depressão, que foi despedido do emprego em que se havia mantido por quarenta anos. Correu para o telhado, atirou-se e assim se matou. Ele não entendia sua vida. Algo tinha ocorrido, é verdade, mas não era caso para suicídio. Ele estava com sua base de apoio funcionando a todo vapore seu sofrimento era tão intenso que não conseguiu suportá-lo.

Sempre que algo representativo acontece em nossa vida, levamos um intenso choque de nossa base de apoio. Não sabemos o que fazer com esse choque. Embora tenha vindo de dentro de nós, pensamos que vem de fora, “de lá”. Alguém ou algo nos tratou muito mal. Somos vítimas. Com Gloria, me parece óbvio: o problema é Gloria. “Quem mais poderia ser? Ninguém mais me insultou hoje. Tem de ser ela.- Para revidar, começo a planejar: “Como posso dar-lhe o troco? Talvez eu não fale com ela nunca mais. Se ela vai ficar fazendo isso, eu não quero que ela seja mais minha amiga. Já tenho problemas suficientes. Não preciso de Gloria”. Na realidade, a verdadeira fonte de meu aborrecimento não é Gloria. Ela fez uma coisa de que eu não gostei, mas seu comportamento não é a fonte de minha dor. A fonte de minha dor é minha base de apoio fictícia.
Quando nos sentamos para a prática, gradualmente tornamo-nos mais conscientes de nosso corpo e percebemos que está o tempo todo contraído. Em geral a contração é muito discreta e sutil, invisível para as outras pessoas. Quando ficamos de fato aborrecidos, a contração aumenta. Algumas pessoas estão tão fortemente contraídas que isso se toma evidente para os outros. Depende da história particular de cada um. Mesmo que a pessoa tenha tido uma vida relativamente fácil e feliz, a contração está sempre lá, como uma tensão marginal.

O que podemos fazer com essa contração? A primeira coisa é tomar consciência de que ela existe. Isso leva em geral alguns anos de prática. Nos primeiros anos em que nos sentamos para praticar, lidamos em geral com os pensamentos mais ostensivos que ruminamos a respeito dos aparentes problemas que temos com o universo. Esses pensamentos mascaram a contração subjacente. Temos de lidar com eles e acalmar nossas vidas até que nossas reações emocionais não sejam tão destrambelhadas. Quando nossas vidas tiverem se tomado um pouco mais assentadas e normais, iremos nos conscientizar r da contração marginal subja- cente que sempre esteve ali, o tempo todo. A partir de então, podemos nos tornar conscientes da contração com mais intensidade do que quando algo dá errado do nosso ponto de vista.
A prática não diz respeito aos eventos temporários de nossa vida. Ela se refere à nossa base de apoio. Esta registra os eventos temporários. Dependendo dos eventos e de como nossa base de apoio os registra, chamamos nossas reações de aborrecimento., raiva, depressão. Esse transtorno não é pelos eventos, mas por nossa base de apoio. Por exemplo, se um casal está discutindo, pensam que sua briga é de um com o outro, mas na realidade a discussão é de cada um com sua própria base de apoio. Acontece uma briga quando cada uma das pessoas sintoniza sua própria base de apoio numa reação a alguém. Por isso, quando tentamos resolver uma desavença lidando com nosso cônjuge de alguma maneira, não chegamos a parte nenhuma; não é essa a fonte dc problema.

Uma outra coisa que aumenta a confusão é que nós gostamos de nossa base de apoio. Ela nos confere importância própria. Quando não entendo minha base de apoio, então posse exigir muita atenção discutindo com a Gloria, desforrando-me dela, e assim ela fica sabendo com quem se meteu. Quando ajo assim, mantenho minha base de apoio, o que considero como minha proteção diante do mundo. Tenho confiado nela desde meus tempos de criança e não quero me livrar dela. Se eu fosse me desfazer dela, teria de encarar todo o meu terror; em vez disso, prefiro enfrentar a Gloria. É isso que constitui a prática sentada: encarar o terror e ser a tensão – secundária ou predominante – no corpo. Não queremos fazer isso. Queremos lidar com nossos principais problemas através de nossa base de apoio.

Há muitos anos, trabalhei para uma grande companhia. Era a assistente do chefe de minha seção, um laboratório de pesquisa científica. Minha vaga no estacionamento ficava perto da entrada do laboratório. Era bom isso; quando chovia, eu podia saltar do carro e entrar no edifício sem ficar muito molhada. Foi surgindo um problema com essa vaga, porque a porta conduzia também direto para o escritório do vice-presidente. Então a secretária do vice-presidente decidiu que aquela minha vaga era o melhor lugar para estacionar. Ela começou uma confusão e as comunicações internas começaram a voar para todo lado. Eram para o departamento de pessoal, para o meu chefe, para o chefe dela, e para alguns outros lugares. Ela estava muito contrariada porque no papel seu cargo era superior ao meu e no entanto a melhor vaga era a minha. Pensei: “Ela está tentando me tirar esta vaga. Eu sempre tive esta vaga. Legalmente, é minha”. Meu chefe, a pessoa mais importante do laboratório de pesquisa científica, solidarizou-se comigo e começou a lutar com o vice-presidente. Seus gigos estavam envolvidos. Quem era mais importante? Não havia uma resposta clara. Nessa altura, em vez de estarmos apenas as duas batendo boca, nossos chefes estavam igualmente no conflito. Toda noite, quando saía da minha vaga, eu sabia que estava certa.

Essa luta durou meses. As comunicações deixavam de ser expedidas e de repente – toda vez que essa secretária me via -elas começavam de novo a voar de um lado para outro. Finalmente, certa noite, num cruzamento, enquanto esperava que o sinal mudasse para verde, percebi o seguinte: “Não estou casada com aquela vaga. Se ela a quer, que a leve”. Assim, no dia seguinte, comecei eu mesma a expedir as comunicações. Com permissão do departamento de pessoal, cedi minha vaga. Meu chefe ficou furioso comigo. Porém, como não era uma questão muito grave, acabou se acostumando com a situação. Uma semana mais tarde, a secretária me telefonou e convidou-me para almoçar. Nunca nos aproximamos muito, mas mantivemos uma relação cordial.

A verdadeira questão não era entre mim e essa secretária. A vaga era apenas uma espécie de símbolo para outras espécies de lutas. Não estou querendo dizer que a gente deva sempre abrir mão de uma vaga no estacionamento. Nesse caso, porém, a questão era trivial: eu passei a ter de andar talvez quarenta ou cinqüenta passos, em vez de sete. Uma ou duas vezes no inverno fiquei realmente encharcada da cabeça aos pés. No entanto, enquanto essa controvérsia não foi resolvida, manteve muitas pessoas ocupadas durante meses.

Nossas desavenças nunca são com os outros, mas com nossa própria base de apoio. Se temos uma base de apoio com muitas tomadas prontas para nos ligarmos em qualquer uma delas, praticamente qualquer coisa será motivo. Nós gostamos de nossas bases de apoio; sem elas, iríamos sentir-nos aterrorizados, tal como nos sentíamos quando éramos muito pequenos.
O objetivo da prática é tomarmo-nos amigos de nossa base de apoio. Não iremos nos livrar dela de uma vez por todas. Estamos muito apegados a ela para isso. Mas, conforme a mente for realmente se aquietando e tornar-se menos interessada em lutar com o mundo; quando desistirmos de nossas posições em algumas lutas sem sentido; quando não tivermos mais que brigar tanto porque chegamos a ver o que está por trás, então nossa capacidade de permanecermos sentados na prática aumentará. Nesse ponto, começamos a sentir que o problema real está naquela antiga criação constituída de dor – a dor da criancinha quando descobre que a vida não é aquilo que ela gostaria que fosse. Essa dor está revestida de raiva, medo e outros sentimentos parecidos. Não há meios de se escapar desse dilema, exceto voltando pelo mesmo caminho e tornando a sentir os sentimentos originais. Não estamos interessados nisso, porém, e é por isso que sentar na prática se torna tão difícil.

Quando regressamos ao corpo, não é que desenterramos algum grande melodrama que se desenrola em nosso íntimo. Para a maioria das pessoas, a maior parte do tempo, a contração é tão secundária que nem conseguem perceber que está lá. Mas está. Quando simplesmente nos sentamos e mantemos uma aproximação cada vez maior da sensação dessa contração, aprendemos a descansar nela por períodos cada vez maiores: cinco segundos, dez segundos, depois trinta minutos ou mais. Uma vez que a base de apoio é nossa invenção e que não tem uma realidade fundamental, ela começa a se resolver um pouco aqui, um pouco ali. Depois de ficar em sesshin por algum tempo, talvez percebamos que ela sumiu. Depois ela pode voltar. Se entendermos a nossa prática, ao longo dos anos de prática essa base de apoio vai ficando cada Vez mais fina e menos dominante. Podem ocorrer aberturas momentâneas. Em si mesmas, essas aberturas não são importantes, uma vez que a base de apoio em geral retorna imediatamente a funcionar assim que deparamos com uma nova situação desagradável com alguém. Não tenho um interesse especial em criar aberturas na base de apoio; o trabalho real está em dissolvê-la por completo, aos poucos. Sabemos que a base de apoio está em ação quando nos sentimos contrariados com algo ou com alguém. Sem sombra de dúvida temos questões no mundo externo a serem resolvidas, algumas delas muito difíceis. Contudo essas questões não são o que nos contraria. O que nos contraria é estarmos funcionando a partir de nossa base de apoio. Quando isso acontece, não há serenidade, não há paz.

Esta modalidade de prática – trabalhar diretamente com a base de apoio, com nossas contrações subjacentes – pode ser mais difícil do que a prática do koan(ver nota 1). Com a prática do koan, a pessoa sempre tem um pequeno incentivo ou recompensa para passar para o próximo koan. Não há nada de errado com isso, e eu às vezes trabalho com koan com meus alunos. No entanto, essa abordagem não é tão fundamental quanto o trabalho sobre a base de apoio, que está presente em cada um de nós. Estamos cientes dela? Sabemos o que significa praticar? Com que seriedade encaramos nossas dificuldades com as outras pessoas e com a vida? Quando estamos ligados nessa base, a vida é muito sem esperança. Todos estamos sintonizados nela, em graus variáveis, eu inclusive. Com o passar dos anos tornei-me mais ábil para reconhecer quando estou ligada nessa base de apoio. Não perco mais tanto esses momentos. Podemos nos flagrar ligando-nos na nossa base de apoio observando o modo como falamos conosco e com os outros: “Tem alguma coisa errada com ele. É culpa dele. Ele tinha que ser diferente”; “Eu deveria ser melhor”; “A vida simplesmente é injusta comigo”; “Eu realmente não tenho esperança”.

Quando executamos essas sentenças em nossa mente, sem questioná-las, estamos desencadeando uma falsa briga e terminamos lá onde acabam todas as falsas brigas: em parte alguma, ou em mais dificuldades. Temos de deflagrar a verdadeira luta: permanecer com aquilo com que não queremos permanecer. Praticar exige coragem. A coragem aumenta com a prática, mas não existe uma saída rápida e fácil. Mesmo depois de muito tempo sentados na prática, quando ficamos com raiva, temos também o impulso de atacar a outra pessoa. Procuramos formas de castigar os outros pelo que fizeram. Essa atividade é não vivenciar a nossa raiva, mas evitá-la através de algum drama.
Muitas escolas de terapia incentivam que o cliente manifeste diretamente sua hostilidade. Quando a expressamos porém, nossa atenção dirige-se para fora, para uma outra pessoa ou coisa, e para o verdadeiro problema. Expressar nossos sentimentos é uma coisa natural e não algo terrível em si. Todavia em geral nos cria problemas. Quando verdadeiramente vivida, a raiva é muito silenciosa. Tem uma certa dignidade. Não há -manifestações, não há teatralizações. Refere-se apenas a estar com aquela contração fundamental que denominei a base de apoio. Quando de fato ficamos com raiva, então os pensamentos pessoais e autocentrados se destacam do sentimento e ficamos diante da energia pura, que pode ser usada de um modo compassivo.

Essa é a verdadeira história da prática. A pessoa que consegue fazer isso com grande consistência é alguém que chamamos de iluminado. Passar por uma experiência momentânea de estar sem a base de apoio não é a verdadeira iluminação. A pessoa realmente iluminada é aquela que consegue transformar energia quase o tempo todo. Não que a energia não apareça mais. A questão é o que fazer com ela? Se alguém dá uma trombada no nosso carro, sem ter prestado atenção, não iremos apenas sorrir com docilidade. Teremos uma reação: “Mas que droga!” Mas e então? Por quanto tempo permanecemos nessa reação? A maioria de nós prolonga essa reação e a amplia ao máximo. Um exemplo é nossa propensão a mover processos; não estou dizendo que um processo nunca seja justificado. Pode ser às vezes necessário para resolver uma pendência. No entanto muitos processos são na realidade a respeito de alguma outra coisa e são contraproducentes. Se manifesto minha raiva para Gloria, ela, de alguma maneira, irá devolvê-la para mim. Minha amizade com Gloria poderá acabar. Quando o elemento pessoal – o modo como me sinto quanto a ela – é afastado, então resta só a energia. Quando nos sentamos para a prática dessa energia, com dignidade, embora no começo seja doloroso, depois se transforma num lugar de grande descanso. Uma frase do coral de Bach me vem à mente: “Em Teus braços eu descanso”. Isso significa descansar em quem eu realmente sou. “Aqueles que poderiam molestar-me não conseguem encontrar-me aqui.” Por que é que eles não conseguem encontrar-me aqui? Porque não tem ninguém em casa. Não tem ninguém aí. Quando sou energia pura, não sou mais eu. Sou um funcionamento para o que é bom. Essa transformação é o motivo pelo qual estamos sentados na prática. Não é fácil. E não acontece do dia para a noite. Mas, se praticarmos bem, iremos com o tempo nos envolver cada vez menos em equívocos interpessoais, prejudicando a nós e aos outros. Sentar para a prática incinera o elemento autocentrado e nos deixa com a energia de nossas emoções, sem a destrutividade.

Sesshins, a prática regular, e a prática na vida são os melhores caminhos para produzir essa transformação. Pouco a pouco, vai acontecendo uma mudança em nossa energia e mais um trecho de nossa base de apoio é incinerado. Conforme nossas preocupações autocentradas forem sendo deixadas de lado, não poderemos mais retornar ao modo como éramos. Uma transformação fundamental aconteceu.
“Em Teus braços eu me descanso.” Existe uma verdadeira paz quando descansamos dentro dessa contração fundamental, apenas vivenciando o corpo como é. Como diz Hubert Benoit (nota 2) em seu maravilhoso livro The supreme doctrine (A doutrina suprema)*, quando estou num desespero real, pelo menos deixe- me descansar nesse divã de gelo. Se eu conseguir verdadeiramente descansar aí, meu corpo irá conformar-se com ele e não haverá mais separação. Nesse ponto, alguma coisa muda. Como me sinto a respeito de Gloria agora? Oh, tivemos um pequeno desentendimento e daremos então um belo passeio a pé para conversarmos a respeito. Sem problemas.

Nota:
1- Koan: uma questão paradoxal tradicional, impossível de ser analisada racionalmente, usada para aprofundar a meditação.
2- Hubert Benoit, The supreme doctrine: Psychological studies in zen thought, Nova York: Viking, 1955, p. 145.


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