A essência mais profunda


A ESSÊNCIA MAIS PROFUNDA
Sogyal Rinpoche

A ESSÊNCIA MAIS PROFUNDA


Ninguém pode morrer sem medo e em completa segurança sem ter atingido a realização da natureza da mente. Porque só essa realização, aprofundada em anos de prática continuada, pode manter a mente estável no confuso caos do processo da morte. De todas as maneiras que conheço de ajudar a realizar a natureza da mente, a prática de Dzogchen, a mais antiga e direta corrente de sabedoria dentro dos ensinamentos do budismo é a própria fonte dos ensinamentos do bardo, é a mais clara, mais eficaz e relevante para as circunstâncias atuais. As origens do Dzogchen remontam ao Buda Primordial, Samantabhadra, que o transmitiu a uma linha ininterrupta de grandes mestres que chega até o presente. Centenas de milhares de indivíduos na Índia, no Himalaia e no Tibet, atingiram a realização e a iluminação através dessa prática.

Alguns dos meus mestres me disseram que este é o momento de se difundir o Dzogchen. Os seres humanos chegaram a um ponto crítico da sua evolução e esta época de extrema confusão pede um ensinamento com o mesmo grau de poder e claridade.
Descobri também que as pessoas de hoje querem um caminho que elimine o dogma, o fundamentalismo, exclusivismo, metafísica, complexa e parafernália cultural exótica, um caminho ao mesmo tempo simples e profundo, que não precise ser praticado em ashrams ou mosteiros, mas possa integrar-se à vida do dia-a-dia e ser praticado em qualquer lugar.

O que é, então, o Dzogchen? O Dzogchen não é apenas um ensinamento, nem mais uma filosofia, nem mais um elaborado sistema, nem mesmo uma sedutora série de técnicas. Dzogchen é um estado, o estado primordial, aquele estado totalmente desperto que é o coração e a essência de todos os budas e de todos os caminhos espirituais e o ápice da evolução espiritual de um indivíduo. Dzogchen é freqüentemente traduzido como Grande Perfeição. Prefiro deixar a palavra sem traduzir, porque Grande Perfeição traz esse sentido do perfeito que temos de lutar para conseguir, meta que fica no final de um longa e árdua jornada.

Nada podia estar mais distante do significado de Dzogchen: o estado já perfeito em si mesmo da nossa natureza primordial, que não precisa de “aperfeiçoamento”, uma vez que, como o céu, sempre foi perfeito desde o começo.

Todos os ensinamentos budistas são explicados em termos de “Base, Caminho e Fruição”. A Base do Dzogchen é esse estado fundamental e primevo, nossa natureza absoluta que já é perfeita e está sempre presente. Patrul Rinpoche diz: “Nem é para ser buscada externamente, nem é algo que você não tinha antes ou que precise nascer agora de um modo novo em sua mente”. Do ponto de vista da Base – o absoluto – nossa natureza é a mesma que a dos budas, e nesse nível não há que ouvir ensinamentos ou fazer prática – nem um pingo, dizem os mestres.
Não obstante, temos de entender, os budas tomaram um caminho e nós tomamos outro. Os budas reconhecem sua natureza original e tornam-se iluminados; nós não a reconhecemos e por isso nos tornamos confusos. Nos ensinamentos, esses estado de coisas é chamado “Uma base, dois Caminhos”. Nossa condição relativa é que nossa natureza intrínseca está obscurecida e precisamos seguir os ensinamentos e a prática para voltarmos à verdade: esse é o caminho do Dzogchen. Finalmente, atingir a realização da nossa natureza original é atingir a completa liberação e tornar-se um buda. Essa é a fruição do Dzogchen, que de fato é possível ao praticante em uma só vida, quando ele ou ela a isso dedica seu coração e mente.

Os mestres Dzogchen são agudamente conscientes dos perigos de confundir o absoluto com o relativo. Quem não consegue compreender essa relação pode subestimar ou até desprezar os aspectos relativos da prática espiritual e a lei cármica de causa e efeito. No entanto, àqueles que apreendem verdadeiramente o significado do Dzogchen terão um respeito ainda mais profundo pelo carma, bem como uma apreciação mais intensa e premente da necessidade de purificação e de prática espiritual. Isso se dará porque eles poderão perceber a vastidão daquilo que há neles e que foi obscurecido, o que os fará empenhar-se de maneira mais fervorosa, e com disciplina sempre fresca e natural, em remover o que quer que se interponha entre eles e sua verdadeira natureza.
Os ensinamentos Dzogchen são como um espelho que reflete a Base da nossa natureza original com pureza tão elevada e liberadora, e claridade tão imaculada, que constituem uma proteção ao perigo de ficar presos em qualquer forma de entendimento conceitualmente fabricado, mesmo que sutil, convincente ou sedutor.

Qual é então, para mim, a maravilha do Dzogchen? Todos os ensinamentos levam à iluminação, mas a singularidade do Dzogchen é que, mesmo na dimensão relativa dos ensinamentos, a sua linguagem nunca macula o absoluto com conceitos; deixa-o intacto em sua simplicidade desnuda, dinâmica e majestosa, e mesmo assim fala dela a qualquer um de mente aberta em termos tão vívidos e expressivos que, mesmo antes de nos iluminarmos, somos agraciados com o vislumbre mais forte que podemos ter do esplendor do estado desperto.


A VISÃO


Tradicionalmente, o treinamento prático do Caminho Dozogchen é descrito com muita simplicidade em termos de Visão, Meditação e Ação. Ver diretamente o estado absoluto, a Base do nosso ser, é a Visão; o modo de estabilizar essa Visão e fazer dela uma experiência contínua é Meditação; integrar a Visão à nossa realidade total e à nossa vida é o que chamamos Ação.
O que é então a Visão? É nada menos que ver o estado real das coisas como elas são; saber que a verdadeira natureza da mente é a verdadeira natureza de tudo; e atingir a realização de que a verdadeira natureza da nossa mente é a verdade absoluta. Dudjom Rinpoche diz:

A visão é a compreensão da consciência intrínseca desnuda,
Dentro da qual tudo está contido: a percepção sensorial e a existência fenomênica, o samsara e o nirvana.
Essa consciência intrínseca e imediata tem dois aspectos:
“vacuidade” como o absoluto, e aparência ou percepção como relativo.

O que isso significa é que todo o conjunto das possibilidades das aparências e todos os possíveis fenômenos em todas as diferentes realidades – todos eles, sem exceção, seja no samsara ou no nirvana – sempre foram e sempre serão perfeitos e completos, dentro da vasta e ilimitada extensão da natureza da mente. Mais ainda, que a essência de tudo seja vazia e “pura desde o início”, sua natureza é rica em nobres qualidades, prenhe de todas as possibilidades, um campo ilimitado, incessante e dinamicamente criativo que é sempre perfeito e expontâneo. (…)

Como a mente de sabedoria dos budas pode ser introduzida? Imagine a natureza da mente como seu próprio rosto; está sempre com você, mas não pode vê-lo sem ajuda. Agora imagine que nunca viu um espelho antes. A introdução feita pelo mestre é colocar subitamente um espelho diante de você, no qual pela primeira vez vai ver seu próprio rosto refletido. Tal como seu rosto, a pura percepção de Rigpa [a base do nosso ser] não é algo “novo” que o mestre lhe está dando, ou algo que nunca tenha tido antes, e nem algo que teria a possibilidade de achar fora de si mesmo. Sempre foi seu e sempre esteve com você, mas até aquele momento, surpreendente, você nunca o tinha visto de maneira direta.

Patrul Rinpoche explica que “de acordo com a tradição especial dos grandes mestres da linhagem dessa prática, a natureza da mente, o rosto de Rigpa, é intoduzido precisamente na dissolução da mente conceitual”. (…)

Apenas uns poucos indivíduos na história, devido ao seu carma purificado, puderam reconhecer e iluminar-se num instante; porisso a introdução deve quase sempre ser precedida pelas práticas preliminares que apresento a seguir. São essas práticas preliminares que purificam e removem os obscurecimentos da mente ordinária, trazendo você ao estado em que “seu” Rigpa pode ser revelado.

Primeiro, a MEDITAÇÃO, antídoto supremo da distração, traz a mente de volta e permite que ela se assente no seu estado natural.

Segundo, práticas profundas de purificação e o fortalecimento do carma positivo, através da acumulação de mérito e sabedoria, começam a enfraquecer e dissolver os véus intelectuais e emocionais que obscurecem a natureza da mente. Como escreveu meu mestre Jamyang Khyentse: “Se os obscurecimentos forem removidos, a sabedoria de Rigpa de cada um brilhará naturalmente”. Essas práticas de purificação, chamadas Ngöndro em tibetano, devem ser cuidadosamente observadas para produzir uma ampla transformação interior. Elas envolvem o ser inteiro – corpo, fala, mente – e começam com uma séria de profundas contemplações sobre:

– A singularidade da vida humana
– A contínua presença da impermanência e da morte
– A infalibilidade da causa e efeito das nossas ações
– O ciclo vicioso de frustração e sofrimento que é o samsara (…)

Mesmo sabendo que as palavras e os conceitos fracassam quando tentamos descrevê-la, vou procurar dar uma idéia do que é a VISÃO e do que acontece quando Rigpa é revelado diretamente.
Dudjom Rinpoche diz: “Esse momento é como tirar um capuz de sua cabeça. Que amplitude infinita e que alívio! Esse é o ver supremo: ver o que não foi visto antes”. Quando você VÊ tudo se abre, se expande e se torna fresco, claro, transbordante de vida, animado de encantamento e frescor. É como se o teto de sua cabeça se desprendesse, ou se um bando de pássaros repentinamente revoasse de um ninho escuro. Todas as limitações se dissolvem e desaparecem como se, dizem os tibetanos, um selo tivesse rompido.

Imagine-se morando numa casa no topo do mundo. De repente, toda a estrutura da casa que limitava sua visão simplesmente desaparece e você pode ver tudo ao seu redor, tanto dentro como fora. Mas não há alguma “coisa” para ver; o que acontece não tem qualquer referência no mundo ordinário; é uma visão total, completa, sem precedentes, perfeita.

Dudjon Rinpoche diz: “Seus inimigos mais mortais, aqueles que o mantiveram amarrado ao samsara por incontáveis vidas, desde tempos imemoriais até o presente, são o agarrar e o agarrado”.
Quando o mestre o introduz e você os reconhece, “esses dois são completamente consumidos como penas numa fogueira, não deixando vestígios”. Agarrar e agarrado, a coisa agarrada e aquele que agarra são completamente liberados a partir mesmo da sua base. As raízes da ignorância e do sofrimento são totalmente cortadas e todas as coisas aparecem como reflexos num espelho, transparentes, bruxuleantes, ilusórias e com a qualidade de um sonho.

Quando você chega naturalmente a esse estado de meditação, inspirado pela Visão, pode permanecer aí por um longo tempo sem qualquer distração ou esforço especial. Então não há nenhuma coisa de nome meditação para proteger ou sustentar, uma vez que você está no fluxo natural da sabedoria Rigpa. E, quando está nele, perceberá que é como se tivesse sido sempre assim, e é. Quando brilha a sabedoria de Rigpa, nem uma sombra de dúvida permanece e um entendimento completo e profundo surge diretamente e sem qualquer esforço. (…)

Esse é o momento do despertar. Um profundo senso de humor brota de dentro e você sorri, divertido com a inadequação dos seus antigos conceitos e idéias sobre a natureza da mente.
O que surge disto é uma crescente, tremenda e inabalável certeza e convicção de que “é isto”. Não há nada além a procurar, nada a mais a ser esperado. Essa certeza da Visão é aquilo que deve ser aprofundado, de lampejo a lampejo, sobre a natureza da mente, e estabilizado pela contínua disciplina da meditação.


MEDITAÇÃO


Então o que é meditação do Dzogchen? É simplesmente repousar, sem distrações, na Visão, uma vez que ela tenha sido introduzida. Dudjon Rinpoche a descreve:

A meditação consiste em ficar atento a esse estado de Rigpa, livre de todas as construções mentais, embora permanecendo totalmente relaxado, sem qualquer distração e sem agarrar-se a nada. Por isso se diz que a “meditação não é se esforçar, mas permitir que a própria meditação nos assimile naturalmente”.

O ponto central da prática de meditação Dzogchen é fortalecer e estabilizar Rigpa, permitindo que ele cresça até sua plena maturidade. A mente ordinária e habitual, com suas projeções, é extremamente poderosa. Ela fica voltando e toma conta de nós quando estamos desatentos e distraídos. Como Dudjon Rinpoche costumava dizer: “No momento, nosso Rigpa é como um bebezinho desamparado no campo de batalha onde os pensamentos irrompem com força”. Gosto de dizer que temos de começar sendo a ama-seca do nosso Rigpa dentro do ambiente seguro da meditação.
Se a meditação é simplesmente continuar o fluxo de Rigpa após a introdução, como sabemos quando é Rigpa e quando não é? Fiz essa pergunta a Dilgo Khyentse Rinpoche e ele respondeu com sua simplicidade característica: “Se você está num estado inalterado, é Rigpa”. Se não estamos dentro da mente que de algum modo manipula e distorce a realidade, mas apenas repousando num estado inalterado de consciência pura e original, então isso é Rigpa. Se há qualquer trama ou maquinação de nossa parte, alguma forma de manobra ou de apego, já não se trata de Rigpa. Rigpa é um estado em que não há mais qualquer dúvida: não há na verdade algo como uma mente que possa duvidar: você vê diretamente. Se estiver nesse estado, certeza e confianças completas e naturais vibram com o próprio Rigpa, e é assim que você sabe.

A tradição do Dzogchen é de precisão extrema, já que quanto mais fundo você vai mais sutil são os enganos que podem surgir, e o que está em jogo é o conhecimento da realidade absoluta.
Mesmo após a introdução, os mestres esclarecem em detalhes os estados que não são meditação Dzogchen e que com ela não devem ser confundidos. Num desses estados você perambula por uma terra de ninguém da mente, onde não há pensamentos ou memórias; é um estado obscuro, embotado e apático, onde você está mergulhado na base da mente ordinária. Num segundo estado há certa quietude e leve claridade, mas é uma quietude estagnada, ainda enterrada na mente ordinária. Num terceiro você experimenta a ausência de pensamentos mas está “em outra” , apenas num estado vazio de encantamento. Num quarto estado sua mente vagueia, ansiando por pensamentos e projeções. Nenhum desses é o verdadeiro estado de meditação e o praticante deve observar habilmente o que ocorre para evitar ser iludido por esses caminhos.

A essência prática da meditação no Dzogchen está contida nesses quatro pontos:

I – Quando um pensamento passado cessou e ainda não surgiu um pensamento futuro, há uma brecha. Nesse preciso instante, não há uma consciência do momento presente, fresca, virgem, em nada alterada por conceitos, uma atenção luminosa e pura?
Pois bem isso é Rigpa!

II – Entretanto a mente não fica neste estado para sempre, porque outro pensamento subitamente surge, não é assim?
Essa é a auto-irradiação de Rigpa.

III – No entanto, se você não reconhece esse pensamento pelo que de fato ele é, no instante em que surge, ele se transformará em um pensamento comum, como antes. Essa é a chamada “cadeia da ilusão”, e é a raiz de samsara.

IIII – Se você é capaz de reconhecer a verdadeira natureza do pensamento logo que ele surge e o deixa em paz, sem persegui-lo, então quaisquer pensamentos que surjam se dissolvem automaticamente, retornando à vasta extensão de Rigpa, e são liberados.

É preciso uma vida inteira de prática para entender e realizar a profunda riqueza e a majestade desses quatro pontos tão simples e tão fundamentais, e tudo o que posso fazer aqui é dar a você uma amostra da vastidão que é a meditação Dzogchen.
Talvez o ponto mais importante é que a meditação Dzogchen vem a tornar-se um contínuo fluxo de Rigpa, como um rio que se move constantemente, dia e noite sem interrupção. Claro que isto é um estado ideal, uma vez que esse atento repouso na Visão, já introduzida e identificada, é a recompensa de muitos anos de prática permanente.

A meditação Dzogchen é sutilmente poderosa na lida com os movimentos da mente, apresentando uma perspectiva única sobre eles. Tudo o que surge é visto na sua verdadeira natureza, não como coisa separada de Rigpa, e não antagônica a ele, mas – e isso é muito importante – verdadeiramente como nada mais que a sua auto-irradiação, a manifestação de sua própria energia.
Digamos que você se encontre num estado de profunda quietude; ele não costuma durar muito, porque logo um movimento ou um pensamento surge, como uma onda no oceano. Não rejeite o movimento nem se apegue à tranqüilidade, mas deixe seguir o fluxo da sua pura presença. O estado penetrante e sereno da sua meditação é o próprio Rigpa e tudo que surge nada mais é que a auto-irradiação de Rigpa. Esse é o coração e a base da prática Dzogchen. (…)

À medida que incorpora a firme estabilidade da Visão, você não é mais enganado nem distraído pelo que quer que possa surgir, e assim não cai vítima da ilusão.

Claro que no oceano há ondas violentas e ondas suaves; surgem emoções fortes como raiva, desejo e inveja. O verdadeiro praticante as reconhece não como perturbação ou obstáculo, mas como uma grande oportunidade. O fato de você reagir ao que aparece com as tendências habituais de apego e aversão é sinal não somente que está distraído, mas também de que não tem o reconhecimento e perdeu a base de Rigpa. Reagir as emoções desse modo significa reforça-las , prendendo-nos ainda mais fortemente às cadeias da ilusão. O grande segredo do Dzogchen é ver bem através delas, tão logo aparecem, percebendo-as pelo que de fato são: a vívida e elétrica manifestação da própria energia Rigpa. À medida que você aprende a fazer isso, mesmo as emoções mais turbulentas já não conseguem dominá-lo e se dissolvem como ondas bravias que aparecem e retrocedem, mergulhando de volta na calma do oceano.

O praticante descobre – e essa é uma visão revolucionária, cuja sutileza e poder vão além do que podemos entrever – que as emoções violentas não precisam necessariamente precipitá-lo no turbilhão de suas próprias neuroses; elas podem ser usadas para aprofundar, estimular, avivar e fortalecer Rigpa. Essa energia tempestuosa torna-se matéria-prima para a energia desperta de Rigpa. Quanto mais forte e ardente a emoção, mais Rigpa se fortalece. Sinto que esse método peculiar ao Dzogchen é uma força extraordinária para libertar até os problemas emocionais e psicológicos mais inveterados e mais profundamente enraizados. (…)

No Dzogchen, a fundamental e inerente natureza de tudo é chamada “Luminosidade Base”, ou “Luminosidade Mãe”. Ela permeia todas as nossas experiências e é inclusive, embora não a reconheçamos, a natureza inerente também dos pensamentos e emoções que surgem em nossa mente. Quando o mestre introduz à verdadeira natureza da mente, ao estado de Rigpa, é como ele ou ela nos desse uma chave mestra. No Dzogchen chamamos essa chave, que vai abrir a porta do conhecimento total, de “Luminosidade Caminho”, ou “Luminosidade Filha”. A L. Base e a L.Caminho são fundamentalmente as mesmas, é claro, e é só para fins de explanação e prática que elas são categorizadas dessa forma. Mas uma vez que temos a chave da L.C. dada pela introdução do mestre, podemos usá-la à vontade para abrir a porta da natureza inata da realidade. Este abrir a porta se chama na prática do Dzogchen “o encontro da L. Mãe e Filha”.. Outro modo de dizer isso é que, assim que um pensamento ou emoção aparece, a L.C. – Rigpa – reconhece-os imediatamente pelo que são, reconhece sua natureza inerente, a L. Base. Nesse instante de reconhecimento, as duas Luminosidades se fundem e os pensamentos e emoções são liberados em sua própria base.
É fundamental o aperfeiçoamento dessa prática de fusão das duas Luminosidades e da auto-liberação daquilo que surge na sua mente enquanto você está vivo, porque o que ocorre para todos no momento da morte é isto: a Luminosidade Base desponta com seu imenso esplendor, trazendo com ela uma oportunidade de liberação total – se, e somente se, você tiver aprendido a reconhece-la.

Talvez fique claro agora que essa fusão das Luminosidades e da autoliberação dos pensamentos e das emoções é meditação no seu nível mais profundo. De fato, um termo como meditação não é verdadeiramente apropriado para a prática Dzogchen porque, em última análise, implica meditar “sobre” algo, enquanto que no Dzogchen tudo é apenas e para sempre Rigpa. Desse modo, não existe meditação separada do simples ficar na pura presença de Rigpa.

A única palavra que talvez pudesse descrever isso é “não-meditação”. Nesse estado, dizem os mestres, mesmo se você procurar a ilusão, não encontrará nenhuma. Mesmo se você procurar pedrinhas comuns numa ilha de ouro e jóias, não terá oportunidade de encontra-las. Quando a Visão é constante, o fluxo de Rigpa é inesgotável e a fusão das duas Luminosidades é contínua e espontânea, toda a ilusão possível é liberada em sua própria raiz e toda a sua percepção aparece como Rigpa, sem interrupção.

Os mestres enfatizam que para estabilizar a Visão na meditação é essencial, primeiro, realizar essa prática num ambiente especial, de retiro, onde todas as condições favoráveis estejam presentes; entre as distrações e a correria do mundo, as experiências verdadeiras, por mais que você medite, não surgirão na sua mente. Segundo, embora não haja diferença no Dzogchen entre meditação e vida cotidiana, até que você tenha encontrado a verdadeira estabilidade pela prática em sessões a isso dedicadas, não conseguirá integrar a sabedoria da meditação na experiência da vida diária. Terceiro, mesmo se você pratica e é capaz de assentar no fluxo de Rigpa com confiança na Visão, mas não consegue manter esse fluxo todo o tempo, em todas as situações, combinando sua prática com a vida cotidiana, isso não servirá quando circunstâncias desfavoráveis surgirem, e você será desviado para a ilusão pelos pensamentos e emoções. (…)


AÇÃO


À medida que a familiaridade com o fLuxo de Rigpa vai se tornando realidade e permeia a vida cotidiana, as ações do praticante começam a mudar e geram estabilidade e confiança profundas.

Dudjom Rinpoche diz:

Ação é estar verdadeiramente atento aos seus próprios pensamentos. Bons ou maus, olhando para a verdadeira natureza de qualquer pensamento que surja, sem evocar o passado ou convidar o futuro, sem permitir qualquer apego a experiência de alegria nem se deixar dominar pelas situações tristes. Assim fazendo, você tenta atingir e permanecer num estado de grande equilíbrio em que bom e mau, paz e angústia, são desprovidas de verdadeira identidade.

Atingir a realização da Visão transforma de maneira sutil, porém completa, o modo como você vê as coisas. Mais e mais eu percebi o quanto pensamentos e conceitos são tudo o que nos impede de estar sempre, muito simplesmente, no absoluto. Agora vejo com claridade porque os mestres dizem com tanta freqüência: “Procure com afinco não criar muita esperança ou medo”, porque só engendram mais tagarelice mental. Quando a Visão está presente, os pensamentos são percebidos como de fato são: fugazes, transparentes e apenas relativos. Você pode enxergar através de tudo, como se tivesse olhos de rios-X. Não se apega aos pensamentos e emoções, nem os rejeita, mas acolhe-os todos no vasto abraço de Rigpa. O que levava muito a sério antes – ambições, planos, expectativas, dúvidas e paixões – já não tem nenhum poder profundo sobre você nem o deixa ansioso, uma vez que a Visão o ajudou a perceber a futilidade e a insensatez de todas as coisas, e fez nascer em você um espírito de verdadeira renúncia.

Permanecer na claridade e na confiança de Rigpa permite que todos os seus pensamentos e emoções se liberem naturalmente e sem esforço em sua vasta extensão, qual escrever na superfície da água ou pintar no céu. Se você aperfeiçoa verdadeiramente essa prática, não há jeito de acumular carma; e nesse estado de entrega despreocupada e sem intencionalidade, que Dudjom Rinpoche chama de tranqüilidade aberta e desnuda, a lei de causa e efeito já não pode sujeitá-lo de modo algum.

Não presuma que isso é fácil ou poderia de algum modo sê-lo. É muito difícil repousar sem distrações na natureza da mente, mesmo por um instante, e permitir que um pensamento ou emoção se auto libere espontaneamente quando surge. Via de regra assumimos que apenas porque compreendemos algumas coisas intelectualmente, ou pensamos que compreendemos, nós de fato as realizamos. Essa é uma enorme ilusão. A tarefa exige a maturidade que somente anos de audição, contemplação, reflexão, meditação e prática contínua podem trazer. E nunca é demais enfatizar que a prática continuada do Dzogchen sempre requer a direção e a instrução de um mestre qualificado.

De outro modo há um grande perigo, que a tradição chama “perder a Ação na Visão”. Um ensinamento tão elevado e poderoso como o Dzogchen comporta um risco extremo. Ao iludir-se de que está liberando pensamentos e emoções, quando de fato não está nem próximo de conseguir isso, e ao imaginar que está agindo com a espontaneidade de um verdadeiro yogue Dzogchen, tudo o que você faz é acumular enormes quantidades de carma negativo. Como dizia Padmasambhava, e esta é a atitude que todos devem ter:

Embora minha visão seja tão vasta quanto o céu
Minhas ações e meu respeito pela causa e efeito
São refinados como o grão de farinha.

Os mestres da tradição Dzogchen enfatizam incansavelmente que, sem um conhecimento completo e profundo da “essência e método da auto-liberação”, através de longa prática, a meditação somente incrementa o caminho da ilusão. Isso pode parecer severo mas este é o caso, porque só a auto-liberação constante dos pensamentos pode de fato acabar com o domínio da ilusão e proteger o discípulo de mergulhar outra vez no sofrimento e na neurose. Sem o método da auto-liberação você não estará apto para enfrentar desventuras e circunstâncias infelizes quando elas surgirem, e mesmo se você já tem o hábito de meditar vai perceber que emoções como raiva e desejo estão presentes, tão fortes quanto antes. O perigo de outros tipos de meditação que não tem esse método consiste em que eles se tornam como a “meditação dos deuses”, extraviando-se com facilidade em uma suntuosa auto-absorção, num transe passivo, ou numa inanidade de espírito de um tipo ou de outro, e nada disso ataca e dissolve a ilusão na sua raiz.

O grande mestre Dzogchen, Vimalamitra, falou de maneira muito precisa sobre os graus de crescente naturalidade nesse caminho de liberação: quando você domina a prática pela primeira vez, a liberação acontece simultaneamente ao que surge na mente, e aí é como reconhecer um velho amigo na multidão. Aperfeiçoando e aprofundando a prática a liberação virá junto com o surgimento das emoções e pensamentos, como uma serpente desenrolando-se. E, no estado final de mestria, a liberação é como um ladrão que entra numa casa vazia; nada do que surge traz males nem benefícios para o verdadeiro yogue Dzogchen.

Mesmo nos maiores yogues, a alegria e o sofrimento, a esperança e o medo, ainda aparecem exatamente como antes. A diferença de uma pessoa comum e o yogue está em como eles vêem suas emoções e reagem a elas. Uma pessoa comum, de maneira instintiva, irá aceitá-las ou rejeitá-las, suscitando assim apego ou aversão que resultarão na acumulação de carma negativo. Um yogue, no entanto, percebe tudo o que surge no seu estado natural e originalmente puro, sem permitir o apego, ou qualquer pensamento superveniente. Como diz Dudjom rinpoche:

Em qualquer percepção que surja, você deve ser como uma criança que entra num templo lindamente decorado: ela olha, mas o apego não entra de modo algum em sua percepção. Então você deixa tudo ali, fresco, natural, vivo e intocado.
Quando você deixa tudo no seu estado próprio, a forma não muda, a cor não esmaece, o brilho não declina. Tudo o que surge não é maculado por nenhum apego, e assim todas as coisas que você percebe surgem como a desnuda sabedoria de Rigpa, que é a inseparabilidade entre luminosidade e vacuidade.

A confiança, o contentamento, a vasta serenidade, a força, o profundo humor e a certeza que advêm da realização direta da Visão de Rigpa são o maior tesouro da vida, a maior das felicidades, que uma vez obtida nada pode destruir, nem mesmo a morte. Dilgo Khyentse Rinpoche diz:

Uma vez que você obtem a Visão, embora as percepções ilusórias do samarra possam surgir na sua mente, você será como o céu: não fica particularmente lisonjeado quando surge nele o arco-íris, nem particularmente desapontado quando as nuvens o encobrem. Há uma profunda sensação de contentamento. Você ri por dentro quando vê a fachada do samsara e do nirvana; a Visão o manterá constantemente maravilhado com um suave sorriso interior se esboçando, todo o tempo.

Como diz Dudjom Rinpoche: “Tendo purificado a grande ilusão, que é o lado escuro do coração, a luz radiante do sol não-obscurecido nascerá continuamente”.
Quem leva a sério as instruções sobre Dzogchen e sua mensagem sobre o morrer, contidas nesse livro, irá se sentir inspirado, espero, para buscar, encontrar e seguir um mestre qualificado, e para comprometer-se a passar por um completo treinamento sob orientação dele ou dela. O coração do treinamento Dzogchen consiste em duas práticas, Trekchö e Tögal, que são indispensáveis a uma compreensão profunda do que ocorre durante os bardos. Só posso dar aqui uma brevíssima introdução a ambas. A explicação completa só é dada de mestre a discípulo, quando este já se comprometeu de todo o coração com os ensinamentos e atingiu um certo estágio de desenvolvimento. O que expliquei neste capítulo – “A Essência Mais Profunda” – é a essência da prática do Trekchö.

Trekchö significa atravessar a ilusão essencialmente com força irresistível da visão Rigpa, como uma faca corta manteiga ou um mestre de karatê quebra uma pilha de tijolos. Todo o fantástico edifício da ilusão desmorona, como se você tivesse pulverizado seus alicerces. A ilusão é atravessada e a pureza primordial e a natural simplicidade da mente são desveladas.
Somente quando o mestre determinar que você tem uma base firme na prática do Trekchö é que ele ou ela o introduzirá na prática avançada do Tögal. O praticante do Tögal trabalha diretamente com a Clara Luz – que habita de modo inerente em todos os fenômenos e está “espontaneamente presente neles” – usando exercícios específicos e muito poderosos para revela-la dentro de si mesmo.

O Tögal tem a qualidade de ser instantâneo, de trazer realização imediata. Em vez de viajar por uma cordilheira para alcançar um pico distante, o Tögal leva-o até lá num salto. O efeito de Tögal é tornar alguém capaz de efetivar todos os diferentes aspectos da iluminação em si próprios no decurso de uma vida. Por isso é considerado o método único e extraordinário do Dzogchen; enquanto o Trekchö é a sua sabedoria, o Tögal são seus meios hábeis. Exige imensa disciplina e é geralmente praticado em retiro. (…)



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