A promessa que nunca é cumprida
Nossos problemas decorrem do desejo. No entanto, nem todos os desejos criam problemas. Existem dois tipos de desejos: as exigências (“Tenho que ter isso”) e as preferências. As preferências são inócuas; podemos ter tantas quantas quisermos. O desejo que exige ser satisfeito é que é o problema. É como se nos sentíssemos constantemente com sede e, para saciá-la, tentássemos ligar uma mangueira a uma torneira na parede da vida. O tempo todo pensamos que desta ou daquela torneira iremos receber a água que exigimos. Quando ouço o que meus alunos têm a dizer, todos parecem sentir sede de alguma coisa. Podemos conseguir um pouco de água cá e lá, mas isso apenas nos tortura. Sentir sede, bastante sede, não tem graça nenhuma.
Quais são algumas das torneiras às quais recorremos para saciar nossa sede? Uma pode ser o emprego que achamos que devemos ter. Outra pode ser “o par ideal”, ou “o filho que se comporta sempre como deve”. Dar um jeito numa relação pessoal pode parecer ser o caminho para chegar naquela água. Muitos acreditam que por fim saciarão sua sede se enfim conseguirem dar um jeito em si mesmos. Não tem o menor sentido que o eu tente consertar o eu, mas insistimos em fazer isso. O que chamamos de nós mesmos nunca nos é muito aceitável. “Não consigo fazer o bastante”; “Não sou bem-sucedido o suficiente”; “Estou sempre com raiva, não valho nada”; “Sou mau aluno”. Exigimos um número incontável de coisas de nós e do mundo; praticamente qualquer coisa pode ser vista como desejável, como um soquete ao qual nos atarrachamos para podermos enfim conseguir a água que acreditamos necessitar. As livrarias estão repletas de livros de auto-ajuda proclamando vá-rios remédios para a nossa sede: Como fazer seu marido amá-la, Como aumentar sua auto-estima, e assim por diante. Quer pareçamos seguros de nós, quer não, por baixo dessa camada todos nós sentimos que alguma coisa está faltando. Achamos que precisa mos dar um jeito na nossa vida para saciar nossa sede. É preciso que criemos essa ligação, que instalemos nossa mangueira na torneira e recebamos a água para beber.
O problema é que nada de fato funciona. Começamos a descobrir que a promessa que fizemos a nós mesmos – a de que, de alguma maneira, nossa sede seria resolvida – nunca é cumprida. Não estou querendo dizer que nunca gozamos a vida. Há muitas coisas na vida que podem ser intensamente desfrutadas: certos relacionamentos, certos trabalhos, certas atividades. Mas o que nós queremos é uma coisa absoluta. Queremos saciar nossa sede em caráter permanente, para que tenhamos toda a água que quisermos, o tempo todo. Essa promessa da completa satisfação nunca é cumprida. Não pode sê-lo. No instante em que conseguimos algo que quisemos, ficamos satisfeitos no momento e então nossa insatisfação aparece de novo.
Tentamos durante anos a fio ligar nossa mangueira nesta ou naquela torneira e a cada vez descobrimos que não era o suficiente, e então vem um momento de profundo desânimo. Começamos a sentir que o problema não está em nossa incapacidade de ligar um receptor a algo lá adiante, mas em que nada externo pode jamais satisfazer essa sede. É nesse momento que temos mais chance de dar início a uma prática séria. Esse pode ser um momento horrível – perceber que nada irá jamais nos satisfazer. Talvez tenhamos um bom emprego, um bom relacionamento ou família, e, no entanto continuamos com sede – e nos damos conta de que nada realmente consegue satisfazer nossas exigências. Podemos inclusive perceber que mudarmos de vida – mudar os móveis de lugar – não vai funcionar também. O momento desse desespero é, na realidade, uma bênção, o verdadeiro começo.
Uma coisa estranha acontece quando abrimos mão de todas as nossas expectativas. Temos um vislumbre de outra torneira, que até então tinha permanecido invisível. Ligamos nossa mangueira a ela e, para o nosso prazer, descobrimos que a água vem jorrando com força. Pensamos: “Agora sim! Consegui-o. E o que acontece? Mais uma vez, a água seca. Trouxemos para a própria prática todas as nossas exigências e de novo estamos com sede.
A prática tem de ser um processo de intermináveis decepções. Temos de enxergar que tudo o que exigimos (e até obtemos) irá depois nos decepcionar. Essa descoberta é nossa mestra. É por isso que devemos tomar cuidado com amigos que estão em dificuldades, para os quais não devemos demonstrar nossa simpatia acenando-lhes com falsas esperanças e promessas de tranqüilidade. Essa espécie de simpatia – que não é a verdadeira compaixão – simplesmente retarda mais seu aprendizado. Em certo sentido, a melhor ajuda que podemos oferecer a alguém é apressar seu desapontamento. Embora isso pareça cruel, não o é na verdade. Ajudamos aos outros e a nós mesmos quando começamos a enxergar que todas as nossas exigências habituais são mal direcionadas. Com o tempo, iremos nos tornar espertos o suficiente para antecipar qual será nossa próxima decepção, para saber que nosso próximo esforço de saciar a sede também fracassará. A promessa nunca é cumprida. Mesmo com muitos anos de prática, às vezes continuamos buscando soluções falsas, mas conforme vamos em seu encalço, reconhecemos a inutilidade desse empenho com uma rapidez maior. Quando ocorre essa aceleração, nossa prática está dando resultados. Uma boa prática inevitavelmente promove essa aceleração. Devemos notar a promessa que desejamos arrancar das outras pessoas e abandonar o sonho de que elas possam saciar nossa sede. Devemos nos dar conta de que essa é uma iniciativa inútil.
Os cristãos chamam essa constatação de a “noite escura da alma”. Já esgotamos todos os recursos de que dispomos e não vemos mais o que fazer a seguir. E então sofremos. Embora seja um período de aguda infelicidade, esse sofrimento é o ponto de mudança. A prática nos conduz a esse profícuo sofrimento e ajuda-nos a permanecer nele. Quando assim fazemos, em algum momento o sofrimento começa a se transformar, e a água começa a fluir. Para que isso aconteça, todos os nossos lindos sonhos a respeito da vida e da prática têm que se despedir, incluindo a crença de que uma boa prática – aliás, qualquer coisa – irá fazer-nos felizes. A promessa que nunca será cumprida se baseia em sistemas de crenças, em pensamentos centrados na própria pessoa que nos sustentam imobilizados e sedentos. Temos milhares deles. É impossível eliminá-los todos; não vivemos o bastante para isso. A prática não requer que nos livremos deles, mas que simplesmente enxerguemos além deles e os reconheçamos em seu vazio e em sua ausência de validade.
Jogamos esses sistemas de crenças para todo lado como arroz em festa de casamento. Aparecem por toda parte. Por exemplo, quando vai chegando perto do Natal, alimentamos expectativas de que essa seja uma época agradável e divertida, uma bela época do ano. Se esses dias de Natal não satisfazem nossas expectativas, ficamos deprimidos e contrariados. Na realidade, o Natal será o que for, quer nossas expectativas sejam realizadas, quer não. Da mesma maneira, quando descobrimos a prática zen, podemos alimentar a esperança de que isso irá solucionar nossos problemas e tornar nossas vidas perfeitas. Mas a prática zen simplesmente nos remete de volta à vida como ela é. A prática zen trata de sermos mais e mais as nossas vidas tais quais são. Nossas vidas são o que são, e o zen nos ajuda a reconhecer esse fato. O pensamento “Se eu cumprir essa prática com a paciência necessária, tudo será diferente” é um outro sistema de crenças, uma outra versão da promessa que nunca será cumprida. Quais são alguns outros sistemas de crenças?
ALUNO: Se eu trabalhar bastante, vou conseguir.
JOKO: Sim, esse é um bom sistema de crença americano.
ALUNO: Se eu for simpático com as pessoas, elas não vão me magoar.
JOKO: Sim, esse é um que em geral nos desaponta. As pessoas serão como serão, é tudo. Sem garantias.
ALUNO: Minha crença é que estamos todos fazendo o melhor que podemos.
JOKO: Eu também tenho a mesma crença.
ALUNO: Se eu fizer exercícios diariamente, ficarei saudável.
JOKO: Soube recentemente de um sujeito que fazia seus exercícios com regularidade, mas tropeçou e fraturou o quadril.
ALUNO: Se eu morasse em outro lugar, desfrutaria mais a vida.
ALUNO: Se eu ajudar as pessoas, então sou uma pessoa boa.
JOKO: É uma verdadeira armadilha essa crença. Um sistema sedutor que nos trará muitos problemas. Claro, devemos fazer o que é apropriado e necessário, mas num sentido mais profundo não podemos ajudar ninguém.
ALUNO: Já faz tanto tempo que pratico sentado que acho que não devia mais me zangar.
JOKO: Se você está zangado, você está zangado.
ALUNO: Se meu carro pega fácil de manhã, então o dia correrá sem problemas.
ALUNO: Se eu trabalhar por uma causa justa, o mundo será um lugar melhor.
ALUNO: A dor que eu sinto deve tornar-me uma pessoa melhor.
JOKO: Você já é uma boa pessoa, assim como é.
É útil rever nossos sistemas de crenças dessa maneira, porque sempre existe uma que não vemos. Em cada sistema de crenças escondemos uma promessa. Quanto à prática zen: a única promessa com que podemos contar é que, quando acordarmos para nossas vidas, seremos pessoas mais livres. Se acordarmos para o modo como vemos a vida e lidamos com ela, aos poucos iremos nos libertando – não necessariamente mais felizes ou melhores, no entanto mais livres.
Todas as pessoas infelizes que já conheci estavam prisioneiras de um sistema de crenças que alimenta alguma promessa, promessa que nunca foi cumprida. As pessoas que vêm praticando bem já há algum tempo são diferentes apenas pelo fato de que reconhecem esse mecanismo que gera infelicidade e estão aprendendo a manter-se conscientes disso – o que é muito diferente de tentar mudá-lo ou dar um jeito nele. Em si, o processo é tão simples quanto possível. Todavia, nós, seres humanos, consideramo-lo dificílimo. Não temos em absoluto o menor interesse em manter nossa percepção consciente. Queremos estar pensando a respeito de alguma outra coisa, de qualquer outra coisa. Por isso, nossas vidas oferecem-nos o desestímulo interminável, ou seja, o presente perfeito.
Quando as pessoas ouvem isso, querem levantar-se e sair. No entanto, a vida as persegue. Seu sistema de crenças continua mantendo-as infelizes. Queremos nos agarrar aos nossos sistemas de crenças, mas, quando o fazemos, sofremos. Em certo sentido, tudo funciona com perfeição. Nunca me importo quando alguém começa a prática ou a interrompe. Isso não faz nenhuma diferença. O processo segue inevitavelmente adiante. É verdade que algumas pessoas, mesmo que ao longo de uma vida inteira, nunca parecem aprender algo desse processo. Todos conhecemos pessoas assim. No entanto, o processo prossegue, mesmo quando elas o ignoram. A prática diminui nossa capacidade de ignorá-lo. Depois de uma certa dose de prática, mesmo que digamos “Bom, não vou fazer essa prática. É muito difícil”, não podemos evitá-lo. Depois de algum tempo, nós simplesmente praticamos. Assim que a conscientização é despertada, não podemos jogá-la para dentro da caixa de novo.
Os conceitos básicos da prática são de fato bastante simples. Porém, praticar a prática e chegar a um genuíno entendimento dela leva muito tempo. Muitos supõem, nos primeiros dois anos, que a entendem claramente. Na realidade, se praticarmos bem durante dez a quinze anos, estaremos indo bastante bem. Para a maioria, vinte anos é o tempo que leva. É nesse período que a prática se torna razoavelmente clara e a estaremos vivendo o tempo todo que pudermos, do momento em que acordamos pela manhã até a hora de ir dormir. Nessa altura, a prática até continua pela noite adentro, enquanto dormimos. Logo, não existe um “jeito rápido”. Conforme vamos praticando, no entanto, vai se tornando cada vez mais agradável, mais engraçada. Nossos joelhos podem doer, podemos enfrentar toda espécie de adversidades em nossas vidas, mas a prática consegue ser divertida, mesmo quando é difícil, dolorosa e frustrante.
ALUNO: Às vezes é muito estimulante. Sempre que fico livre da dor, na prática, começo a rir.
JOKO: Por que você viu uma coisa que não tinha visto antes? ALUNO: Claro.
ALUNO: Você sugeriu que, em certo sentido, não existe isso de prática zen. Você poderia explicar?
JOKO: Existe a prática de manter a percepção consciente. Nesse sentido, a prática zen existe. Mas, enquanto estamos vivos, existe a questão da conscientização. Não podemos evitá-la. Assim, não existem meios de se evitar a prática, nem de fazê-la. Ela é apenas estar vivo. Embora existam algumas atividades formais que nos ajudam a despertar (e que chamamos de prática zen se quisermos), a verdadeira “prática zen” é apenas estar aqui agora e não acrescentar nada a isso.
ALUNO: Retomando a analogia da parede com pequenas torneiras: quando encontramos uma torneira e nos ligamos a ela, conseguimos um pouco de água, não é?
JOKO: Sim, por algum tempo saciamos ligeiramente nossa sede. Por exemplo, suponha que durante seis meses você quis convidar uma moça para sair e que por fim você arrumou coragem para falar com ela e ela aceitou. Por um breve instante, existe uma sensação imensa de contentamento. A isso chamamos de conseguir água, embora você realmente estar satisfeito seja uma outra questão. Mais cedo ou mais tarde, essa elação diminui e a vida de novo parece que se nos apresenta com novos problemas. Estou falando de um modo de viver em que a própria vida não é problema. Temos problemas, mas não existe problema em lidar com eles. Talvez todos consigam ver isso, mesmo que rapidamente, de vez em quando.
Em certo sentido, o zen é uma prática religiosa. Religião na verdade significa religar aquilo que parece estar separado. A prática zen ajuda-nos com isso. Mas não é uma religião no sentido de que existe algo fora de nós que irá tomar conta de nossas vidas. Uma grande parte das pessoas que entram na prática zen não tem uma filiação religiosa. Nada tenho contra a religião formal. Em todas as religiões existem algumas pessoas notáveis que verdadeiramente praticam e sabem o que estão fazendo. Todavia, também existem aquelas que não possuem nenhum vínculo com uma religião formal e que mesmo assim praticam igualmente bem. No fim, não existe prática, senão aquilo que estamos fazendo a cada segundo.
Uma vez que a verdadeira prática e a verdadeira religião ajudam-nos a religar aquilo que parecia estar separado, toda prática tem que ser acerca da raiva. A raiva é a emoção que nos separa. Ela corta tudo em dois.
ALUNO: Essa não seria uma prática muito difícil para ser realizada inteiramente a sós? Quando um de meus sistemas de crenças se rompe, sinto-me traído e preciso de um certo apoio de outras pessoas.
JOKO: “Sentir-se traído” é, evidentemente, apenas um outro pensamento. É mais difícil praticar sozinho, mas não é impossível.
É proveitoso ir até um centro zen e obter alguns fundamentos, depois manter um contato de longa distância e vir para praticar com os outros, quando puder. Quando a pessoa pratica sozinha é como nadar contra a corrente. Numa comunidade de pessoas que se sentam juntas para praticar, temos uma linguagem comum e um entendimento comum do que é a prática. Mesmo assim, tenho alguns alunos excelentes que vivem bastante longe do centro zen e que falam comigo pelo telefone. Alguns deles estão indo muito bem. E, para alguns, o esforço de praticar com um apoio tão mínimo pode ser a coisa mais proveitosa de todas.