Para interpretar o esquema de pensamento concebido por Hui-Neng e sua escola, pode ser de utilidade seguinte interpretação para os leitores não acostumados ao modo oriental de observar o mundo.
O que chega em primeiro lugar na filosofia de Hui-Neng é a idéia da “Auto-natureza”. Porem a Auto-natureza, devo advertir ao leitor, não devemos concebe-la como algo da substância. Não se trata do último resíduo que fica depois de haver-se extraído todo o relativo e convencional da noção de um ser individual. Não se trata de um eu, nem da alma, nem do espírito, tal como, comumente se considera. Não é algo pertencente a categoria alguma da compreensão. Não pertence a este mundo de relatividades. Também não é a mais divina natureza que geralmente se atribui a Deus, ou ao Atman, ou a Brahma. Não se pode descrever nem definir de modo algum, porem sem ela, tal como a vemos e usamos na vida cotidiana, o mundo se desmorona. Dizer que existe é nega-la. É algo estranho, porém com o que se segue seu significado se tornará mais claro.
Segundo a terminologia tradicional do budismo, a auto-natureza é a “natureza-Budha” a qual estrutura o estado búdico; o Vazio absoluto, o “Shunyata”, o “Tathata”. Pode chamar-se Ser puro, segundo a terminologia filosófica ocidental? Porquanto nada tenha a ver ainda com o mundo dualista de sujeito-objeto, por conveniência o chamarei de Mente, com maiúscula e também de Inconsciente. Como a fraseologia budista está saturada de termos psicológicos, e como a religião se relaciona principalmente com a filosofia da vida, estes termos, Mente e Inconsciente, se usam aqui como sinônimos de Auto-natureza, porém temos de ter o máximo cuidado de não confundi-los com os da psicologia empírica.
Nesta Auto-natureza, há um movimento, um despertar, e o Inconsciente se torna consciente de si mesmo. Este não é o lugar em que se possa formular as perguntas “Por que?” nem “Como?” O despertar, movimento ou como queiram chamar, deve tomar-se como um fato que transcende a refutação. Soa o sino e ouço as vibrações transmitidas através do ar. É um fato claro da percepção. Do mesmo modo, o surgimento da consciência no Inconsciente é um assunto da experiência; nenhum mistério é relacionado a isto. porém, dito logicamente, há uma contradição aparente que, uma vez iniciada, segue contradizendo-se eternamente. Seja o que for, agora temos um Inconsciente autoconsciente ou uma Mente autoreflexiva. Transformada dessa maneira, a Autonatureza se conhece como “Prajna”.
O “Prajna”, que é o despertar da consciência no Inconsciente funciona em dupla direção. Uma aponta o Inconsciente e outra ao consciente. O “Prajna” orientado para o inconsciente é o Prajna propriamente dito, enquanto o Prajna da consciência passa a chamar-se mente porem com letra minúscula. Desta mente surge um mundo dualista: sujeito e objeto, o eu interior e o mundo exterior, etc. Na Mente, portanto se distingue dois aspectos: a mente-Prajna da não discriminação e a mente dualista. A mente do primeiro aspecto pertence a este mundo, porem ao estar ligada com o Prajna se encontra em comunicação direta com o Inconsciente, é a Mente; enquanto a mente do segundo aspecto pertence totalmente a este mundo, se deleita com ele e se mistura com todas as suas multiplicidades.
A mente do segundo aspecto se chama, segundo Hui-Neng, “pensamento”. “nen nien”. Do ponto de vista relativo, a mente do primeiro aspecto pode designar-se “não-mente” para distingui-la, em contraposição, à mente do segundo aspecto. Como a última pertence a este aspecto de nossa experiência comum, a primeira é transcendental e segundo os termos da filosofia Zen é “aquilo-que-não-é-a-mente”, ou “não-mente”, ou “não-pensamento”.
Repetindo: O “Prajna” é uma espada de dois gumes, um lado corta o Inconsciente e o outro o consciente. O primeiro também se chama Mente, que corresponde à “não-mente”.
Com a interpretação do pensamento Zen de Hui-Neng, auxiliado pela análise diagramática, vamos ler as seguintes definições de “wu-nien”, “não-pensamento” ou “não-mente” extraídos do T’an-ching, confiando que Hui-Neng ficará mais inteligível, e com ele todos os mestres Zen.
Hui-Neng define o “wu-nien”: “Ter pensamentos como se não os tivesse”. [ou seria melhor: “Ter pensamentos e, contudo, não tê-los”?] Isto evidentemente significa estar consciente do Inconsciente ou “encontrar o Inconsciente na consciência”; isto pertence ao grau C acima do plano empírico. Hui-Neng diz ainda sobre o “wu-nien”: “Enfrentando todos os objetos circundantes, a mente permanece imaculada”; vale dizer, não surgem pensamentos na mente. Com objetos circundantes se quer dizer um mundo de consciências, e não manchar-se nele sinaliza ao Inconsciente, um estado onde nem os pensamentos nem a consciência interferem com o funcionamento da Mente.
Diz ainda Hui-Neng:
“Que é “wu-nien”? [ausência de pensamento] – Ver todas as coisas e contudo manter livre a mente da mancha do apego; isto é a ausência de pensamento”.
“Quem entende a idéia de ausência de pensamento tem um perfeito lugar de passagem no mundo das multiplicidades. Quem entende a idéia da ausência de pensamento vê o reino de todos os Budas e alcança a etapa do estado búdico”.
Note-se com respeito ao diagrama, que o Inconsciente que se desenvolve por graus, por assim dizer, descendo até a mente empírica, não tem nada a ver com nenhuma forma de gradação. Podemos imaginar que no Inconsciente há graus, no sentido de que são de diferentes naturezas, e que nos inferiores não há nada dos superiores. Isto não é verdade, pois todos os Inconscientes estão fundidos reciprocamente. Quando se capta integralmente um, se compreende todo o resto. Todos os Inconscientes são de um só sabor.
Enquanto a que significa o despertar do “Prajna” no sistema de Hui-Neng damos abaixo mais esclarecimentos:
“Quando se desperta para o Prajna genuíno e refletimos sua luz [na Autonatureza], desaparecem instantaneamente todos os falsos pensamentos. Quando se reconhece a Autonatureza, esta compreensão conduz de imediato a etapa búdica”.
“Quando o Prajna se reflete com sua luz e ilumina penetrantemente dentro e fora, reconheces tua própria Mente. Quando tua própria Mente é reconhecida, há então emancipação. Quando tens emancipação, isto significa que estás no “Samadhi” do Prajna, o qual é “wu nien” [ausência de pensamento].
“Essa Mente não é outra que o Buda, e o Buda não é outro que os seres. Quando é os seres, esta Mente não demonstra decrescimento; quando é o Buda, não demonstra incremento. Tenha somente uma intuição da Mente Única, e saberás que não há coisa alguma que possas reclamar como própria. Este constitui o verdadeiro estado búdico.
Trechos do Livro: THE ZEN DOCTRINE OF NO MIND – Daisetz Teitaro Suzuki