O ciclo do dia e da noite

Chögyal Namkhaï Norbu Rinpoche

Onde progredimos na Via do Yoga Primordial

Texto essencial sobre a prática do Dzogchen ordenado, traduzido e apresentado por John Reynolds para a edição americana.
Texto principal: LE CYCLE DU JOUR ET DE LA NUIT – Traduzido do tibetano por Patrick Carré.

Apresentação e comentários traduzidos do inglês por Madaleine Carré.
Tradução para o português: Flávio Capllonch Cardoso

ESTA TRADUÇÃO É PARA SER UTILIZADA POR UM CÍRCULO RESTRITO DE PESSOAS, PEDIMOS NÃO DIVULGAR

PREFÁCIO

Esse texto, intitulado em tibetano gDod-ma’i mal-‘byor-gyi Lamkhyer nyin-mtshan ‘khor-lo-ma, foi escrito por Namkhaï Norbu Rinpoche antes do retiro que ele dirigiu na Comunidade Dzogchen de Conway em Massachusetts, em outubro de 1993.
Na seção Longde dos ensinamentos dzogchen encontram-se as instruções de Garab Dorje sobre a prática da contemplação seguida dia e noite, e o texto que apresentamos aqui é um resumo dessas práticas.
A tradição budista tibetana considera Garab Dorje como o primeiro mestre humano do sistema de práticas contemplativas dzogchen. É freqüente traduzir a expressão tibetana dzogchen por “Grande Perfeição”, a qual constitui no Tibete a quintessência dos ensinamentos budistas. Garab Dorje nasceu no país de Uddiyâna, ao noroeste da Índia, e teria recebido diretamente de Vajrasattva o aspecto sambhogakaya da budeidade, a transmissão do dzogchen. Vajrasattva recebeu a transmissão direta, de mente a mente, do Budha primordial Samantabhadra. Garab Dorje transmitiu o dzogchen à Manjushrimitra, que o transmitiu à Budhajnana, depois à Shri Simha. No VIIIº século de nossa era, guru Padmasambhava, Vimalamitra e o tradutor Bairotsana trouxeram a tradição dzogchen ao Tibete.
Após a época desses grandes mestres, os ensinamentos do dzogchen foram perpetuados de mestre a discípulo no fio de uma transmissão ininterrupta. O sistema da escola nyingmapa do Tibete considera o dzogchen, também chamado ati-yoga, como o nono veículo, o mais elevado dos nove em que escalona os ensinamentos do Budha. Todavia, o dzogchen apareceu no Tibet bem antes do aparecimento das diferentes escolas do budismo tibetano.
Numerosos mestres eminentes pertencentes às quatro grandes escolas do budismo tibetano, como o quinto Dalai Lama, o terceiro Karmapa, o Droukpa Pema Karpo e outras ilustres personalidades, praticaram abertamente esses ensinamentos. Outros ainda o praticaram em segredo. Por conseguinte, não há a menor dúvida que o dzogchen não é propriedade exclusiva de nenhuma escola e, na verdade, seus ensinamentos se situam bem além de qualquer limite de escola, de cultura e de nacionalidade.
O dzogchen consiste, para o indivíduo, em compreender seu estado primordial, a natureza incondicional de sua mente no imediatismo de sua experiência. A essência da mente transcende seus conteúdos específicos, os pensamentos que aí surgem refletem os condicionamentos psicológicos, sociais e culturais. Podemos estabelecer uma diferença análoga entre o espelho, que tem naturalmente o poder de refletir as imagens, e os reflexos que aparecem. Não se deve confundir o espelho com seus reflexos. Desprovida de qualquer limitação, a apresentação do dzogchen que encontraremos nessa obra obedece à tradição rimé, ou “não-sectária”, de grandes mestres quase contemporâneos do Tibete Oriental como Jamyang Khyentsé Nangpo, Jamgön Kontrul, Tchokgyour Lingpa e Adzom Drougpa.
Os números que acompanham a tradução remetem às diferentes estrofes do texto tibetano. O comentário, em seguida à tradução, respeita a mesma ordem. Essas são notas inspiradas pela explicação oral do texto que Namkhaï Norbu deu na ocasião do retiro de Conway, em 8 e 9 de outubro de 1983. Nesta época, Namkhaï Norbu se expressava em italiano e era traduzido para o inglês por Kennard Lipman e John Shane.
O tradutor gostaria de agradecer a Mm. Kennard Lipman e John Shane por sua ajuda inestimável na elaboração do texto em inglês. Ele deseja igualmente agradecer aos membros da comunidade dzogchen de Conway, que participaram de uma maneira ou de outra e, sobretudo a este projeto.
Possa esta tradução ser de algum benefício prático a todos aqueles que a lerem.

Sarvamangalam!

John Myrdhin Reynolds
Conway, Massachusetts,
Novembro 1983

INTRODUÇÃO

O texto de Namkhaï Norbu Rinpoche cuja tradução aqui se encontra e que se intitula “O Ciclo do Dia e da Noite”, onde progredimos na Via do yoga primordial, não é uma apresentação universitária do dzogchen, nem um estudo erudito sobre a literatura dzogchen que nos é apresentada em tibetano. Trata-se, sobretudo de um upadesha , quer dizer, de um ensinamento sobre alguns pontos essenciais da prática dzogchen. Encontraremos aqui uma explicação precisa e detalhada, embora concisa, da prática da contemplação contínua, durante o dia e a noite.
Tradicionalmente, os upadesha são instruções orais secretas que o mestre dá em particular a seus discípulos já engajados na via da realização. Como estes upadesha emanam da experiência pessoal de mestres realizados, tendo eles próprios atingido um grau de realização definitivo em sua prática, levam sobre alguns pontos, ao mesmo tempo teóricos e práticos, concernentes diretamente à prática a experiência do yogui.
Namkhaï Norbu Rinpoche é um desses mestres realizados. Nascido em uma nobre família do Dergue, no Tibete oriental, recebeu educação acadêmica a mais refinada que se encontrava à sua disposição na região – a da escola sakyapa do budismo tibetano. A isso se junta o fato de ter sido reconhecido muito cedo como a reencarnação de um lama, ou tulku, precisamente a reencarnação de Adzom Drugpa (1842-1924), um dos mestres e gurus do dzogchen dos mais célebres da virada do nosso século. Em seguida, o sexto Gyalwa Karmapa e Tai Situ Rinpoche de Palpoung reconheceram nele a reencarnação do ilustre Droukpa Pema Karpo (1527-1592), grande erudito e chefe da escola Droukpa Kagiu do budismo tibetano . Mas a essência do dzogchen não se encontra na erudição acadêmica, e ela não tem necessidade do crédito da hierarquia eclesiástica. O dzogchen se situa além dessas barreiras intelectuais e culturais. Não foi senão no encontro com seu mestre-raiz que Namkhaï Norbu Rinpoche veio a compreender o sentido do dzogchen através da experiência pessoal direta e a realização. O mestre em questão foi Nyala Chang-Chub Dorje (1826-1978), lama nyingmapa e médico, mestre espiritual e guia de uma comunidade de praticantes laicos, em um vale recolhido a leste de Dergue. Desse mestre, Namkhaï Norbu Rinpoche recebeu as transmissões mais importantes das três séries de ensinamentos dzogchen: o semde, o longde e o mengagde . Para mais detalhes sobre a vida de Namkhaï Norbu Rinpoche, nos reportaremos a sua biografia sucinta no fim do volume.
Este texto lhe foi inspirado por suas experiências pessoais e por sua própria realização do dzogchen. Mas acharemos também aqui uma fusão da tradição e da experiência pessoal do mestre. Na série do longde (Klong-sde) dos ensinamentos dzogchen, encontramos as instruções sobre a maneira de aplicar-se à contemplação de maneira contínua, tanto ao dia como à noite, e mais particularmente, no texto de Garab Dorje intitulado Byang-chub-sems bcos-thabs mdor-bsdus . Garab Dorje, na tradição budista tibetana, é o primeiro mestre humano de dzogchen, e o texto de Namkhaï Norbu Rinpoche é por assim dizer um resumo dos ensinamentos. Ora, o dzogchen não é muito bem conhecido no ocidente no momento atual e, ainda que o tenhamos por um elemento do budismo tibetano, me parece necessário trazer alguns esclarecimentos sobre o lugar que o dzogchen tem efetivamente no budismo tibetano e sobre suas origens.
No Tibete, vemos tradicionalmente no dzogchen o mais elevado e quintessêncial dos ensinamentos de Budha; e é corrente de lhe fazer o apanágio da escola nyingmapa, a mais antiga do budismo tibetano, sabendo pertinentemente que o dzogchen transcende todos os sectarismos. E ainda, a chegada do dzogchen no Tibete foi precedida por longa data de eclosão das diferentes escolas religiosas no meio do budismo tibetano. Essas escolas não se tornaram existentes senão a partir da nova vaga de traduções do sânscrito em tibetano, no século XI de nossa era. O mais freqüente, é ligarmos o dzogchen à escola nyingmapa, que é a depositária das tradições originárias do período das primeiras traduções (séculos VII-IX), certamente, mas o dzogchen não é uma seita nem uma escola filosófica. É, sobretudo uma via que nos conduz à realização de nosso estado primordial, o qual transcende a existência condicionada e, enquanto tal, não se limitaria a nenhum contexto cultural histórico ou particular.
A palavra tibetana dzogchen corresponde no sânscrito a mahasandhi, que traduzimos habitualmente por “Grande Perfeição”. Este ensinamento leva o nome de grande perfeição porque ele é completo e perfeito em si mesmo e que nada lhe falta, e ele é grande no sentido de que nada existe maior que ele ou que o ultrapasse. Fundamentalmente, o nome dzogchen não é o nome de um ensinamento entre tantos outros, mas o nome do estado primordial do indivíduo, nossa própria natureza de budha, a natureza de nossa mente. Nos tantras do dzogchen, especialmente os da série semde, este estado primordial se chama bodhichitta, mas nesse contexto o termo toma um sentido diferente do que no sistema, melhor conhecido, dos sutras do budismo mahayana. Nos sutras do mahayana, bodhichitta, o “pensamento desperto” (a mente desperta), é a firme resolução que toma o bodhisattva de atingir a iluminação suprema de um Bhuda com o objetivo de servir a todos os seres animados e de os liberar do samsara, o ciclo sem começo de mortes e renascimentos. Nos tantras do dzogchen, bodhichitta tem um sentido mais particular.
O sânscrito bodhichitta, traduzido em tibetano por byang-chubsems, se interpreta no dzogchen como byang “puro” desde o começo; chub “perfeito”, quer dizer, espontaneamente realizado em si; e sems, “mente”, para designar a energia da compaixão que nada segura. A pureza primordial (Ka-dag) e a perfeição espontânea (lhun-grub) são os dois aspectos do estado primordial de cada indivíduo; na natureza da mente, elas estão inseparavelmente unidas (dbyer-med). O quadro abaixo mostra os diferentes aspectos do estado primordial e suas implicações:

1. Essência
ngo-bo
Vacuidade
stong-nyid
primordialmente pura
ka-dag
Dharmakaya
chos sku

2. Natureza
rang-bzhin
Claridade
gsal-ba
espontaneamente perfeita
lhun-grub
Sambhogakaya
long-sku

3. Energia
thugs-rje
Indefectibilidade

ma-‘gag-pa

Inseparavelmente unidos
dbyer-med
Nirmanakaya
sprul-sku

O estado primordial é não-dual, mas para falar também de suas manifestações distinguimos três aspectos. A essência da mente, que é primordialmente pura, é vacuidade, esse é o dharmakaya. Sua natureza é claridade luminosa, que é por si mesma espontaneamente perfeita, eis o sambhogakaya. Sua energia que nada obstrui é onipenetrante, esse é o nirmanakaya. O estado primordial é a natureza da mente e se manifesta como sua essência, sua natureza e sua energia.
Toda via espiritual pode se analisar em termos de Base, Via e Fruto. No caso do hetuyana, ou veículo causal, o qual corresponde ao sistema dos sutras do mahayana, o fundamento ou base é nossa natureza de Budha inata, a via é a prática das seis perfeições – generosidade, disciplina, paciência, coragem, meditação e conhecimento – que o bodisatva cultivará durante três kalpas imensuráveis, e o fruto será a obtenção do trikaya, dito de outro modo, as três dimensões de um Budha .
Falamos aqui de veículo causal porque existe uma causa, nossa natureza inata de Budha. Entretanto, esta natureza de Budha só existe potencialmente, como a semente de uma árvore na terra. É preciso reunir um grande número de condições secundárias – estação, chuva, etc. – para que a semente comece a germinar, amadureça e chegue ao fruto. Igualmente, a acumulação de méritos e a acumulação de sabedoria são as condições necessárias da realização de nossa natureza de Budha inata enquanto que manifestação do trikaya. No dzogchen, entretanto, a via é bem diferente. O trikaya já está desde sempre, totalmente manifesto como a natureza mesma da mente, embora esteja irreconhecível, encontra-se sempre no alto do céu, permanentemente, quando as nuvens se dissipam, ele se torna claramente visível. É a mesma coisa para a budeidade: ela sempre esteve presente, e nós não a reconhecemos. Mesmo não reconhecido, o trikaya já está, desde o início, inteiramente manifesto como essência, natureza e energia da mente. Diremos em conseqüência que, no dzogchen, o fundamento é o trikaya, a via é o trikaya, e o fruto é o trikaya. O dzogchen é, pois o phalayana, ou veículo resultante – é o mesmo que dizer que o efeito já está presente na causa.
No dzogchen, estabelecemos uma distinção clara, límpida e essencial entre a natureza da mente e a mente, a saber, os processos de nossos pensamentos, o fluxo incessante dos conceitos discursivos nos ocupa constantemente. Se quisermos compreender bem o dzogchen, é preciso apreender claramente a diferença. Para nos ajudar a compreender, a tradição tem recorrido a uma metáfora. Se a natureza da mente é comparável a um espelho polido com o mais alto acabamento, os pensamentos, as emoções, as compulsões, as impressões e as sensações individuais não são mais que reflexos que aparecem no espelho. O que a palavra tibetana rig-pa – que pode se traduzir por “consciência enquanto tal’, ou ainda “presença pura” – é comparável ao poder inerente do espelho de refletir a imagem de tudo que é colocado diante dele, as coisas belas ou feias indiferentemente. O contrário de rig-pa, “consciência e presença”, é ma-rig-pa, “ignorância”, ou baixa de consciência. Quando estamos presentes e conscientes, temos o mesmo poder, por assim dizer, que o espelho; quando na ignorância, nos submetemos ao poder dos reflexos e pensamos que tudo o que aparece é substancial e verdadeiro. Com a consciência enquanto tal, existimos na condição desperta; com ignorância, nos encontramos presos na roda da transmigração. O estado primordial não designa nada além da natureza da mente, tal como é, a qual transcende o tempo e a existência condicionada. A budeidade já está completamente realizada e manifesta desde o início, enquanto natureza da mente, embora até o momento presente não a tenhamos reconhecido.
O guru, o mestre, tem por função nos mostrar a natureza da mente, nos conduzindo a descobrir o que ela capta, em sua plena capacidade, desperta e de pura presença (rig-pa). A “contemplação” (samadhi) designa a entrada neste estado de pura presença. É preciso fazer a distinção entre a contemplação e a meditação. A presença enquanto tal transcende a existência condicionada e se encontra, pois fora dela e fora do tempo: ela transcende a mente, enquanto que a meditação implica o funcionamento da mente. A meditação é, por isso, condicionada e se desenvolve no tempo. Para nos mostrar nossa natureza, o mestre começa por nos indicar em nossa experiência imediata o que é “mente” e o que é “natureza da mente”. Existem numerosos métodos para nos ajudar a reconhecer esta distinção de maneira concreta: é isso que chamamos khorde roushen – fazer a diferença entre samsara e nirvana. Aqui, samsara significa “mente” e nirvana, “natureza da mente”. Os roushen constituem de fato os ngöndro, as práticas preliminares do dzogchen. O que os discípulos ocidentais entendem habitualmente por ngöndro não é da alçada do dzogchen: trata-se de preliminares das práticas tântricas, a via da transformação . Entretanto, todas as práticas dos sutras e dos tantras podem ser utilizadas vantajosamente pelo dzogchen. Mas a prática que permanece absolutamente essencial é o guru yoga, porque o dzogchen, como os outros ensinamentos espirituais, dependem da transmissão, e o guru yoga é o melhor meio de preservar todas as transmissões que recebemos.
As fontes mais antigas da tradição dzogchen são os textos chamados “tantras do dzogchen”. Originalmente, esses textos foram estabelecidos e escritos na língua do país de Uddiyâna, que se aproxima do sânscrito. Em tempos antigos, Uddiyâna designava um reino do noroeste da Índia . Repartimos, geralmente, os ensinamentos de Budha em dois conjuntos de discursos: os sutras e os tantras. Esses ensinamentos todos são tidos pelos lamas tibetanos por buddhavacana, palavras autênticas de Budha. O Budha ensina diferentes doutrina e práticas não porque ele não conheça a verdade, mas porque as capacidades de compreensão de seus ouvintes eram muito diferentes. Por isso sua grande compaixão e sua habilidade com os métodos encontraram uma expressão com uma tão grande riqueza: ele instruiu cada um dos seus discípulos, se adaptando a suas faculdades, para que eles compreendessem os ensinamentos e os pudessem praticar. Esses ensinamentos foram classificados em três veículos que conduzem ao despertar, a saber, o hinayana, o mahayana e o vajrayana.
A escola nyingmapa do Tibete classificou os ensinamentos de Budha de maneira muito precisa em nove veículos progressivos. O primeiro veículo é o dos shrâvakas, dos “auditores”, ou adeptos do hinayana. É a via que o Budha revela essencialmente em seu primeiro discurso, no parque das gazelas em Sarnath, próximo de Benares: o que chamamos a “primeira volta do Dharma” (dos ensinamentos). Em seu primeiro discurso, o Budha expõe As Quatro Nobre Verdades e o caminho óctuplo. Esses ensinamentos são objetos de explicações minuciosas próprias aos sutras do hinayana. O segundo veículo é o dos pratyekabudha, ou “budhas para si”, aqueles que atingem a realização na solidão. Os shrâvacas são os “auditores” porque eles têm necessidade de entender as instruções orais de Budha para encontrar a via correta, então os pratyekabudha encontram o caminho para si mesmos e vivem uma vida solitária de práticas meditativas em um lugar selvagem, evitando qualquer comunicação e contato com outros homens. Eis porque são comparados aos rinocerontes, animais cujos hábitos não sociais são bem conhecidos. Esses dois veículos formam em conjunto o hinayana ou pequeno veículo do despertar, assim chamado porque tem por objetivo uma salvação pessoal única, desprezando a salvação de todos os outros. O método principal aqui é a via da renúncia. O pequeno veículo tem como ponto de partida o desgosto pelo mundo, por caminho o tríplice exercício da disciplina, da concentração e do conhecimento, e por objetivo a liberação pessoal do samsara, ao nível do arhat (nesse caso dos shrâvaka) ou pratyekabudha.
O terceiro veículo é o do bodhisatva. O bodhisatva é um ser a caminho de se tornar um budha totalmente desperto e o bodhisatva ultrapassa o objetivo menor do arhat. Tornamo-nos bodhisatvas gerando bodhichitta, a “mente do despertar”, a determinação de atingir o despertar do Budha supremamente perfeito, não para seu único bem, mas por compaixão a todos os seres que merecem ser salvos e liberados do samsara.
Este caminho leva o nome de mahayana, “grande veículo”, porque seu objetivo é proporcionalmente maior do que o do “pequeno veículo” – liberação universal, liberação do samsara para todos os seres e não para si. Encontramos esses ensinamentos nos sutras do mahayana, cujos discursos foram pronunciados por Budha no pico dos Abutres de Rajgir e em outros lugares. Esses discursos constituem seus segundo e terceiros giros da roda (ciclo de ensinamentos), no curso dos quais ele expõe, de um lado, o conhecimento transcendente (Prajnaparamita) e, de outro lado, os ensinamentos sobre a ‘mente única’ (cittamatra). Dessas duas séries de discursos posteriormente nasceram duas escolas filosóficas: o madhyamaka, que ensina o caminho do meio livre de toda via extrema, e o yogachara, que professa essencialmente a doutrina da “mente única”. Para o mahayana, o fundamento ou base é nossa Natureza Budha inata, a Via é a prática das seis perfeições que permitem acumular méritos e sabedoria, e o Fruto é a realização da budeidade. O método principal é aqui a Via de purificação (sbyong-lam). Convencionalmente, os ensinamentos do hinayana e do mahayana formam o “sistema dos sutras”, os quais foram revelados pelo Budha histórico, Shakyamuni, o aspecto nirmanakaya da budeidade. Os tantras exteriores, ou inferiores designam os três veículos seguindo a ordem do nosso esquema de classificação. Os métodos descritos nesses tantras se compõem de rituais elaborados e de purificação. O método principal é aqui, ainda, como nos sutras mahayanas, a via da purificação, e no yogatantra igualmente, onde a Via de transformação não faz mais que apontar. O quarto veículo é pois o kriyatantra, ou a prática, principalmente exterior, exige um número considerável de atividades rituais. Daí seu nome kriya, que significa “ação ritual”. O quinto veículo é o caryatantra, em parte interior, em parte exterior no que concerne à prática. Encontramos numerosas regras de conduta, daí o nome carya, que significa “conduta”. A descrição que dão os tantras da kriya e de carya do método que permite atingir a budeidade é similar às explicações dos sutras mahayanas. O sexto veículo é o yogatantra, ou a prática, essencialmente interior, consiste mais em visualização que em rituais para conhecer a experiência de união (yoga) do praticante e da deidade de meditação. Dizemos que os ensinamentos que pertencem aos tantras são revelados por Vajrasatva, dimensão trans-histórica, sambhogakaya, da budeidade. Os ensinamentos dos tantras, tanto exteriores como interiores, receberam o nome de vajrayana, ou “veículo adamantino” do despertar. Por contraste com o sistema de sutras, falamos assim do “sistema dos tantras” .
Os tantras interiores, ou superiores, compreendem os três veículos superiores do mahayoga, do anuyoga e do atiyoga. O sétimo veículo, o mahayoga, que comporta uma seção “tantra” e uma seção “sadhana”, recorre à visualização detalhada das deidades e dos mandalas, e usa essencialmente o processo de desenvolvimento, ou “fase de criação”. Como se trata de um processo de transformação gradual, a visualização da deidade ou do mandala se cria ou gera por fases sucessivas. O método dos tantras superiores é a via da transformação propriamente dita. Aliás, eis uma comparação tradicional que ilustra nosso propósito. O praticante hinayana percebe o caminho como se ele tivesse que caminhar sobre a planta venenosa das paixões; ele a evita porque conhece os efeitos do veneno da planta. O praticante do mahayana que tomou o mesmo caminho e está diante da mesma planta não tem medo de tocá-la pelo fato que ele conhece o antídoto. Ele sabe como se purificar de seu veneno dissolvendo-o na vacuidade durante sua meditação para torná-lo inofensivo. Enfim, no mesmo caminho, o praticante do vajrayana, diante da mesma planta venenosa, não tem o menor medo e não hesita mesmo em comer o fruto, porque ele sabe transformar o veneno em pura ambrosia. Aqui, pois, o método é a transformação alquímica do veneno das paixões, no vaso do nosso corpo, em elixir de sabedoria da presença desperta. Esse sistema culmina no mahayoga quando se realiza a experiência da inseparabilidade das aparências e do vazio. As escolas mais recentes do budismo tibetano – sakya, kagyu e guelupa –, se apoiando nas novas traduções dos textos tântricos indianos, se referem antes aos tantras do anuttara, e podemos dizer que esses últimos correspondem mais ou menos aos tantras que classificamos no mahayoga.
O oitavo veículo, ou anuyoga, coloca o acento prático sobre o processo de perfeição, ou “fase de completude”. Esse sistema utiliza de maneira aprofundada o yoga dos canais sutis e das energias; ele leva o praticante até a experiência da inseparabilidade da felicidade e do vazio. Mas aqui, o método de transformação não é o mesmo que no mahayoga, porque a transformação não é necessariamente progressiva. Nos tantras superiores, o fundamento, ou base, é o corpo humano com seus canais psíquicos e seus chakras, a via é a prática das fases de criação e de perfeição, e o fruto é a realização da budeidade em três corpos.
O nono veículo, o mais elevado, é o atiyoga, ou dzogchen, o que significa, como vimos, “grande perfeição”. Ora, no dzogchen, as fases de criação e de perfeição, ou dito de outro modo, as visualizações elaboradas das deidades e dos mandalas, como no yoga interior esotérico dos canais e energias, não são mais necessárias. O método último do dzogchen não é a renúncia, nem a purificação, nem a transformação, como nos sutras e nos tantras, mas a via da liberação espontânea (auto-liberação). O essencial aqui é atingir diretamente um estado de contemplação sem ter preliminarmente praticado nenhum exercício de transformação. A realização que se segue é a experiência mesma da inseparabilidade do vazio e da presença desperta. Os tantras do dzogchen, ou atiyoga, apresentam três séries de ensinamentos. Inicialmente, a “série da mente” (sems-de), cuja aproximação mais intelectual oferece uma explicação progressiva da entrada num estado contemplativo, lembrando o sistema mahamudra dos anuttaratantra que ele divide em ‘quatro yogas’ ou graus. A “série do espaço” (klongs-de) é mais direta: os graus aí não se sucedem mais como na série precedente, mas são antes simultâneos. Enfim, na “série das instruções secretas” (man-ngag-gi-sde), já somos capazes de entrar na contemplação, recebemos alguns conselhos precisos, e estudamos os métodos que permitem prolongar o estado contemplativo.
Os ensinamentos dos tantras da Grande Perfeição foram todos revelados pelo Budha Primordial Samantabhadra, o aspecto dharmakaya da budeidade, o qual transcende todos os conceitos possíveis do intelecto limitado. Os tantras do dzogchen não emanam diretamente do Budha histórico Shakyamuni, que viveu e ensinou no norte da índia, há mais ou menos dois mil e quinhentos anos. Todavia, a budeidade, ou dito de outro modo, o princípio do despertar, não se limitaria a um ponto específico do tempo e da história. Não é como se alguém tenha atingido a budeidade uma vez por todas, um certo dia, e que não nos restará senão preservar as tradições que surgiram desse acontecimento. Nossa salvação não depende apenas da fé em um acontecimento histórico. A budeidade é de fato “alguma coisa primordial”. Mas ela está sempre, e igualmente, presente no coração de cada um dos seres animados como seu potencial de despertar e de liberação. Não existe um único ser animado que não seja Budha em potencial. Entretanto, malgrado sua onipresença, aqui e agora, no curso de vidas imemoriais, nosso potencial de despertar está encoberto por véus emocionais e cognitivos. Portanto, esta budeidade está constantemente aqui, como o sol que não deixa nunca o céu, mesmo quando as nuvens o obscurecem. Dissipadas as nuvens, o sol aparece em toda a sua claridade. Igualmente, quando se dissolvem os véus, nossa budeidade essencial, que não tínhamos até então reconhecido, se manifesta espontaneamente e se torna visível no esplendor e em sua glória. De fato, a via espiritual, onde, na linguagem budista, a “prática do dharma”, conduz à dissolução das trevas amontoadas para que enfim, nosso despertar inato penetre completamente com seu brilho iluminado nossa vida e o mundo inteiramente.
Pois o princípio do despertar ultrapassa o tempo do ser condicionado, a budeidade pode se manifestar não importa em que instante e não se restringirá a uma revelação, referindo-se a uma encarnação que tenha existido em uma data precisa da história e do tempo. Conseqüentemente, muitas vezes os ensinamentos do dzogchen foram revelados, e serão ainda muitas vezes no curso da história da humanidade neste planeta. Os tantras do dzogchen falam de doze grandes mestres da Grande Perfeição que apareceram em tempos pré-históricos e que Shakyamuni foi o último. Mas o dzogchen não é exclusividade da espécie humana, que domina o planeta terra. Os tantras do dzogchen, e particularmente o tantra da “redução ao absurdo de toda linguagem”, shabda-maha-prasanga-tantra , mencionam treze sistemas estelares onde se preservam e ensinam o dzogchen atualmente. Com efeito, segundo as mesmas fontes, não encontramos apenas em nosso mundo senão alguns 64.000 tantras. Numerosos tantras chegaram a esse planeta provindos de outros mundos e de outras dimensões do ser, dos vidyadharas humanos e não humanos. Um vidyadhara, em tibetano rig-‘dzin, é um ser que encontrou (‘dzin) o conhecimento do estado primordial (rig-pa).
Quando a budeidade, ou o princípio do despertar, se manifesta fora do tempo e das condições históricas, nós o chamamos de Vajrasattva. Esta manifestação apresenta cinco perfeições supremas: perfeição do mestre, o sambhogakaya, a esfera mais elevada da existência. Perfeição do entorno, seu auditório de grandes bodisattvas. Perfeição de sua doutrina, o conjunto dos ensinamentos do mahayana e do vajrayana. E perfeição do tempo da revelação, a atemporalidade, a qual escapa do processo temporal. Quando um bodisatva tem suficiente pureza em sua mente e em sua visão, a dimensão sambhogakaya lhe aparece com evidência, e ele pode receber os ensinamentos da boca do Budha Vajrasattva. Isso aconteceu em numerosas regiões da Índia e em outros lugares, em Uddiyâna, após a época de Shakyamuni: alguns grandes adeptos, ou mahasidhas, apareceram, tais como Saraha, Nagarjuna, Kambalapa, o rei Jah e outros, que receberam assim a revelação dos tantras.
Na tradição dzogchen, reconhecemos três grandes tipos de transmissão:

1. A transmissão direta, que tem lugar em um instante, diretamente de mente a mente, sem que qualquer palavra intervenha;
2. A transmissão simbólica, que recorre aos signos e aos símbolos visuais, em silêncio ou com poucas palavras;
3. A transmissão oral, que é uma explicação verbal sussurrada pelo mestre no ouvido do discípulo.

Na nossa tradição, a fonte última dos ensinamentos dzogchen é o dharmakaya, o Budha primordial Samantabhadra que as tankas tibetanas representam, convencionalmente, com o aspecto de um yogui nu, azul como o céu, sentado na postura meditativa bem no meio do espaço. Embora, em si mesmo, o dharmakaya transcenda os conceitos de intelecção e seja, pois, inexprimível em palavras, nós o representamos simbolicamente nessa forma aquilo que é realmente onipresente e não tem forma, a fim de nos dar, conforme nossas concepções limitadas, uma idéia mais ou menos concreta de sua profundidade e de sua imensidão. Samantabhadra está nu porque, em si mesma, a natureza da mente é despida de qualquer pensamento discursivo e de todos os conceitos; e ele tem a cor do céu porque a natureza da mente é vazia, clara e aberta como o céu. O chamamos Adibudha, “Budha primordial”, porque, jamais em nenhum instante, ele se deixou apanhar na armadilha do samsara. Duas purezas o ornamentam: ele é puro por natureza e limpo de todas as sujeiras adventícias. A palavra sânscrita dharmakaya designa dimensão (kaya) do real (dharma). A passagem dos ensinamentos dzogchen do dharmakaya Samantahbadra ao sambhogakaya Vajrasatva é uma transmissão direta. Os ensinamentos dos tantras da grande perfeição, como no Kulayaraja Tantra , por exemplo, se apresentam geralmente como um diálogo entre Samantabhadra e Vajrasattva, o primeiro representando o mestre e o segundo, seu auditório. Mas, como os tantras explicam, o mestre e seus ouvintes são de fato idênticos; eles aparecem como duas entidades separadas e independentes unicamente para que os ensinamentos atinjam o entendimento humano sob o aspecto de diálogos .
Vajrasattva encarna o aspecto sambhogakaya da budeidade. Entretanto, sob seu aspecto coletivo, é comum representar-se o sambhogakaya como os cinco tathagatas, mais conhecidos no ocidente sob o nome de dhyani-budhas . Os cinco budhas formam assim o auditório de Vajrasattva, e, nesse caso ainda, o mestre e seu auditório se equivalem em termos de essência. Descrevemos Vajrasattva como um ser branco (ou às vezes azul), que tem em sua mão direita um vajra, um cetro adamantino, e, na sua mão esquerda, um sino que representa o conhecimento transcendente: assim ostenta ele as duas prendas do despertar, a compaixão e a sabedoria. Ele porta todos os preciosos ornamentos de jóias e tecidos, de sedas encantadoras com os quais outrora os príncipes da Índia se paramentavam. Esses atributos simbolizam a riqueza e a superabundância das manifestações do sambhogakaya. Essa palavra sânscrita significa literalmente “dimensão” (kaya) de “alegramento” (sambhoga), porque a visão beatífica e a presença divina do sambhogakaya são particularidades dos grandes bodhisatvas que ao menos atingiram a sétima “terra” e se encaminham para a décima sobre o percurso espiritual dos bodisatvas . O sambhogakaya é revestido das cinco percepções supremas que vimos precedentemente. E a transmissão simbólica representa os ensinamentos da grande perfeição pelo sambhogakaya Vajrasattva, que permanece eternamente na esfera da existência a mais sublime, em um grande número de nirmanakayas diferentes que se manifestam em todas as esferas da existência. Ainda que tenham existido, através das idades, numerosas transmissões destinadas aos vidyadharas pertencentes a espécies não humanas, como os devas, os nagas, os yakshas e os rakshasas, no mundo humano, a transmissão principal teve lugar entre o sambhogakaya Vajrasattva e o nirmanakaya Prahevajra, mais conhecido sob o nome de Garab Dorje . Desse fato, reconhecemos Garab Dorje como primeiro mestre humano do dzogchen, assim como uma emanação, ou reencarnação verdadeira, de Vajrasattva.
Garab Dorje, ou Prahevajra, nasceu no país de Uddiyana, em alguma parte ao noroeste da Índia. Segundo algumas fontes, o acontecimento teve lugar cento e sessenta anos após o nirvana do Budha histórico, em 881 antes de nossa era . Nesse tempo, havia no país de Uddiyana um grande lago de nome Dhanakosha, “Reservatório de Riquezas”, às margens do qual se erguia o magnífico templo de Shankarakûta, que era cercado por mil seiscentos e oito capelas. O rei Uparaja e sua esposa, a rainha Prabhavati, reinavam então em Uddiyana. O rei e a rainha tinham uma filha, a princesa Sudharma, que se tornou bem cedo uma virtuosa e bela jovem. Tendo escutado o dharma de numerosos mestres, ela decidiu renunciar ao mundo e tomou os votos de bhikshuni, ou religiosa mendicante. Em companhia de sua servente Sukha, ela se retirou para uma ilha de areias de ouro, no meio do lago Dhanakosha, e em sua humilde palhoça ela meditava praticando os tantras do yoga.
Um dia, a bhikshuni teve um sonho. Ela contemplava um ser branco, glorioso, imaculado, que, surgindo do céu, aproximou-se dela; pousou sobre sua cabeça um jarro de cristal marcado com as sílabas OM AH HUM SOHA e, consagrando-a, ele se transforma em raio de luz mergulhando no corpo de Sudharma, mostrando claramente a ela os três mundos até em seus detalhes mais ínfimos. Na manhã seguinte, a bhikshuni contou seu sonho à sua servente e elas não tardaram em descobrir que a jovem religiosa estava grávida. Ora, Sudharma era virgem, ela não havia conhecido homem e estava aterrorizada; ela temia que seu pai, o rei, e de fato a população do reino inteiro viessem a saber de sua desonra. Mas os meses se passaram e ela teve um filho. Portanto, embora a criança fosse de fato a reencarnação de um deva vidyadhara que havia recebido os ensinamentos do dzogchen nos mundos dos deuses, sua mãe não pretendia reconhecê-lo.
Envergonhada e assustada, a bhikshuni grita: “Esta criança sem pai não pode ser outra coisa que um mau espírito”, jogando-o em um fosso cheio de cinzas próximo à sua palhoça. A servente reparou que a criança portava certos signos propícios, mas a jovem mulher desatinada não queria por nada nesse mundo acreditar que seu recém-nascido podia ser a encarnação de um grande bodisatva. Neste preciso instante, todavia, elas ouviram muitos sons maravilhosos e viram por toda parte raios de luz irisados. Três dias mais tarde, ligeiramente acalmada e com uma consciência repentina, a bhikshuni saiu de sua choupana e se debruçou sobre o fosso de cinzas para olhar seu bebê. Milagre! A criança se portava encantadoramente. Ela reconheceu enfim, naquele momento, que ele era uma emanação e, conduzindo-o à sua cabana, lhe deu um banho.
Foi então que ela ouviu uma voz que vinha do céu: “O protetor, mestre e senhor que esclarece a natureza das coisas protegendo os mundos, seja nosso possante protetor!”. As dakinis cantaram louvores à criança miraculosa, nascida de uma virgem, e elas lhe fizeram oferendas . A criança falou imediatamente para instruir as dakinis. Esse primeiro ensinamento da criança prodígio levou o nome de “Vajrasattva, céu imenso ”. Quando a criança completou sete anos, pediu à sua mãe a permissão para discutir o sentido profundo do Dharma com os pandits eruditos. Um belo dia, sua mãe não se opôs mais, o jovem rapaz foi, não sem temeridade, ao palácio real de Uparaja, o qual estava justamente preparando-se para homenagear convidados em cerca de quinhentos grandes eruditos. A precoce criança entrou com um passo decidido na assembléia, provocando os panditas a disputar com ele. Desde a abertura do debate ele colocou sua argumentação ao nível do Fruto e infligiu uma pungente derrota aos quinhentos eruditos que, por sua parte, estavam ainda no pondo de vista do fundamento. Derrotando-os, ele decide instruí-los em Atiyoga, na verdade ele já era plenamente iluminado antes mesmo de nascer. Os mais velhos, os veneráveis panditas, estavam impressionados pelos vastos conhecimentos e o poder de penetração desse garoto de apenas sete anos, e a assembléia toda se prosternou aos seus pés. Foi então que lhe deram o nome de Prajnabhava, “Encarnação do Conhecimento”.
Absolutamente encantado por essa criança precoce e miraculosa, o rei experimentou, em sua presença, um êxtase extraordinário, embora lhe tenham dado o nome de Prahevajra, em tibetano Garab Dorje, “Vajra da Jóia Suprema”, pelo fato de que sua mãe, a princesa e religiosa Sudharma, o houvesse jogado ao nascer no fosso de cinzas, foi reconhecido também pelos nomes de Vetalasukha, “Zumbi feliz”, e Vetalabhishmarana, “Zumbi cor de cinza”.
Sem ter lido nada, o rapazinho conhecia de cor a totalidade dos sutras e dos tantras do Budha Shakyamuni, bem como inumeráveis estrofes dos ensinamentos dzogchen. Pouco tempo após seu nascimento, Vajrasattva lhe apareceu para lhe transmitir a iniciação da presença desperta em sua totalidade, e a criança chegou à realização da sabedoria primordial que não resulta de nenhum treinamento. Assim compreendeu num único instante, e perfeitamente, o sentido verdadeiro de todos os tantras.
Em seguida, Prahevajra partiu para a solidão das montanhas selvagens do norte assombradas pelos pretas e outros espíritos. Lá onde o sol se levanta, ele ficou trinta e dois anos. Foi durante esses anos que Vajrasattva lhe apareceu novamente em uma esfera brilhante de luzes de arco-íris e lhe transmitiu as instruções especiais dos seis milhões e quatrocentos mil tantras da grande perfeição. Vajrasattva permitiu à Prahevajra escrever esses tantras orais. Então, como ele era ainda jovem e vivia na solidão dum cume dos montes Malaya, é com a ajuda de três dâkinis que ele redige os tantras do dzogchen. Em uma gruta desta mesma montanha, ele esconde os tantras como “tesouros ocultos” e os confia à guarda dos dakinis.
Então, enquanto ele permanecia sobre os cumes desertos e escarpados, a terra tremeu por sete vezes de alto a baixo. Um brâmane que vivia em uma das cidades o acusou de ter provocado esses tremores de terra com suas magias para prejudicar a doutrina bramânica. O rei local, que era tirthika , o acusou oficialmente desse crime, os pastores das redondezas também, e todos partiram à sua procura. Quando os homens do rei se aproximaram da entrada de sua gruta de meditação, eles ouviram um som que escapava, profundo e possante, parecido com o rugido de um asura surgindo das entranhas da terra . Nesse momento, um jovem com aspecto de yogui nu aparece diante da multidão dentro de uma esfera de luzes de arco-íris, e ninguém pode colocar a mão sobre ele. Esta aparição teve como conseqüência submeter inteiramente o rei e sua corte: eles se converteram todos ao Dharma. Prahevajra manifestou ainda muitas espécies de poderes (sidhis) sobrenaturais: caminhou sobre a água de uma torrente de correnteza rápida, ele atravessou rochedos e paredes de pedra sem encontrar a menor resistência. Ele apareceu a grandes multidões, cercado por uma esfera de luzes irisadas, inspirando a todos uma fé e uma devoção imensas. Em seguida, montando um “garuda,” pássaro com grandes poderes miraculosos , ele voou para o sul por cima dos altos Himalaias, depois para leste sobre as vastas planícies do Ganges, até a grande stupa do “ossuário” de Shitavane, ou “Frio Bosque”, não longe de Vajrasana . Ele deu nesses lugares iniciações e ensinamentos a um grande número de discípulos, inclusive a dakini Suryaprabha, e aí, nesse horrível “ossuário” de cremação que a todos inspirava um terror sagrado, ele permaneceu muitos anos, cercado de dakinis aos milhares.
Na mesma época, viveu um grande erudito nascido em uma cidade da Índia ocidental e cujo pai era um bramane. Ele se chamava Manjushrimitra, “Amigo de Manjushri”, porque ele ensinava as cinco ciências e ninguém conhecia os textos sagrados melhor que ele. Um dia, ele teve uma visão onde o grande bodisatva da sabedoria, Majushri, lhe deu esse conselho profético: “Ó, filho de nobre família, se tens verdadeiramente a intenção de atingir o fruto da budeidade em sua vida presente, deverias ir ao “ossuário” de cremação do “Fresco Bosque”. Seguindo esse conselho, o acharya, o mestre, partiu para o leste e encontrou Prahevajra em Shitavana. Prahevajra lhe disse: “A natureza da mente é Budha desde a origem. Essa mente não tem nascimento nem cessação, porque se parece com o céu. Quando realizamos o verdadeiro sentido da identidade última de todos os fenômenos, e quando mantemos esta compreensão sem nada mais buscar em torno, eis a meditação autêntica”. Manjushrimitra apreendeu naquele momento o sentido verdadeiro deste ensinamento.
Manjushrimitra ficou em Shitavana por cerca de 75 anos e recebe de seu guru a transmissão integral da grande perfeição, ou Atiyoga, que emanou originalmente de Vajrasattva em pessoa. Ao fim desse período, Prahevajra manifestou numerosos sinais extraordinários e seu corpo se transmutou em luz e esvaneceu no céu. Esses fenômenos indicam que Prahevajra havia realizado o corpo luminoso de arco-íris. Paralisado pela dor e pelo desespero, Manjushrimitra perdeu a consciência e desmaiou. Quando recuperou a consciência, ele lançou um grito de lamentação: “Ó, que infortúnio! Ó, imensidão! A lâmpada de nosso mestre extinguiu-se: quem doravante dispersará as trevas do mundo?”
De repente, seu mestre apareceu no céu sobre ele, no centro de uma esfera de luzes irisadas. Com um barulho parecido com um trovão, uma tela dourada, do tamanho da unha do dedo polegar, surgiu da luz, depois executou voando três circunvoluções em torno de Manjushrimitra, antes de pousar na palma de sua mão direita completamente aberta. Depois, a visão de seu mestre se evaporou de novo no céu. Manjushrimitra abriu o manuscrito que continha o último testamento do mestre Prahevajra inscrito com lápis lazuli sobre um suporte feito de cinco materiais preciosos. Unicamente por ver esse testamento, Manjushrimitra atingiu uma iluminação igual à de Prahevajra. Esse último testamento, em que está condensada a totalidade dos ensinamentos do atiyoga, levou o título de “O essencial em três palavras” . Então, Manjushrimitra empreendeu o estabelecimento dos tantras que ele havia recebido de seu mestre e os classificou em três séries de ensinamentos. Os ensinamentos que colocam ênfase no estado natural da mente, constituíram o semde, a “série da mente” – bem entendido, aqui, “a mente” designa a natureza da mente, ou bodhichita. Os ensinamentos que insistem na ausência de esforço estão contidos no longde, a “série do espaço”. Enfim, os ensinamentos centrados sobre alguns pontos essenciais pertencem ao upadesha, à “série das instruções secretas”. Em seguida, Manjushrimitra dividiu os três extraordinários ensinamentos do upadesha, os nyingthig, ou “essências da mente”, em duas classes: a transmissão oral e os tantras explicativos. Como na época não se encontrava ainda ninguém que estivesse preparado para receber os ensinamentos da primeira seção, o acharya escondeu os textos sob um enorme rochedo à leste de vajrasana. Depois se retirou para ocidente , para o “ossuário” de cremação de Sosaling onde ficou cento e nove anos em meditação, praticando a conduta esotérica com as dakinis e as instruindo.
Foi então que Shri Singha chegou à cidade chinesa de Sokhyam, em companhia de Buddhajnana, tornando-se discípulo de Manjushrimitra. Antes, quando de uma viagem no dorso de camelo para a cidade de Serling, na China, Shri Singha teve uma visão, no céu, do bodisatva Avalokitsvara, e este lhe deu um conselho: “Ó, filho de nobre família, se queres atingir o fruto, vá até a Índia, em um lugar de nome Sosaling”. Em seguida, quando ele partiu novamente para os montes Wou-t’ai-chan, na China do norte, e como havia então adquirido numerosos siddhis (poderes), ele voou como o vento até a Índia onde, no “ossuário” de cremação de Sosaling, ele encontrou o acharya Manjushrimitra e recebeu seus ensinamentos durante vinte e cinco anos. No fim de sua vida, Manjushrimitra desapareceu no ar sobre a stupa central do “ossuário”. Depois, repentinamente, reapareceu no céu e depositou um pequeno manuscrito coberto de jóias na palma da mão de Shri Singha. O precioso manuscrito continha o último testamento de seus mestres, as seis Experiências Meditativas. À leitura desse texto, Shri Singha realizou imediatamente a mesma realização profunda de seu mestre Manjushrimitra. Ele recuperou igualmente os textos que seu mestre havia escondido próximo do Trono do Diamante. O acharya Shri Singha os dividiu em quatro categorias: exterior, interior, secreta e bastante secreta. Ele transmitiu esses ensinamentos a seus discípulos Vimalamitra e Jnanasutra, em seguida, o acharya voltou à China e, no fim de sua vida, ele também desapareceu em corpo de arco-íris. É assim que todos primeiros mestres da linhagem dzogchen realizaram o extraordinário corpo de luz .
Vimalamitra e Jnanasutra, tanto um como outro, foram à China para requererem de Shri Singha a linhagem de transmissão oral do dzogchen, que o mestre lhes conferiu durante doze anos no seu retiro no “ossuário” de cremação de Sitakara. Algum tempo depois, o rei tibetano Thrisong Detsen convidou Vimalamitra, que tinha voltado à Índia. Uma vez no Tibete, este se instalou no monastério de Samye, onde permaneceu treze anos. Desse modo foram transmitidas aos tibetanos a série dos upadeshas, e, em parte, a série semde. Quando ele deixou o Tibete, o acharya Vimalamitra foi à China, para as montanhas sagradas de Wou-t’ai-chan.
Antes da chegada de Vimalamitra ao Tibete, durante o reinado do mesmo rei, Bairotsana de Pagor foi ordenado monge em Samye pelo abade Shantarakshita; ele fazia parte dos sete primeiros tibetanos que entraram em ordens budhistas . Em seguida, o rei enviou-o à Índia, para prosseguir seus estudos, e em Vajrasana recebeu a totalidade dos principais tantras das séries da mente e do espaço. Assim, essas duas coleções de textos foram bastante transmitidas aos tibetanos por intermédio de Bairotsana. No Tibete, ele foi igualmente discípulo de Guru Padmasambhava. Todavia, esse último ensinava o dzogchen no quadro do anuyoga mais que como um sistema independente.
Quando de sua estada na Índia, Bairotsana passeava nas florestas de Sândalo que margeavam o lago Dhanakosa, quando encontrou o acharya Shri Singha. Esse último vivia então numa torre de nove andares, erigida miraculosamente. Mas, antes que a yoguini que servia ao mestre conduzisse o jovem tibetano à presença de Shri Singha, Bairotsana fez uma demonstração de seus poderes psíquicos. Uma vez próximo ao acharya, Bairotsana pediu instrução sobre o veículo que não precisa de nenhum esforço. Ele lhe disse ser necessário, todavia, estudá-lo em segredo, à noite, porque o rei local havia proibido que se propagassem os ensinamentos dzogchen. O rei e seus ministros acreditavam que esta doutrina, que transcende as causas e os efeitos, minava sua autoridade, e a do estado, em geral, sobre o povo. Mesmo à noite Bairotsana transcrevia as dezoito instruções da “série da mente” com a ajuda de uma tinta de leite de cabra sobre uma tela branca, de maneira que nada chegasse aos olhos do rei e de seus auxiliares. Entre esses textos se encontrava o primeiro texto dzogchen que Bairotsana traduziu em tibetano, o célebre “Rig-pa’i Khu-byug”, “O canto do Cuco da Presença Desperta”, aqui está uma tradução:

Mesmo que a natureza do múltiplo seja não-dual,
Para as coisas individuais, ela está livre de elaborações conceituais (produzidas pela mente).
Mesmo se o pensamento do que chamamos “Tal como” não exista,
Essas diversas aparências criadas são boas de um modo último. (transcendendo o bem e o mal relativos)
Pois tudo é completo tal como é, abandonando a doença do esforço, permanecemos sem esforço na presença do estado contemplativo.

Bairotsana não se contentou unicamente com as dezoito instruções do semde, Shri Singha transmitiu-lhe as iniciações e as instruções dos outros tantras do semde, ou da mente, depois as seções branca, negra e matizada dos ensinamentos da “série do espaço”. Em seguida, Bairotsana alcançou a mestria perfeita de cada um desses ensinamentos. No “ossuário” de cremação de Dhumapitha, o “Ar Enfumaçado”, ele teve uma visão de Garab Dorje (Prahevajra) onde ele lhe transmitiu os seis milhões e quatrocentos mil métodos da grande perfeição. Depois o tradutor voltou miraculosamente ao Tibete graças à ciência do “pé rápido” e propagou aos seus discípulos os ensinamentos dzogchen das séries da mente e do espaço.
O texto traduzido aqui começa pela homenagem do autor aos mestres de sua linhagem de transmissão. Isso tem valor porque todos os ensinamentos espirituais estão ligados à uma transmissão. Depois, o autor evoca brevemente as práticas preliminares. No que concerne às quatro meditações que provocam uma mudança na nossa maneira de abordar a vida, o essencial é ter bastante consciência do que elas querem dizer, melhor do que empreender uma análise intelectual complicada. O tibetano shes-rig designa tanto a presença da consciência, dito de outro modo, quanto à consciência de um objeto conhecível. Assim, por exemplo, deveríamos constantemente estar conscientes da rara oportunidade que nos oferece esta existência humana e nunca esquecer o quanto a vida é efêmera. Essa espécie de consciência nos motivará de tal maneira que não desperdiçaremos mais a nossa vida na distração. Mas, de todas essas práticas preliminares, a mais importante é o guru yoga (o yoga do mestre). O guru yoga é o meio mais eficaz de preservar o conjunto das transmissões que recebemos.
A parte principal do texto descreve a prática do dia e a prática da noite. A prática do dia é apresentada em três pontos. É preciso inicialmente compreender a prática. No dzogchen, estimamos que a “visão” é ainda mais importante que a meditação. A visão designa a maneira de ver, ou de encarar as coisas, e “compreender” não se refere aqui unicamente à compressão intelectual, nem aos conhecimentos ensinados na escola ou nos livros, mas à experiência efetiva do acesso ao conhecimento da visão. Por isso é necessário que o mestre proceda a uma “apresentação” que nos permita compreender exatamente o que entendemos por “pura presença”, ou “consciência enquanto tal” (rig-pa). Sem uma experiência concreta desse tipo, dependemos das descrições dos outros e então será muito fácil enganarmo-nos na prática.
O segundo ponto (a prática diurna) consiste em “estabilizar” a prática. Uma vez bem compreendido o estado de contemplação, o verdadeiro sentido de rig-pa no centro da experiência pessoal, é preciso ainda exercitar-se em permanecer nesse estado de presença. Nesse ponto, veremos três instruções, cujas duas primeiras, “integrar” e “se relaxar na presença”, põem em relevo a estabilização, enquanto, o terceiro ponto é o “progresso”, do qual falamos mais acima.
Com respeito a integrar, a prática aqui descrita é uma “integração ao espaço do céu”. Não tem nada a ver com a fixação mental sobre um objeto de meditação, o que seria um trabalho da mente (objetiva), pois a contemplação trabalha além da mente (objetiva). Aqui, concentramos nossa atenção num ponto no espaço, depois, relaxando-nos, deixamos nossa consciência integrar-se ao céu.
Em seguida vem diversas instruções de ordem geral, permitindo-nos relaxar ficando alertas e completamente presentes. O princípio dzogchen é o relaxamento, mas esse relaxamento não tem nada de pesado nem abrutalhado como o das vacas que ruminam nos prados. Esse estado da mente leva o nome de lung-ma-bstan: não tem nada a ver com rig-pa! “Relaxar completamente na presença”, quer dizer que, quando nossos sentidos entram em contato com um objeto, qualquer que seja, não fazemos mais que deixar o objeto tal como se encontra. Não é, pois uma questão de fixar com acuidade nossa atenção sobre um objeto de meditação, nem tentar reprimir pensamentos indesejáveis. Não tardaremos, de fato, a nos dar conta que essa espécie de repressão nunca nos levará a bom termo, por assim dizer. Quanto mais nos opusermos aos pensamentos, mais eles armazenarão energia e voltarão como para se vingar. No dzogchen, não importa que exista, ou não, pensamentos discursivos, contanto que eles não nos distraiam, contanto que não os sigamos cegamente. O verdadeiro problema é como conseguir deixar as coisas suficientemente tranqüilas, sem jamais tentar modificar ou corrigir os pensamentos que forçosamente se apresentam.
O que não impede que, quando procuramos a prática da contemplação, sejamos suscetíveis de experimentar algumas dificuldades devidas à sonolência ou à agitação. Mas existem métodos para resolver esses problemas. Às vezes, é possível que, durante a prática, algumas experiências se apresentem, particularmente experiências de prazer, experiências de claridade e de luminosidade, e experiências de vacuidade ou de não-discursividade. Não é preciso confundir essas experiências com a contemplação, ou rig-pa, nem lhes permitir que nos distraiam, não são mais que experiências, nada mais. Quando relaxamos nosso corpo, nossa fala e nossa mente, nossas energias escapam ao domínio que exercemos habitualmente sobre elas, e elas começam a se manifestar com toda liberdade e espontaneidade. Podemos ter visões esplêndidas, ouvir sons, sentirmo-nos esquisitos e muitas outras coisas. Mas é preciso ter em mente que tudo isso são apenas manifestações de nossa energia, e não nos deixar levar. Eis como progredimos na prática.
Vem então a prática da noite: de início a prática da noite, bem antes de adormecermos, depois, a prática da manhã, a qual começa no instante mesmo do despertar. A prática da noite é ainda chamada “prática da clara luz natural”. O processo de adormecimento é, em numerosos pontos, análogo ao processo da morte. Entre o momento de adormecer e o surgimento dos sonhos, é possível ter a experiência da clara luz, dito de outro modo, da clara luminosidade do estado primordial do indivíduo. Se reconhecermos a clara luz, poderemos atingir a liberação no fim desta vida, nos integrando nela. A técnica aqui exposta é um método muito eficaz para permanecer presente no momento de adormecer. Ela tem como primeiro efeito produzir sonhos lúcidos, falando de outro modo, sonhos onde o sonhador sabe que sonha no instante mesmo do sonho. Conscientes de nossos sonhos, temos o poder de ampliá-los, de transformá-los e de utilizá-os como base da prática. Os tantras mencionam um grande número de métodos complicados em matéria de yoga dos sonhos, mas o presente método da clara luz natural, embora muito simples e direto, conduz aos mesmos resultados.
A prática da manhã é um aspecto do guru yoga. Como vimos, todas as práticas do dzogchen estão intimamente ligadas ao guru yoga. O presente método nos permitirá acordar de manhã em um estado de presença e consciência. Ele nos fará compreender então que este estado de rig-pa no qual acordamos não é em nada diferente do estado rig-pa de nosso mestre. Na verdade, este estado não é outro senão o nosso estado primordial cujo nome verdadeiro é Samantabhadra.
Para concluir, o autor examina os benefícios das práticas precedentes e as qualidades do praticante. E enfim, ele sela seu texto com a dedicação de méritos e por uma bendição.
Embora conciso, este upadesha, instrução essencialmente secreta, que emana de um mestre dzogchen vivo com a intenção de motivar os praticantes do dzogchen, expõe muito claramente a arte de entrar neste estado e de nele progredir tanto de dia quanto à noite, de maneira à integrar a totalidade da existência à contemplação. O tradutor faz os votos que esta tradução se revele útil, na prática, a todos aqueles que possam estar interessados!

Sarvamangalam!

O CICLO DO DIA E DA NOITE
Namkhaï Norbu Rinpoche

O Ciclo do dia e da noite, onde progredimos no caminho do yoga primordial.

Homenagem ao mestre!

1. Presto homenagem com a maior devoção de meu corpo, fala e mente a todos os mestres da linhagem dzogchen, a começar por Changchub Dordje, que encarna todas as famílias de Budha, assim como Orgien Tendzin e Dorje Paldrön.

2. O Budha primordial Samantabhadra e o glorioso Vajrasattva transmitiram a Garab Dordje, o mestre supremo, o método que permite progredir na Via da essência do Atiyoga. Desejoso de esclarecer um pouco o néctar desses ensinamentos, eu rogo às dâkinis que me dêem a sua permissão.

3. Deveríamos constantemente treinar nossas mentes na quádrupla mudança de atitude, e não nos afastar jamais desse yoga que nos torna conscientes do fato de que nossa presença enquanto tal não é diferente do nosso mestre verdadeiro. A raiz de tal prática consiste em perseverar nesta presença da mente, atentos e livres de distração, quer estejamos comendo, ou simplesmente sentados, ou então caminhando, e mesmo dormindo.

4. Para o dia e para a noite, existe certamente uma prática cotidiana principal que opera formando um ciclo perpétuo. A prática do dia concerne às atividades dos três momentos (comer, sentar-se e caminhar), e comporta três temas: compreender, estabilizar e progredir.

5. É preciso em primeiro lugar compreender o que ainda não compreendemos: que todas as coisas que podemos ver ou ouvir, absolutamente todas são no entanto, imagens falsas a despeito de sua diversidade, e podemos concluir de maneira decisiva que esses fenômenos não são mais que a exibição mágica da mente.

6. A natureza da mente é vazia desde sempre, e não é submetida a um eu. Ela não tem nada de concreto, e sua aparência é pura claridade luminosa, é indefectível (e não se interrompe nunca), como a lua que pode se refletir em todas as superfícies de água (espelhadas). Eis a última presença pura da sabedoria primordial no interior da qual o vazio e a claridade não criam nenhuma dualidade. Esta sabedoria primordial é em si mesma perfeita, naturalmente espontânea: isto é o que precisamos compreender.

7. Quando reconhecermos que as aparências (exteriores) não são mais que ornamentos (ou embelezamentos) da real condição da existência, as percepções dos seis agregados sensoriais, relaxados e alertas, se auto-liberam ao encontrar sua condição original (da qual eles surgem).

8. Quando reconhecermos que as aparências e a pura presença são inseparáveis, os pensamentos que se apegam à dualidade do sujeito e do objeto se auto-liberam, reencontrando sua condição original (da qual surgiram). Além do mais, os métodos de auto-liberação pela atenção nua, da auto-liberação das emergências e da auto-liberação em si, são os meios de progredir na prática de acordo com os objetivos aos quais esse yoga se propõe.

9. A consciência que surge no primeiro instante furtivo (do contato sensorial) é certamente esta pura presença aparecendo sem correção (nem modificação) e não-criada (por qualquer causa que seja). Esta condição de existência em si, que transcende os limites do sujeito e do objeto, é a verdadeira sabedoria primordial espontânea da pura presença.

10. Quanto a esta pura presença, os três aspectos de Samantabhadra nela figuram real e completamente: despida de toda e qualquer marca cármica, sua essência, o dharmakaya, é a vacuidade; livre de pensamentos e de conceitos, sua natureza, o sambhogakaya, é a claridade; despida de todos os desejos e apegos, sua energia, o nirmanakaya, é indefectível (e nunca se interrompe).

11. No instante preciso em que uma tal consciência chega à existência, ficamos inteiramente livres dos pensamentos dualistas que funcionam com um sujeito e um objeto e do mesmo modo (as aparências exteriores) surgem como manifestação da claridade sem que os conceitos e os julgamentos façam parte. As aparências se apresentam no estado da real condição da existência.

12. Pelo fato desta consciência incondicionada, natural e instantânea reencontrar a real condição da existência como reencontramos nossa mãe, a (nós a chamamos) dharmakaya. Permanecer nesta condição de pura presença espontânea e perfeita em si mesma, é o estado natural da grande perfeição.

13. No que concerne à estabilização (de nossa prática, o décimo segundo tema): nós progrediremos na Via graças a três instruções: sobre a integração, sobre o repouso na presença e sobre o progresso da prática. Para o primeiro método, o da integração, vejamos: sentados confortavelmente e completamente relaxados, integramos (nossa consciência) ao céu à nossa frente.

14. Quando estamos assim estabelecidos num estado de repouso e alertas, sem distração e sem meditação fabricada, esta consciência inicial semelhante ao céu (claro e vazio) é também uma condição despida de todo apego, sem que os conceitos e os julgamentos intervenham. Não há mais que uma claridade luminosa, ou ainda, uma pura presença, como um momento de espanto/assombro profundo. Esta pura presença surge de maneira simples e nua, sem dualidade nem distinção entre o estado de calma e o estado de movimento dos pensamentos.

15. Perseverando na contemplação, sem cair nem na sonolência nem na agitação, acabamos por nos encontrar em um estado de presença claro, vivo e profundo. Quanto a prolongar este estado de contemplação, ele pode nos conduzir ao encontro dos pensamentos, de afastá-los, de provocar a repetição, ou ainda, de aí nos deter: eles ficarão sempre em sua condição original (desde que surjam), sem nos distrair e então se liberarão por si mesmos.

16. Quando atingimos este estado e saímos do período de contemplação propriamente dito, nossa estabilidade (na prática) é medida por nossa aptidão em nos dar conta se estamos ou não submetidos ao poder dos pensamentos condicionantes. Durante a meditação, as experiências (surgem espontaneamente) como o jorrar da luz do sol ou da lua. Essas experiências, semelhantes às visões ou modificações da respiração, estão livres do condicionamento dos conceitos (ou julgamentos) no momento mesmo em que aparecem.

17. Para as experiências que podem se produzir após o período de contemplação, vejamos: é possível que todas as aparências nos pareçam ilusórias, ou então que nós as consideremos todas como vazias. Seremos talvez capazes de permanecer em um estado de pura presença e ele nos parecerá livre de pensamentos discursivos, ou ainda, teremos a impressão de poder agir sem cometer o menor erro.

18. Falamos de nossa dimensão total: reconhecendo que os objetos exteriores e as análises que fazemos, (de um lado), e os pensamentos exatos ou discursivos (de outro) são vazios, nós reencontraremos o supremo dharmakaya, a natureza mesma da mente. Como esta (condição) não é de nenhuma maneira contaminada pelos pensamentos, as características, nem as cognições, é uma pura consciência inicial, isenta do véu dos pensamentos discursivos, que acabamos por atingir.

19. Os véus de nossos pensamentos e nossas marcas cármicas estão agora completamente dissolvidos e nossas paixões não escapam mais ao nosso controle. E assim sendo, mesmo se nós, que somos (indivíduos comuns), formos transportados além de todos os mundos do samsara, dizemos que pertencemos à família dos seres sublimes (arhat).

20. Agora as instruções sobre o repouso na presença: qualquer que seja o momento em que surjam as aparências, e qualquer que seja seu modo de surgir, (deveríamos) sem nenhuma correção nem modificação (considerá-los) como simples ornamentos, ou enfeites, do estado primordial em-si (a real condição da existência). Neste estado, nossa pura presença interior se encontra não corrigida, clara, viva e nua. Assim, enquanto alertas, repousamos (relaxamos) na presença (quando surgirem pensamentos), nós os deixamos repousar (relaxar) em sua condição original, justamente por aquilo que eles são. (vazios)

21. Os objetos das seis faculdades sensoriais: quando se apresentam simplesmente como ornamentos (deste estado de presença), de maneira clara, sem nenhuma obstrução e sem análise intelectual, esses objetos são então inteiramente perfeitos justamente como eles são: enquanto gênio inventivo da pura presença despida de qualquer prisão (aos conceitos e julgamentos). Quando buscamos este estado sem dualidade, falamos de relaxar na presença.

22. Prolongando o período de contemplação e sem analisar os objetos dos cinco sentidos, (permitimos às aparências de) surgir claramente, sob a forma de luz, permanecendo relaxados e alertas, sem ceder à distração nem ao agarramento (aos conceitos e julgamentos). Em seguida, concluindo o período de contemplação, uma consciência primordial se manifestará na base de um ou de outro dos objetos sensoriais: todas as aparências (materiais ou não) parecerão então desprovidas de realidade concreta.

23. Quando surgem os pensamentos discursivos surgidos dos cinco venenos, enfrentamo-los com vigilância, permanecendo relaxados (repousados) e livres da apreensão ou do apego (aos conceitos e julgamentos). (Por outro lado) deveríamos tentar não bloqueá-los com qualquer antídoto que seja, nem transformá-los por meio de um método. (Não estando nem bloqueadas nem transformadas), as paixões que surgem na Via se liberam por si mesmas na pura presença da sabedoria primordial.

24. As possíveis experiências durante a prática da meditação se apresentam como claridade e vacuidade. Nos encontraremos num estado de visão e vacuidade, ou ainda em um estado de movimento contínuo de pensamento e vacuidade, ou ainda em um estado de sensação agradável e vacuidade. Assim, diversas experiências conscientes da presença de prazer, de claridade e de não-discursividade são possíveis.

25. Do ponto de vista da dimensão total de nossa existência: compreendendo que todos os fenômenos são o dharmakaya, esta consciência não corrigida do estado de existência tal que em si mesma se mantém aqui, presente como uma esfera perfeita, completa e livre de dualidade. Conseqüentemente (é dito que) unimos a dimensão da sabedoria primordial, e que é uma sabedoria primordial de luminosidade que está então presente.

26. Pois os objetos que percebemos são de fato manifestações de nossa real condição de existência, nossas paixões e nossos véus se acham purificados. Pelo fato mesmo da presença desta sabedoria primordial de pura presença, nos livramos de todo empreendimento negativo. E pelo fato de que estamos liberados de nossas paixões, de nossas marcas cármicas e de nossos véus, dizemos que pertencemos à família dos nobres (arya) bodhisatvas.

27. Chegamos aos progressos na prática (o terceiro ponto a considerar): em um estado não corrigido, espontaneamente perfeito, esta consciência inicial instantânea permanece presente e não modificada. Trata-se de uma pura presença não discursiva, luminosa e viva. Assim a continuidade de nossa consciência permanece estável e não distraída.

28. Quando a sessão de contemplação prossegue sem sonolência, nem agitação, tudo aparece como vacuidade, a real condição de nossa existência. Em seguida, uma vez terminado o período de contemplação, deveríamos, sem que os pensamentos nos condicionem, permanecer no estado da natureza da mente, tal como ele é em si-mesmo.
29. Para as possíveis experiências durante a meditação, pelo fato de que nos encontramos (constantemente) em um estado não dual, quer meditemos ou não, todas as aparências surgem como simples manifestação da energia de nossa contemplação. A real condição da existência de todos os fenômenos, tais como são, se apresenta sem deixar (abandonar) a situação primordial que, naturalmente, se mostra.

30. Em nossa dimensão total: todos os fenômenos visíveis e invisíveis se encontram totalmente purificados no estado de sua real condição de existência. Unimo-nos, desse modo, à dimensão suprema da não dualidade, que é uma sabedoria primordial suprema, de modo nenhum revestida (das atividades da mente), que está então presente.

31. Completamente purificados de nossos véus cognitivos, atingimos assim o conhecimento de todos os fenômenos, tais como são muito simplesmente, em sua real condição de existência. Ficamos totalmente liberados de toda dualidade quanto àquele que compreende e àquilo que é compreendido, e dizemos que pertencemos à família dos oniscientes tathâgatas.

32. Agora, no que concerne ao nosso avanço no caminho por meio da prática da noite, deveríamos treinar em duas práticas: uma à noite, no momento de dormir, e outra de manhã, no momento de despertar. À noite (antes de dormir), deveríamos deixar os sentidos se colocarem em uma situação de contemplação contínua. Em seguida, deveríamos integrar esta prática da concentração ao sono.

33. No momento de adormecer, visualizamos entre nossas sobrancelhas uma letra A branca ou então uma pequena esfera de luzes de cinco cores. A visualização será clara e terá mais ou menos o tamanho dum pequeno grão de ervilha. Começaremos por fixar aí nossa atenção, depois, relaxando ligeiramente nossa atenção, nos deixaremos deslizar para o sono.

34. Quando adormecemos em um estado onde os seis agregados sensoriais encontram-se relaxados e alertas em sua condição original, a fuligem dos pensamentos discursivos não pode sujar a vigilância, e a clara luz natural aparece. Encontramo-nos assim na presença de nossa real condição de existência sem o menor pensamento discursivo (e distraído).

35. Ou ainda, quando observamos esta consciência instantânea (no momento preciso em que ela surge), não encontramos absolutamente nada que possamos dizer tratar-se da calma ou do movimento do pensamento. Assim, quando nos encontramos em um estado de presença alerta e fremente, nos colocamos em um estado de consciência calmo e tranqüilo e adormecemos.

36. É o processo de adormecimento que provoca a entrada na claridade da condição real da existência. (Nossos sentidos) encontram-se então completamente reabsorvidos no dharmadhâtu, em um estado de pura presença. Porque, mesmo que seja longo o processo de adormecimento, somos sempre suscetíveis de nos encontrar no estado desta única condição real de existência.

37. Somos completamente liberados das marcas cármicas do corpo material, das marcas cármicas da visão e das marcas cármicas das atividades mentais, e nenhuma outra atividade da mente se apresentará (antes de começar o estado de sonho). Continuamos nos encontrando na presença do estado da real condição da existência. E assim, teremos a experiência de um certo grau de fusão com a clara luz natural.

38. (No momento em que efetivamente) adormecemos, nenhum pensamento discursivo aparecerá e nosso estado de pura presença se reabsorverá na sua “mãe” (a clara luz natural): nos encontraremos presentes no estado da real condição da existência. Em seguida a este período de contemplação (a clara luz natural em si-mesma), reconheceremos nossos sonhos como sonhos quando entrarmos no estado de sonho. Seremos liberados de todas as ilusões, e (os sonhos) se apresentarão amigavelmente para nos ajudar, como nossa dimensão e nossa sabedoria primordial.

39. Cedo pela manhã, (imediatamente ao despertar), surge uma sabedoria primordial que, não corrigida e presente em sua condição original. Permanecendo sem distração neste estado natural e sem meditar sobre o que seja isso, nos encontramos tranqüilamente presentes, de nenhum modo perturbados pelo menor pensamento discursivo. Eis o que chamamos o estado do Guru Samantabhadra.

40. Olhando bem diante deste estado (de pura presença) buscamos com toda atenção “quem”, pois, está meditando. Não encontrando nada de reconhecível (ou confirmável) como tal, é a sabedoria primordial clara, nua e nascida dela mesma que emerge se auto-liberando dos surgimentos (das emergências). Uma consciência primordial não-dual está então presente.

41. Nesse momento, encontramo-nos além de qualquer visão objetiva e transcendendo todos os pensamentos discursivos que se apegam à dualidade, uma consciência primordial livre da discursividade se faz então claramente evidente. Somos conscientes, e uma sabedoria primordial de claridade, não manchada (pelos pensamentos discursivos), revela-se então claramente. Não há dualidade (entre sujeito e objeto) e uma sabedoria primordial de sensação agradável se exprime então claramente.

42. E como chegamos a compreender que todos os fenômenos sejam em si-mesmos, e efetivamente, a verdadeira condição da existência, é uma sabedoria primordial, de nenhuma maneira errônea, que se torna então supremamente manifesta.

43. Quando praticamos dia e noite a essência deste yoga, é a dimensão da vida inteira que entra em contemplação. Quando estivermos familiarizados com a prática, nossas paixões farão parte da Via (como alguma coisa útil). Realizando as três dimensões de nossa existência, certamente levaremos ao auge a realização para o bem dos seres, cujo número evoca a imensidão do céu.

44. Nosso grau de familiarização (com esta prática é medido com o nosso poder de) reconhecer que nossos sonhos são sonhos mesmo quando dormimos. Nosso apego às sensações de prazer e de dor (será então dominado cada dia), e nos encontramos em um estado de integração de modo nenhum encoberto (por conceitos e julgamentos). Na presença da sabedoria primordial, todas as aparências surgem como amigas (que podem nos ajudar na Via). A continuidade da ilusão é interrompida e eis-nos aqui na presença do estado da real condição da existência.

45. Como o adepto do Atiyoga fica dia e noite sem sair deste estado da real condição da existência, é dito que ele ou ela pode atingir a budeidade entre duas respirações. Assim falou Garab Dorje, esse grande ser.

46. Para as paixões que surgem no caminho (como algo útil à prática), as encontramos presentes no estado da real condição da existência sem classificar os fenômenos (em bons ou maus). Todos estão presentes no interior da consciência total, e não há traço de conceituação nesse lugar: reconhecemos então que a ilusão (em si mesma não é outra senão) a discursividade. Os fenômenos se manifestam (não discursivamente) como a real condição da existência tal como ela simplesmente é.

47. Todos os fenômenos aparecem assim como os objetos dos seis agregados sensoriais, estão presentes em toda claridade e luminosidade, e eles não tem substancialidade. É exatamente por isso que reconhecemos na raiva as marcas evidentes da claridade e a ira se manifesta agora como sabedoria primordial da claridade.

48. Tudo o que se manifesta no exterior é a real condição da existência e, no interior, a pura presença e sabedoria primordial. Como uma sensação de grande felicidade, a qual ignora as distinções dualistas, é uma encarnação da energia, reconhecemos que o desejo representa de fato o gênio inventivo da grande felicidade. Manifesta-se então uma sabedoria primordial da sensação de grande felicidade, espontaneamente auto-perfeita e livre de toda limitação.

49. Ainda mais, todos os seres progridem por intermédio das três dimensões de nossa existência. De outro modo, as três paixões que nos envenenam se manifestam integralmente como a dimensão de nossa existência, assim como a sabedoria primordial que lhe é inerente. Por esta mesma razão, tudo o que surge por causa das paixões se apresenta também como nossa dimensão da existência e a sabedoria primordial espontânea que lhe é inerente.

50. Como o que chamamos “emoções” não mais existem, igualmente não existem mais as causas da transmigração no samsara. Sobre esse assunto, além disso, se quisermos chamar esta condição de “nirvana”, se tratará ainda e somente das múltiplas qualidades virtuosas (de nosso estado primordial de budeidade) que se manifestam espontaneamente em sua auto-perfeição sem que nenhuma correção ou modificação lhes seja feita. Como o sol que se eleva no céu, podemos falar aqui da pura claridade.

51. A propósito deste método: a esfera de atividade dos praticantes deveria incluir as cinco atitudes seguintes: vontade de participar, esforço sustentado, presença ativa, concentração e inteligência. Quaisquer que sejam as instruções do veículo supremo (do Atiyoga) que recebemos, deveríamos saber como realizar as condições harmoniosas que nos permitirão reunir e perfazer (essas cinco aptidões).

52. Tendo dito tudo isso, e pela virtude dessas breves palavras que produzem apenas um pouco do néctar do estado do mestre Kunzang Garab Dorje, possamos, eu e todos os seres, cujo número é igual a imensidão do céu, e que estão ligados a mim (carmicamente e espiritualmente), atingir rapidamente o estado do vitorioso Jina Samantabhadra!

Este texto destinado àqueles que desejam participar do supremo veículo do dzogchen, foi escrito em memória de Paul Anderson, que nos deixou em completa paz. É por isso que estamos em retiro na Comunidade Dzogchen de Conway, no leste americano, este texto foi escrito pelo praticante do dzogchen Namkhaï Norbu, no terceiro dia do nono mês do ano do porco d’água, dia de boa fortuna, seguramente!
Conway, Massachusetts,
09 de outubro de 1983

À pedido de Namkhaï Norbu Rinpoche, e em colaboração com os membros da Comunidade Dzogchen de Conway, esse texto sobre a prática contínua da contemplação dzogchen foi traduzido para o inglês por Vajranâtha, John Myrdhin Reynolds. Para a edição francesa, foi traduzido diretamente do tibetano por Patrick Carré.
Sarvamangabam!

NOTAS:
1. Kun-bzang ‘gro-‘dul ‘od-gsal klong-yangs rdor-rje, nascido em (1898-)
2. sNang-mdzod grub-pa’i rdo-rje, nascido em (1900 -)
3. ‘Gvo-‘dul dpa’-bo rdo-rje, (1842-1924)
4. rDza dPal-sprul Rin-po-che, O-rgyan’jigs-med chos kyi dbang-po, (1808-1887)
5. Durante os retiros de verão, ele ensinava os rdzogs-chen, e durante os retiros de inverno, o rtsa-rlung, o yoga dos canais e das energias.
6. rTogs-idan designa “aquele ou aquela que compreendeu”, a palavra é mais ou menos sinônimo de rnal-‘byor-pa, “yogui”.
7. rGyal-ba Karmapa, Rang-‘byung rig-pa’i rdo-rje (1924-1981)
8. Padma dbang-mchog rgyal-po (1886-1952)
9. Thugs-kyi sprul-sku
10. Ngag-dbang rnam-rgyal, (1594-1651)
11. Kun-dga’ dpal-idan, (1878-1950)
12. ‘Jam-dbyangs chos kyi dbang-phyng, (1910-1973)
13. ‘Jam-dbyangs blo-gros rgya-mtsho, (1902-1952)
14. dbang dang khrid
15. gZhung-chen bcu-gsum. A saber:
O Pratimokshasûtra, O Vinayasûtra de Gunaprabha,
O Abhidharmasamuccaya de Asanga, O Abhidharmakosha de Vasubandhu,
O Madhyamakavatara de Chandrakirti, Os Mulamadhyamakakarika de Nagarjuna,
Os Catuhshataka de Aryadeva, O Bodhiçaryavatara de Shantideva.
E os cinco tratados maiores de Maitreya-Asanga:
O Abhisamayalankara,
O Mahayanasutralankara,
O Madhyantavibhanga,
O Dharmadharmatavibhanga,
O Uttaratantra
16. gZhan-phan chos-kyi snang-ba
17. Dus-‘Khor ‘grel-chen
18. rGyud-bzhi
19. rTsis dkar-nag
20. Gur-brtag sam-gsum
21. Yongs-‘dzim mchog-sprul kun-dga’ grags-pa, 1922 –

COMENTÁRIOS
(APÓS AS EXPLICAÇÕES ORAIS DE NAMKHAÏ NORBU RINPOCHE)

TÍTULO

Este texto se chama em tibetano [gdod-ma’i rnal-‘byor-gyi lam-khyer nyin-mtshan ‘khor-lo-ma]. [gDod-ma’i rnal-‘byor] que significa “Yoga Primordial” e designa o conhecimento do estado primordial do indivíduo, em tibetano rig-pa, “presença pura”, “consciência enquanto tal”. A expressão yoga primordial é sinônimo de Atiyoga ou Dzogchen. Traduzimos geralmente esse último termo por “grande perfeição”. Aqui, esses ensinamentos são colocados em prática: [lam-khyer] significa “sobrepujar a visão”. Como não se trata unicamente de uma prática de retiro, mas sobretudo de uma prática contínua, visando o dia e a noite, comparamo-la à uma roda, a um “ciclo”.

HOMENAGEM

1. Ao título segue-se a homenagem aos mestres e duas estrofes de invocação. O autor invoca aqui seu mestre principal, Changchub Dorge do campo de Nyala, no principado de Dergue no Tibete oriental. Foi esse mestre que revelou ao autor o significado essencial do dzogchen com uma experiência imediata, e não de maneira intelectual. Depois ele invoca seu tio, Orgien Tendzin, que foi seu primeiro mestre, e enfim Dorje Paldrön (Ayou Khandro) que lhe transmitiu os preceitos da grande perfeição segundo o Yangtik e outros ensinamentos.

2. Todos os ensinamentos estão ligados a uma transmissão. No dzogchen, esses ensinamentos têm sua origem no Budha Primordial Samantabhadra, o aspecto dharmakaya do despertar. Este os transmite diretamente de sua mente a mente de Vajrasattva, o aspecto sambhogakaya do despertar. Este por sua vez os transmite usando gestos simbólicos ao primeiro mestre humano do dzogchen, Prahevajra, ou Garab Dordje, o aspecto nirmanakaya. Garab Dordje transmitiu oralmente os ensinamentos à Manjushrîmitra para que este pudesse, enquanto fosse possível, explicar o sentido dos preceitos do dzogchen, assim como às dâkinis que são as guardiãs desses ensinamentos. As dâkinis, que são seres femininos iluminados, foram encarregadas de compilar os preceitos do dzogchen que haviam recebido de Garab Dordje, compondo os textos esotéricos chamados tantras. Esses tantras são classificados em três séries: a série da mente [semde], a série do espaço [klong-sde] e a série das instruções secretas [man-ngag-gi sde].

PRÁTICAS PRELIMINARES

3. Os praticantes do dzogchen deveriam começar por purificar o fluxo dos pensamentos, nossa corrente de consciência, abrandando-os com a ajuda das quatro meditações que promovem uma mudança na nossa maneira de encarar a vida, a saber:

I. A dificuldade de renascer no mundo humano;
II. A brevidade da vida;
III. A universalidade do sofrimento no samsara;
IV. Karma: causas e efeitos.

Concretamente, isso quer dizer que, seja qual for a nossa prática, devemos permanecer conscientes. Se já conhecermos algumas práticas, as prosternações, por exemplo, mas por distração ou por preguiça, nunca as fazemos, é necessário buscar a razão. Nós não praticamos porque somos inconscientes, porque ser consciente, aqui, é não perder seu tempo. Ser consciente, também quer dizer que deveríamos nos dar conta do valor dos ensinamentos, e da ocasião única que nos oferece esta vida humana. É desta tomada de consciência que vem o reconhecimento dos efeitos que seguem-se à perda desta ocasião única que representa a preciosa existência humana. Eis tudo o que se encontra implícito no que entendemos por “ser consciente”.
Quando se trata de explicar essas quatro meditações, começamos geralmente por mostrar a importância de ter renascido entre os humanos. Para estudar os ensinamentos preliminares, o ngöndro, é preciso abordar, em todos os detalhes, cada uma das dezoito características de uma existência humana dita “preciosa”. Mas igualmente, deveríamos estar conscientes que, mesmo se tomarmos renascimento humano no planeta Terra, esta situação não durará sempre; ela não é eterna. Nos sutras há uma história de um mercador que se encontra a mercê das circunstâncias em uma ilha toda de pedras preciosas no meio do vasto oceano e que regressa de mãos vazias porque não havia reconhecido nada. Quando por fim morrermos e nos encontrarmos no bardo, o estado que segue a morte e precede o renascimento, se vivemos sem a menor consciência, se nunca apreciamos o valor da vida humana nem reconhecemos sua impermanência, nossa condição, então, não será melhor do que a de um cão. Em geral, encontramos nos textos budhistas uma análise muito detalhada da impermanência do mundo e do indivíduo. Entretanto, o essencial aqui não consiste em memorizar o maior número possível de ensinamentos, mas em permanecer consciente, em cada instante, da impermanência universal.
Isso não impede que, mesmo consciente da brevidade da vida, se exercemos alguma ação positiva à altura de nossa preciosa existência, acumulemos causas para um feliz renascimento próximo. Se continuarmos tolamente a acumular causas negativas, estaremos ignorando a realidade do carma, que é de uma importância extrema, então é seguro e certo que experienciaremos seus efeitos, negativos também. Esse processo não tem outro resultado do que a transmigração e o sofrimento em um ou outro dos renascimentos possíveis. Quando tomamos consciência das causas e dos efeitos de nossos atos, assim como da universalidade do sofrimento no samsara, não há dúvida que seremos então motivados a praticar os ensinamentos do dharma, a via segura e certa da liberação e do despertar.
Exercitar-se nessas quatro meditações, isso quer dizer, sobretudo tentar estar presente em todo momento e consciente em todas as circunstâncias. Isso não significa somente ler livros budistas e ainda menos se comprazer em discussões intelectuais as mais sofisticadas. Alguns entre nós, por exemplo, estudam o texto tibetano do ngöndro, depois o praticam durante um longo período de tempo. Não há nada de mal nisso: o ngöndro são práticas muito importantes. Abordamos essas quatro meditações estudando as condições necessárias para uma preciosa existência humana – uma existência humana, pois, que reunirá todas as condições necessárias à prática do dharma.
Quais são essas condições? É preciso de início escapar às oito condições que não oferecem a menor ocasião, o menor lazer para praticar o dharma. Um renascimento nos infernos, no reino dos pretas – ou espíritos famintos -, no reino dos animais, ou entre os bárbaros que ignoram o dharma, no reino dos deuses cuja vida é desmedidamente longa, ou então no reino dos seres que tem visões fundamentalmente perversas, ou numa era que nenhum budha dá a honra de seu aparecimento, ou enfim, um renascimento entre os homens, claro, mas em um corpo cujos sentidos e faculdades não funcionam. Essas oito condições são ausências de liberdade, e seus contrários, terão ocasiões favoráveis. Dez outras ocasiões favoráveis são em seguida necessárias, cinco dependendo do indivíduo e cinco não dependendo dele. Essas últimas concernem a aparição de um budha nesse mundo: um budha veio, ele ensinou o dharma, seu dharma existe ainda, empreendemos a prática, e há outros seres vivos em todo mundo suscetíveis de se tornar objetos da compaixão do praticante. As cinco condições que dependem do indivíduo resultam de sua situação: é um ser humano, nasceu num país onde o dharma é acessível, ele possui todos os sentidos, ele não vive de expedientes imorais ou criminosos, e ele tem fé no seu mestre e nos ensinamentos dele. Nenhuma dessas condições deve faltar.
Para terminar, quando os adeptos do ngöndro fazem um retiro, seu mestre lhes ensina a meditar em cada um desses pontos, um por um, durante cerca de dezoito dias. É isso que muitos praticantes têm feito, e é bem isso que é preciso fazer: meditar sobre cada uma dessas condições e na argumentação que é estabelecida, uma após outra, para melhor conhecer as dezoito condições necessárias à uma existência humana verdadeiramente preciosa. É nisso que eles se exercitam.
No dzogchen, entretanto, a consciência não funciona dessa maneira. Não há argumento à fornecer e depois à confirmar. As demonstrações, os esquemas de análise foram criados por mestres posteriores. Quando o budha Shakyamuni explicava o valor de uma vida humana e sua indubitável impermanência, ele recorria a diferentes imagens: a nuvem n’um céu de outono, a torrente na montanha, a representação teatral, a chama tremulante d’uma lamparina de manteiga, e assim por diante. Tendo extraído essas comparações dos sutras, que são as palavras do budha, os eruditos estabeleceram uma lista e as analisaram criando um método de raciocínio sobre a impermanência. Não foi o próprio budha que apresentou essas comparações na forma de demonstrações. Ele tentava somente conduzir os diferentes seres a uma certa compreensão da existência humana, e por isso recorria a métodos diferentes. O princípio aqui, não é, pois meditar nesses diversos argumentos, os quais tendem a provar a impermanência de todas as coisas, em nossa vida, mas manter constantemente presente na mente esta consciência da impermanência de todas as coisas. Pouco importa como em nossa vida atual, o momento em que satisfazemos essas dezoito condições – não é isso que conta! Deveríamos ser mais conscientes, de momento a momento, da ocasião única que oferece um renascimento humano, afim de não deixa-lo passar em vão. Nossa existência humana vale mais que a de um gato ou de um cachorro, na medida em que o ser humano sabe pensar e falar. O ser humano tem de longe uma capacidade maior de prejudicar que os gatos e os cães: fabricando bombas atômicas, por exemplo. Mas os seres humanos têm também a capacidade de realizar o despertar no curso de sua vida, desse modo seus poderes são muito superiores aos dos animais. Eis o verdadeiro sentido da preciosa existência humana – seu potencial. A consciência de nossa verdadeira condição, bem como nossos limites e nossas capacidades, eis o sentido da atenção e da consciência [dran-rig].
Se for preciso estudar nos textos a totalidade dessas análises, é aí que o trabalho se complica, não somente para os tibetanos, porém mais ainda, para os ocidentais. E é assim que freqüentemente perdemos o verdadeiro sentido das coisas. É isso que é preciso evitar. Revela-se, pois necessário simplificar as coisas se quisermos colocar o dedo no que é verdadeiramente importante. Ser consciente não se resume somente em praticar as quatro meditações que mencionamos; em princípio, isso significa não estar distraído e tentando fazer o melhor em qualquer circunstância. E é assim que treinamos em ficar conscientes e presentes. É esse o sentido do “treinamento da mente”; e as quatro meditações que acabamos de ver, destinadas a nos fazer mudar de atitude, constituem as práticas preliminares comuns.
Em seguida vem as práticas preliminares extraordinárias, que têm por função nos fazer acumular karma meritório e nos purificar de nossos véus. Para isso, é preciso tomar refúgio nas três jóias, cultivar a mente do despertar (bodhichitta), meditar sobre Vajrasattva recitando seu mantra, oferecer mandala e nos unir a todos os mestres no “guru yoga”. De todas essas práticas, a mais importante é o “guru yoga”, ou “yoga do mestre”.
Os ensinamentos como o tantra e a grande perfeição estão ligados à uma transmissão. A transmissão permite ao indivíduo compreender seu estado primordial ao nível da experiência imediata, por intermédio de palavras ou de símbolos, ou diretamente de mente para mente. O papel do mestre é conduzir o praticante a reconhecer que a natureza de sua mente é comparável a um espelho, e que os pensamentos que aparecem são comparáveis aos reflexos que surgem no espelho. Nossa pura presença, nossa consciência intrínseca [rig-pa], é análoga ao poder que tem o espelho de refletir tudo o que passa diante dele, tanto o belo como o feio. Esses reflexos aparecem como propriedades, ou qualidades, do espelho. Mas, pelo fato de não percebemos a natureza do espelho, seu poder, tomamos os reflexos que aparecem como entidades sólidas, exteriores e reais. Assim condicionados por esses reflexos, agimos de acordo com essa conclusão errônea para cair na transmigração. É o mestre que mostra ao praticante a diferença que existe entre a mente, quer dizer os pensamentos, e a natureza da mente. Quando começamos a apreender esta distinção, podemos seriamente falar de transmissão de conhecimento, um conhecimento que não é somente compreensão intelectual, mas experiência real e concreta.
No dzogchen, a palavra yoga não significa somente “união”, mas designa, sobretudo aquele ou aquela que seria rica de conhecimento do seu estado natural, dito de outro modo aquele ou aquela que se encontrará na presença do conhecimento de sua condição primordial chamada rig-pa, ou pura presença. Esta consciência de nossa pura presença inata, ou consciência intrínseca, é o nosso mestre verdadeiro. Esta condição tem por contrário a ignorância. Não deveríamos jamais nos permitir abandonar este estado de consciência. Os quatro momentos ou ocasiões, aos quais faz referencia no texto tibetano são os momentos em que comemos, quando andamos, quando estamos sentados e quando dormimos. Como já dissemos, na grande perfeição, o essencial, é não ficar distraído e perseverar na presença desta consciência vigilante.
Tal é a raiz da prática.

PRÁTICA DO DIA

4. Geralmente, na experiência comum, o que gira constantemente, é o ciclo do dia e da noite. É por isso que existe uma prática do dia e uma da noite.
Para a prática do dia, consideramos três pontos principais: compreender a prática, estabilizar a prática e progredir na prática.

I. COMPREENDER A PRÁTICA

5. O primeiro ponto consiste, pois em compreender a prática, “compreender”, não é somente raciocinar e analisar, mas repousa na transmissão. Nossa visão é uma maneira de ver, ou considerar as coisas cuja análise e as explicações podem fazer parte. Mas “compreensão” é, fundamentalmente, entrar no conhecimento desta visão por meio da experiência. Quando não temos conhecimento concreto desse tipo, dependemos das descrições e interpretações dos outros, as quais estão sujeitas à mudança.
Com o conhecimento real, todos os fenômenos não são mais que imagens irreais; não existem realmente e se parecem de preferência com os inúmeros reflexos em um espelho. O gatinho que ignora que a imagem na vidraça é seu reflexo tenta agarrá-la, como se tratasse dum companheiro real de brincadeiras.
No dzogchen, compreendemos que todas as aparências são manifestações visíveis do gênio inventivo da energia de “bodhichitta”, o estado primordial. Essas experiências são qualificações, ou ornamentos, deste estado: entrando verdadeiramente na sabedoria, não podemos duvidar disso. E podemos decidir de maneira definitiva que as aparências são um prodígio mágico da mente.

6. A natureza da mente é desde o inicio vazia e desprovida de eu ou substância. Mas não devemos imaginar que a mente é um simples nada, pois ela tem a claridade e a limpidez de um espelho. Esta claridade existe indefectivelmente e sem interrupção, como a lua que se reflete na superfície das águas mais diversas. Os pensamentos aparecem na mente, é essa a maneira da natureza da mente manifestar-se. Mas, do mesmo modo que é preciso compreender os reflexos para compreender a natureza do espelho, é preciso examinar os pensamentos para ver onde eles aparecem, onde permanecem e para onde vão. Entretanto olhando bem, descobrimos que não há lugar preciso onde os pensamentos surgem, nem onde permanecem, nem para onde vão. Não podemos afirmar nada sobre esse assunto, e não encontramos senão o vazio ou vacuidade. Eis a essência da mente. E, portanto, mesmo sendo assim, os pensamentos continuam a surgir sem descanso. Eis porque o que encontramos então é uma sabedoria de pura presença, totalmente livre da dualidade que opor-se-ia à vacuidade, por um lado, e a claridade, por outro lado. Esta sabedoria primordial tem uma natureza espontaneamente perfeita. Ao nível da mente, esta não-dualidade é impossível, porque a mente age no tempo e o estado de pura presença transcende tudo o que limita a mente.

7. Quando reconhecemos que as aparências são ornamentos da real condição da existência, essas aparências que se apresentam aos seis sentidos despertos, relaxados e alertas, são liberadas em si-mesmas em sua condição original no momento em que aparecem. Os seis agregados sensoriais são os cinco sentidos, aos quais juntamos a mente. A presença das aparências, anteriores à formação de qualquer conceito ou julgamento é chamada “claridade”. Com as aparências fazemos referência ao mundo exterior, enquanto é o mundo das experiências interiores que descrevem as emoções, ou paixões, e as marcas cármicas. A manifestação do estado interior da pura presença é a sabedoria primordial. A auto-perfeição espontânea, a saber, suas qualidades essenciais, estão sempre presentes ao aparecimento da pura presença; em outros termos, essas qualidades essenciais nunca lhe fazem falta, do mesmo modo que os raios não faltam ao Sol que se levanta. Nossas emoções aumentam de poder pelo simples fato de que, ignorando o estado de pura presença, corremos atrás delas. Quando nos encontramos no estado de pura presença, as emoções não nos dominam mais, com efeito, não temos mais que reprimi-las, pois elas são como ornamentos de nosso estado primordial. Assim nossas emoções se auto-liberam, no instante mesmo em que aparecem, em sua condição originária.

8. As aparências e a pura presença são inseparáveis. Reconhecendo isso, nos encontramos nesse estado, e os pensamentos discursivos que habitualmente aparecem na ligação dualista de sujeito e objeto são liberados em sua condição originária. Não tentamos bloqueá-los nem repeli-los de modo algum, mas ficamos simplesmente vigilantes na presença de seu surgimento.
Segundo suas capacidades, os praticantes recorrem a um ou outro dos três métodos de auto-liberação:

I. Auto-liberação pela atenção nua,
II. Auto-liberação apoiando-se no aparecimento de um pensamento,
III. Auto-liberação espontânea.

O termo [gcer] designa a “atenção única, ou nua”. Mas não se trata aqui da verdadeira auto-liberação, pelo fato de que mesmo nos observando recorremos ainda a uma certa dose de esforço. Quando um pensamento aparece, por exemplo, nós o olhamos diretamente de frente pelo que ele é e ele se libera por si mesmo.
O termo [shar] significa “aparecer”. No momento em que um pensamento surge, ele é auto-liberado. Quando, então, observamos que um pensamento surge, não temos que fazer o esforço de olhá-lo diretamente de frente, mas, no instante preciso de seu surgimento, estando já no estado da presença de rig-pa o pensamento se auto-libera. A verdadeira auto-liberação tem lugar quando esta capacidade é totalmente utilizada. Nesse ponto, estamos na continuidade do estado de rig-pa.

9. Este parágrafo exprime a essência do nosso assunto. A consciência que surge no primeiro instante do contato sensorial é esta pura presença, manifestada sem modificação nem correção pela mente, e que não é criada nem produzida por nenhuma causa. O que é este estado de presença? É uma condição de existência que transcende os limites do sujeito e do objeto; é uma sabedoria primordial de pura presença, espontânea e natural, ou autêntica. O termo [ainsité=asseidade] designa o estado que caracteriza ao mesmo tempo a pureza primordial e a auto-perfeição espontânea.

10. No estado de pura presença, os três aspectos do estado de Samantabhadra se encontram inteiramente presentes. Esses três aspectos receberam os nomes de essência, natureza e energia. Assim, o estado de pura presença tem por essência o dharmakaya, a vacuidade. Esta essência una é o fundamento essencial onde os fenômenos são todos idênticos. Dharma designa a totalidade do ser e kaya, a dimensão desta totalidade. Pois neste estado não existem marcas nem resíduos cármicos, usamos a palavra “vacuidade” para falar dessa essência. O carma trabalha sempre no nível da mente, enquanto que a pura presença, ou rig-pa, transcende às funções limitadas da mente. Não é, pois aqui uma questão da mente, mas da consciência primodial, ou sabedoria. A natureza deste estado, o sambhogakaya, é a claridade luminosa.
Sambhoga significa “dotado de riquezas”, “fruição de todas as qualidades do despertar em sua perfeição”. Kaya designa a dimensão suscitada. Claridade luminosa significa que existe uma manifestação, na forma de energia, a partir do fundamento primordial da vacuidade; esta manifestação não é ainda material mas ela já é diferenciada e se exprime como as cinco luminosidades, ou sabedorias primordiais. Esta dimensão ultrapassa todas as construções conceituais possíveis do intelecto finito. Sua energia, o nirmanakaya, é indefectível e jamais se interrompe. Nirmana significa “manifestação”, “emanação”, e kaya evoca a dimensão desta emanação. “Manifestação” designa alguma coisa no nível relativo, quer dizer em contato com os seres vivos na dimensão material.
O Budha Sakyamuni, que se manifestou no tempo e na história, não é outra coisa que um nirmanakaya. Entretanto, o nirmanakaya não é condicionado pelo carma nem pelas emoções. É assim que o trikaya, enquanto essência, natureza e energia, está inteiramente presente desde sempre na auto-perfeição de rig-pa.

11. Esta consciência, ou pura presença, que falamos aqui surge no frescor do primeiro instante, antes mesmo que a mente tenha a ocasião de mover-se e de funcionar na dualidade do sujeito e do objeto. Neste caso preciso, as aparências exteriores se apresentam unicamente como a manifestação da claridade luminosa. Tudo de que estamos conscientes nos aparece por intermédio dos nossos sentidos: os seis agregados sensoriais – os cinco sentidos físicos mais a mente. Quando é produzido o contato sensorial, a presença da sensação é transmitida à mente e o processo mental que se segue, engendra todos os tipos de concepções e de julgamentos. Mas, quando a mente ainda não está presa ao julgamento ou à conceituação, chamamos a isso [‘dzin-med], ou dito de outra maneira, “não estar se agarrando à nada”. Não cedemos a nenhum julgamento e permanecemos presentes na consciência. De maneira que podemos dizer que as aparências estão presentes, ou permanecem, na real condição da existência em si-mesma, o dharmata. Dharma significa “tudo o que existe” e ta, “em sua condição original”. Todas as coisas que se apresentam têm uma condição originária, uma natureza inata. Todas as espécies de diferentes coisas podem se manifestar, mas a sua condição originária continua a mesma. A madeira e a água, por exemplo, parecem diferentes, e suas funções se apresentam diferentemente, mas sua verdadeira natureza em si é a mesma, a saber, vacuidade. Esse nível de manifestação da energia de todos os fenômenos é chamado dharmata. Quando falamos da energia do individuo, empregamos a palavra [rtsal] para designar esta energia da condição da existência enquanto tal. Devemos, pois compreender o que entendemos por dharmata, de outro modo não poderemos integrar nossa própria energia.
Para concluir, diremos que o que se trata aqui, é que, no momento em que um pensamento surge na mente, não é necessário julgá-lo. Isso não quer dizer que é preciso ficar adormecido ou desatento. Ao contrário, nesse instante, estamos absolutamente presentes, totalmente alertas e conscientes. E se nos encontrarmos presentes neste estado de vigilância, isso estará além de todo conceito dualista e, portanto estaremos aqui, totalmente presentes com nossos sentidos. Quando permanecemos neste estado de presença e alguém, por exemplo, faz alguma coisa do nosso lado, é suficiente tomar nota mentalmente, sem, portanto processar o pensamento. O funcionamento dos sentidos não é bloqueado ou impedido, mas não é então permitido à mente entregar-se a julgamentos sobre o que acontece. Neste estado de presença, encontramo-nos no que chamamos dharmata, a real condição da existência.

12. Como este estado natural da consciência inicial instantâneo, reencontra assim a sua própria mãe, a real condição da existência, podemos dizer na verdade, que se trata do dharmakaya. Que significa esses reencontros com sua mãe? A mãe dharmata designa a real condição da existência tal como ela é, e é dela que surgem todos os fenômenos que aparecem, assim como as crianças nascem de suas mães.
Nos tantras, diz-se que tudo emerge de shunyata, a vacuidade: o vento, por exemplo, ou “vayumandala”, depois os outros elementos, um após os outros. De maneira que shunyata, a vacuidade, é a condição mesma das coisas, dizemos que ela é “sempre pura”. O individuo é geralmente condicionado por suas concepções e por sua visão dualista do mundo. Ele não compreende verdadeiramente o que entendemos por shunyata sem racionalizar e julgar de maneira dualista. Mas, aqui ele tem um reencontro face a face com a sabedoria-mãe o dharmata, um reencontro que não implica o funcionamento da mente, nem o raciocinar, nem o pensamento discursivo. Temos simplesmente a experiência desta dimensão da existência em si-mesma, que é o dharmakaya. O dharmakaya não é uma representação do Budha em postura de meditar, as mãos juntas e as pernas cruzadas; a imagem do Budha primordial, Samantabhadra existe somente para dar ao intelecto humano, limitado e finito, uma idéia do significado do dharmakaya. Esta imagem é um símbolo, mas o próprio dharmakaya se encontra de fato além da concepção e da expressão em formas, cores, etc. Ele é a dimensão mesma, onipenetrante da existência.
Que entendemos por mente? É necessário distingui-la do que chamamos “natureza da mente”. Para esclarecer as coisas, tomemos o exemplo dos reflexos no espelho. Os pensamentos que surgem na mente são como os reflexos, e o espelho em-si, que tem o poder de refletir, como a “natureza da mente”. Quando os pensamentos surgem, não os seguimos e não iniciamos julgamentos nem conceituações a seu respeito, mas permanecemos simplesmente presentes, e esta qualidade da natureza da mente não é outra senão rig-pa. Rig-pa é o nome deste estado de simples presença. Rig-pa é igualmente [lhun-grub], dito de outro modo, espontaneamente perfeito em todas as suas qualidades desde sempre. Não se trata de adquirir alguma coisa que não possuímos. Sobretudo, quando nos encontramos em um estado de presença, este manifesta todas suas qualidades inatas de modo espontâneo, e é isso que entendemos por [lhun-grub]. É o estado autêntico, natural e original da pura presença espontaneamente auto-perfeita, o estado natural da Grande Perfeição.
Que significa Dzogchen, “Grande Perfeição”? Não é um texto, uma tradição, uma escola, um sistema filosófico. É, sobretudo o estado primordial do individuo, puro, atemporal [não-nascido] espontaneamente auto-perfeito. Encontrar-se neste estado, é chamado Dzogchen, “Grande Perfeição”. Estar consciente deste estado, é o despertar; não reconhecer este estado, é a ignorância.

II. ESTABILIZAR A PRÁTICA

13. Abordamos agora o segundo ponto, a “estabilização da prática”. No momento em que adquirimos uma certa compreensão do estado de rig-pa que não tínhamos antes, devemos nos exercitar para nos reencontrar neste estado de presença. Achar-se neste estado de presença, é o samadhi, a “contemplação”. Nos sutras e tantras, encontramos numerosos métodos para atingir esse fim, mas aqui, vamos nos ater a três instruções essências: A integração. O relaxar na presença, e Os progressos na prática. Essas três instruções têm por objetivo integrar a presença à vida cotidiana. As duas primeiras instruções, a integração e o repousar na presença, dependem da estabilização da prática, e o terceiro, os progressos, representa o terceiro tema de nossa proposta que se decompõem em compreensão, estabilização e progresso na prática.

1. INTEGRAR

É preciso inicialmente considerar o método de integração, que é o meio de permanecer na presença. Em uma postura confortável, larguemo-nos até estar verdadeiramente relaxados por fora e por dentro; não nos sintamos responsáveis do que ou de quem quer que seja e integremos nossa consciência ao espaço claro e aberto do céu a nossa frente. Fixar o olhar em um ponto preciso é a fixação [concentração], mas não é o caso da integração [ar-gtad]. Aqui, não há, de fato, ponto no espaço no qual nos fixar. Ao contrário, quando contemplamos o céu, parecerá que, segundo nossa maneira de ver as coisas, a sensação dos olhos se esvaecem na vasta abóbada celeste.
A abertura do espaço integra-se em nosso estado e continuamos assim. Se não fizermos senão olhar o céu, muito bem, olhamos o céu: um processo de reintegração de nossas energias está em vias de se realizar e, embora nada tenhamos a fazer com a mente, a mente está bem aqui, como uma atenção pura, durante a nossa contemplação do céu.

14. Uma vez estabelecido assim em um estado relaxado e alerta, sem distração e sem meditação fabricada, esta consciência do instante inicial, comparável ao céu, é ainda uma condição onde nos achamos livres de todo apego e de toda prisão aos conceitos e julgamentos. A meditação implica o funcionamento da mente, e isso não é contemplação. Na integração ao espaço, não há nada a fazer com a mente, nada a visualizar ou a recitar. Não pensamos em nada de particular; uma atenção nua. Somente esta consciência então está presente, semelhante ao céu e não tem nada a ver com uma criação mental ou um apego. É uma simples presença de claridade que deixamos permanecer.
Diríamos o momento após a uma forte surpresa ou a um espanto profundo: quando, por exemplo, um possante som agudo nos assusta e todo o processo de pensamento para um instante. Então surge uma consciência simples e nua, onde não existe dualidade ou distinção entre o estado de calma, que é desprovido de pensamentos, e do movimento dos pensamentos. Shine, em sânscrito shamata, é um estado de calma onde os pensamentos discursivos estão ausentes; esta condição não é, todavia o que entendemos por contemplação propriamente falando. Shine é somente uma experiência de tranqüilidade. Quando surgem pensamentos, é uma experiência do movimento dos pensamentos. O estado de rig-pa, ou de pura presença, não é nem essa calma nem esse movimento, mas a presença encontrada tanto num como no outro estado.

15. Quando prolongamos o período de contemplação sem sucumbir à sonolência nem à agitação, encontramo-nos em um estado que se apresenta como uma luminosidade e uma vivacidade profundas. Existem diversas espécies de samatha, ou práticas de shine, e alguns defeitos nestas práticas, como a sonolência e a agitação. Nos sistemas dos sutras, propomos antídotos contra esses defeitos, mas explicamos aqui que quando nos encontramos no estado de rig-pa, escapamos desses tipos de defeitos. Pois, o princípio, aqui, é encontramo-nos perfeitamente neste estado. Quando este estado está presente, não há sonolência nem agitação; não é, pois questão de aplicar antídotos a defeitos que não existem. Eis um princípio essencial que ensina a upadesha dzogchen.
Quando prolongamos este estado de presença, e mesmo se, de maneira deliberada, fazemos apelo aos pensamentos ou, ao contrário, se procuramos repeli-los, até provocando a repetição, ou ainda aí nos relaxar, eles ficarão em sua condição originária. No momento em que eles surgem, sem que nada nos tire deste estado de presença, eles serão liberados por si-mesmos. Mesmo que todos os pensamentos surjam, isso não mudará nada, nem modificará nosso estado de presença.

16. Enquanto continuamos no estado de contemplação, estamos em mnyam-bzhag, e o período que segue a realização deste estado se chama rjes-thob. Quando saímos de um período de contemplação, a estabilidade de nossa prática pode ser medida observando se, sim ou não, estamos submetidos ao poder dos pensamentos condicionantes. Enquanto não permanecermos constantemente no estado da grande contemplação, todo período de contemplação será seguido de um período de não-contemplação. E, portanto, mesmo quando saímos da contemplação, nossa pura presença, ou consciência intrínseca, não é condicionada pelos pensamentos discursivos. Quando, por exemplo, estamos sentados em algum lugar e nos vem o desejo de beber um copo d’água, nos distraímos, e nossa consciência fica condicionada por uma causa. Não nos deixando distrair imediatamente e permanecendo na presença do instante, podemos avaliar a estabilidade de nossa prática.
Quando praticamos, é possível também que surjam todas as espécies de experiências meditativas: visões, sons, sensações e outras. Elas aparecem espontaneamente e não são condicionadas por nossas concepções ou julgamentos. Poderão acontecer experiências visuais, luzes, cores, auras, etc., ou ainda experiências sensoriais como leveza do corpo ou parada da respiração. Essas experiências são manifestações de nossas energias elementares. Não há nada a temer. Estamos perfeitamente tranqüilos, nossas energias estão relaxadas, e as experiências visuais ou sensitivas são exatamente os efeitos desta tranqüilidade.

17. Essas experiências aparecem não somente durante a contemplação, mas também depois de terminada a sessão de prática. Desenvolvendo nossa capacidade de praticar, pensamos cada vez mais que tudo é irreal e percebemos tudo como uma ilusão. É um sinal da diminuição dos apegos. Ou ainda, é possível que tenhamos uma experiência de vacuidade, uma experiência que verdadeiramente chegará a nós, muito diferente da simples leitura de um texto sobre shunyata, ou de uma compreensão de shunyata seguida por uma análise intelectual aprofundada. Podemos assim ter medo do vazio. É possível que sejamos capazes de permanecer em um estado de pura presença onde, aparentemente, não surge nenhum pensamento. Pode parecer ainda, que tenhamos atingido um nível onde não haverá mais necessidade de fazer esta ou aquela prática, como se não pudéssemos mais nos enganar. E, portanto, tudo isso, são apenas experiências devidas às práticas e elas não são tão ruins que as tenhamos que reprimir.

18. Se observarmos os raios do Sol, é preciso inicialmente que as nuvens que ocultam a nossa visão se retirem. O Sol então será visível e as qualidades de sua auto-perfeição começarão a se manifestar simplesmente tal como elas são. E a realização não significa que é uma questão de adquirir alguma coisa que não possuímos, nem produzir ou construir o que quer que seja artificialmente. O praticante que se encontra em um estado de pura presença não se atém somente à compreensão intelectual de shunyata, mas entra definitivamente na dimensão de shunyata. É a realização do supremo dharmakaya, a essência mesma da mente. O termo kaya, habitualmente traduzido por “corpo”, designa nossa dimensão total. Assim o dharmakaya é a dimensão total da existência. Quando estamos bem conscientes e surgem pensamentos, eles não se tornam jamais algo de concreto para nós, mas guardam sempre sua condição de vacuidade. Não somos mais condicionados pelos pensamentos nem pelos conceitos, e atingimos a sabedoria primordial da não-discursividade. Esses métodos nos permitem reduzir nossos obstáculos e nossos véus.

19. Uma vez que nossos véus e nossas marcas cármicas foram inteiramente purificados, nossas emoções não se manifestam mais para nos atrapalhar. Elas não escapam mais ao nosso controle, não se chocam mais contra nós como cavalos selvagens indomáveis. Mesmo se formos um ser comum, vivendo em um mundo de homens de carne e osso, no momento em que estivermos no estado de rig-pa, ultrapassaremos os limites da transmigração no samsara. Isso quer dizer que não seremos mais condicionados pelo que surge em nossa mente. O verdadeiro praticante de dzogchen, mesmo participando do mundo material concreto, não é condicionado pelo que o cerca. Conseqüentemente, ele não sofre como um ser comum que toma tudo o que lhe concerne como sólido, substancial e verdadeiro. Do praticante autêntico podemos dizer que triunfa da transmigração e da visão cármica. Assim, ele, ou ela, pertencem à família dos Arya, ou seres sublimes.

2. REPOUSAR NA PRESENÇA

20. Nossa segunda consideração versa sobre as instruções que permitem repousar na presença, permanecendo completamente alerta. Em tibetano “relaxado/repousado” se diz glod-pa ou lhod-pa. Entretanto, podemos achar, que relaxado seja também sonolento. Lhug-pa designa um repousar onde a consciência permanece alerta/atenta e presente. Assim, quando nos encontramos num estado repousado e atento, mal surgem as aparências e qualquer que seja o modo de surgimento, sem que não mais a mente proceda sobre elas alguma correção ou modificação, essas aparências são percebidas como simples ornamentos, ou embelezamentos, deste estado em si mesmo, que é a real condição da existência. Há na “upadesha” dzogchen uma prática que consiste em deixar a aparência ser como ela é e não outra. Não raciocinamos encima, não a alteramos por meio dos julgamentos. Em suma, surgindo as aparências, as deixamos surgir, ainda que, por seu lado, as aparências não condicionam mais o indivíduo de nenhuma maneira. Essas aparências são como ornamentos da energia do individuo. Este se encontra na verdadeira condição do espelho. Tudo o que se apresenta como aparência é comparável a um reflexo no espelho. Quer sejam belos ou feios, os reflexos não condicionam o espelho de nenhuma maneira. E é porque nada do que aparece cria mais problemas ao indivíduo. Como dizia mestre Phadampa: “O indivíduo não é condicionado pelas aparências, mas por seu apego às aparências; este apego encontra sua origem no indivíduo e não no objeto”.
No nosso interior, existe um estado de pura presença não corrigida, clara e nua. ‘Não corrigida’ e não modificada porque nem os pensamentos discursivos nem o funcionamento da mente a condicionam. “Nua” porque, no instante em que surgem os pensamentos estamos de fato aqui bem presentes, sem julgar nada nem racionalizar. Assim, permanecemos atentos e repousados, os pensamentos surgem, e os deixamos desfazerem-se em sua condição originária tal como eles são em si.

21. “Repousar na presença”, é quando, os sentidos entram em contato com um objeto, mas não o conceituamos imediatamente, raciocinamos nem julgamos o que for à seu respeito. Habitualmente, quando vemos um objeto, nossa mente emite um julgamento a seu respeito e pode ser que, por reação, um acesso de apego ou de aversão nos carregue. Então, levado por este acesso, passamos à ação acumulando um pouco mais de carma, que nos acorrenta a transmigrar no samsara. Entretanto, a expressão “sem racionalizar nem analisar” não significa que deveríamos tentar bloquear nossos pensamentos. Quando praticamos za-zen, por exemplo, entramos em um estado não discursivo onde temos a experiência da vacuidade sem nenhum bloqueio dos pensamentos. Digamos que vemos um livro sobre a mesa. Poderíamos levá-lo ou deixá-lo ali como um objeto sem importância. Bloquear um pensamento significa retirar algo, tentar eliminá-lo. Mas, quando falamos de não começar a racionalizar nem julgar, entendemos: deixar as coisas onde elas estão, como elas são, sem que nos perturbem nem distraiam. Às vezes, mesmo quando não começamos a raciocinar nem julgar, os pensamentos continuam a surgir em um estado de presença claro e atento sem interrupção nem impedimentos. É importante compreender bem o que entendemos por “não estar distraído” no contexto do dzogchen. É permanecer desperto. Não estar distraído, não é certamente ter uma espécie de policial que não cessaria de surgir no interior de nossa mente nos chamando à ordem/atenção.
Quando nos encontramos no estado de rig-pa, as qualidades inerentes à rig-pa se manifestam como tudo o que aparece, de modo que não há nada a interromper ou a construir. Os raios de Sol são a expressão mesma do Sol quando ele brilha. Igualmente, tudo se apresenta como o ornamento de nossa energia e, neste estado, esta presença é perfeita enquanto tal. A idéia que as coisas são espontaneamente perfeitas é crucial no dzogchen. Se não falarmos de pureza primordial, o dzogchen não seria diferente do zen. Mas esta compreensão de lhun-grub situa o dzogchen à parte do zen. Quando estamos presentes no estado de rig-pa, tudo o que vemos é uma manifestação de nossa energia individual, assim como os reflexos em um espelho.
Toda a dimensão que nos cerca, espontaneamente perfeita enquanto tal, obedece ao gênio inventivo da pura presença. Como diz nosso texto: Quando as aparências, que são os objetos das seis faculdades sensoriais, surgem como simples ornamento de nosso estado em um modo luminoso, sem entraves e sem análises, então essas aparências são inteiramente perfeitas e completas, justamente enquanto tais. A experiência que temos agora é a do gênio inventivo da pura presença sem nenhum apego, sem conceituar nem emitir julgamento. Assim entramos neste estado não-dual e permanecemos, presentes e relaxados. É isso que entendemos por lhug-pa.

22. Quando falamos do período de contemplação, ou mnyam-bzhag, falamos da presença no estado de rig-pa. A expressão rjes-thob designa o período que segue à contemplação. A “grande contemplação” é quando o praticante atingiu uma fase de desenvolvimento onde sua contemplação não se limita mais às sessões formais da prática. Mas, para o iniciante, a contemplação e a parada da contemplação formam sempre dois momentos distintos. Alem disso, durante a sessão de contemplação buscamos, sem nos lançar na menor análise nem no menor raciocínio do que seja isso, permitimos aos objetos dos cinco sentidos, dito de outro modo, às aparências, surgirem, claras e luminosas, permanecendo relaxados e alertas, livres da distração e da tensão sobre qualquer concepção ou julgamento que for. Mi g.yo-ba significa “que não se move” ou “que não está distraído”. Quando o estado de rig-pa se interrompe, é g.yoba, a distração. Dizemos que o Budha Shakyamuni foi muitas vezes encontrado em um estado de samadhi imutável, de concentração sem distração. Mas isso não significa que seu corpo físico estáva necessariamente imóvel. Isso quer dizer, sobretudo que ele se encontrava em um estado de pura presença rig-pa, e que ele não se desviava deixando-se distrair pelas atividades da mente. Ele não estava nem condicionado pelos pensamentos nem distraído e, entretanto, agia perfeitamente – quando se deslocava, falava, pensava. Então, uma vez concluída a sessão de contemplação, nada de concreto aparece aos sentidos nem parece ter realidade em-si. A mesma coisa para as emoções; elas não têm realidade em-si, nem natureza própria. De modo que tudo o que aparece aos sentidos se torna um meio de permanecer na sabedoria primordial.

23. Até o momento, tomamos em consideração as aparências exteriores; vamos agora nos voltar para o lado subjetivo das coisas, para o indivíduo mesmo. Os cinco venenos são as cinco emoções*, relaxamo-nos com vigilância olhando-os direto na face sem ceder ao jogo dos conceitos e dos julgamentos. Não deveríamos, por outro lado, tentar bloqueá-los recorrendo à um antídoto como se faz no sistema dos sutras, nem transformá-los por meio de um método hábil, como no sistema dos tantras. No sistema dos sutras, o antídoto do desejo ou apego, por exemplo, é a meditação sobre o aspecto repugnante da carne; o antídoto da cólera é a meditação sobre o amor e a compaixão; o antídoto da inveja é a alegria de apreciar os méritos daqueles que os têm, etc. No sistema dos tantras, transformamos as emoções em sabedoria primeira: a cólera, por ex., é transformada na cólera de Heruka. Não bloqueando nem transformando, as emoções que surgem no curso da prática do caminho são auto-liberadas rang-grol, e uma sabedoria primordial se encontra então presente.
Quando não estamos no estado de rig-pa, as emoções se tornam venenos; elas interrompem e entravam nossa realização, e as chamamos demônios. Elas dificultam a transformação. Quando perseguimos um pensamento discursivo agitando nossa mente, este pensamento pode tornar-se um veneno para nós, e é assim que nos tornamos escravos das paixões. Se ao contrário, permanecermos presentes não seremos de modo algum, condicionados pelos pensamentos, e tudo que percebermos nada mais serão que reflexos no espelho. Não é, pois necessário recorrer a um antídoto para bloquear a emoção, pois ela libera-se por si só. Aqui, não é mesmo uma questão de gcer-grol, de liberação por atenção totalmente nua, a qual consiste em olhar direto na face o pensamento discursivo que aparece na mente e que por si só se libera. Esse procedimento implica ainda um esforço. Aqui, é de outra coisa que se trata. Lhung-pa quer dizer, “repousar na presença”. Quando sentimos subir uma emoção, relaxamos a tensão sem tentar bloqueá-la ou aplicar-lhe um antídoto. Não sucumbimos à emoção muito simplesmente porque, doravante, a emoção é regida pela consciência de pura presença rig-pa. No meio desta presença relaxada, nossas emoções em si não se revelam em nada diferentes das qualidades inerentes ao nosso estado primordial enquanto se manifestam. Tal é o método de auto-liberação das emoções.

24. Vejamos agora as experiências que surgem durante a prática da meditação. Elas se manifestam como luminosidade e vacuidade, e estão presentes em um estado de visão e vacuidade, em um estado de movimento alternado de pensamentos e vacuidade, ou ainda em um estado de sensação agradável e vacuidade. Essas espécies todas de experiências conscientes, de sensações agradáveis, de visões luminosas e de instantes de não-discursividade são possíveis. Essas experiências todas dependem do indivíduo.

25. A palavra “kaya” designa a dimensão total de nossa existência. Quando compreendemos que todos os fenômenos são o dharmakaya, a completa dimensão da existência, penetramos num estado de conhecimento, ou consciência, da real condição das coisas como elas são além das modificações da mente. Esta consciência espontaneamente perfeita e não-dual apresenta-se como uma esfera perfeita, completa, una e não-dual. Esta esfera não tem ângulos nem limites. Em torno desse centro, nossa energia se manifesta de maneira espontaneamente perfeita. É assim que podemos falar de realizar a dimensão total da sabedoria primordial, ou “jñanakaya”: uma sabedoria primordial de luminosidade.

26. Os objetos e seus contatos com os sentidos são muitos, mas agora, o indivíduo não está mais condicionado pelos objetos. Nós temos uma viva experiência no presente: seja o que for que se apresente, não tem realidade em si, mas se parece com um reflexo num espelho. Os objetos que percebemos apresentam-se como manifestações da real condição da existência: nossas emoções e nossos véus estão purificados. É assim que ultrapassamos o obstáculo das emoções e nos liberamos. A própria presença duma sabedoria primordial de pura presença permite ao indivíduo de liberar-se de toda implicação nos comportamentos negativos. Não mais nos limitamos pela necessidade de aprender o que é preciso e o que não é preciso fazer. Ultrapassamos os limites que nos impõem as emoções e nos unimos a uma claridade luminosa. Não somos mais escravos das aparências exteriores e governamo-nos com completa autonomia, com ajuda de nossa própria sabedoria. Atitudes e ações negativas são doravante impossíveis. Por quê? Porque tudo que surge de negativo para o indivíduo é devido a uma baixa de consciência e de luminosidade.
O indivíduo é liberado de suas emoções, de suas marcas cármicas e de seus véus, e dizemos então que ele, ou ela pertencem doravante à família dos bodhisatvas.

III. PROGREDIR NA PRÁTICA

27. Agora, consideramos o terceiro tema desses ensinamentos: como progredir na prática. As duas instruções precedentes concernem à integração e o relaxar na presença; elas têm por objetivo estabilizar nossa prática. Mas, quando queremos nos beneficiar desta prática e progredir, é preciso que, desde o início, nossa consciência permaneça presente sem modificação alguma. Trata-se de uma pura presença não discursiva, luminosa e viva. O estado de rig-pa não é condicionado pelos pensamentos discursivos. Aqui, entretanto, a não-discursividade não é a ausência pura e simples dos pensamentos discursivos, mas o fato de não se deixar condicionar pelo seu surgimento. Rig-pa é vasto; não falta espaço para os pensamentos. Se fosse diferente, não haveria meio de integrar a contemplação à vida cotidiana, nas atividades do corpo, da fala e da mente. O estado de rig-pa permanece fora e além do tempo. Este estado transcende, pois a mente. Mas é possível encontrar-nos no estado de rig-pa efetuando perfeitamente todas as atividades do corpo, da fala e da mente. No estado de rig-pa, os pensamentos podem surgir sem provocar o menor dano, e é possível seguramente traduzir esses pensamentos em atos. Tudo que precisamos, é permanecer claramente aí, em um estado de presença. É assim que a continuidade de nossa consciência permanecerá estável e não distraída. Eis como progredimos na prática.

28. O período de contemplação prossegue, e não nos submetemos mais a influência da sonolência nem da agitação, porque no verdadeiro estado de rig-pa nenhum defeito é possível. E mais, tudo se manifesta como vacuidade, que é a real condição da existência. Nossa visão surge em sua totalidade como um ornamento do estado do indivíduo. É justamente assim e existe, pois um meio de reintegrar nossa energia. Após a sessão de contemplação, sem deixar-nos condicionar pelos pensamentos, deveríamos continuar no estado da natureza da mente que existe simplesmente tal como é.

29. Pelas experiências produzidas durante a prática da meditação, encontramo-nos num estado de não-dualidade, quer estejamos ou não meditando. A “meditação” aqui, não designa uma atividade da mente – visualização ou análise –, mas o simples fato de nos encontrar em um estado de presença. Nesse caso, não há conceito, julgamento, ou nenhuma restrição mental. Quaisquer que sejam as aparências que surjam, seja qual for a visão que nos cerca, tudo se apresentará como a expressão da energia da contemplação do indivíduo. A real condição da existência de todos os fenômenos, simplesmente tal como é, se apresenta sem se desviar da situação primordial que muito naturalmente tem lugar.

30. Por aquilo que é a nossa dimensão total, todos os fenômenos que surgem, os visíveis bem como os invisíveis, são totalmente purificados em si mesmos no estado da real condição da existência, ou dharmata. “Purificados”, não porque eliminamos os fenômenos fazendo funcionar nossa mente, mas sobretudo porque o indivíduo se encontra ele próprio na condição precisa dos fenômenos, e é por isso que tudo é purificado. Não é necessário retirar os reflexos do espelho. Porque, de fato, para compreender a natureza do espelho, é preciso passar por seus reflexos. Aqui, o individuo se reencontra com o poder evidente que tem o espelho de refletir, e assim todos os reflexos são essencialmente puros: podemos dizer que atingimos a suprema dimensão da não-dualidade onde não há mais divisão em sujeito e objeto, e uma sabedoria primordial de modo nenhum revestida/coberta de funções mentais se encontra aí presente em toda a evidência.

31. Inteiramente purificados de nossos véus cognitivos – os quais podem ser verdadeiramente muito sutis –, atingimos um conhecimento de todos os fenômenos tal como são em sua real condição de existência. O indivíduo é então liberado de todas as considerações dualistas – daquele que conhece e daquilo que é conhecido –, e dizemos que ele, ou ela, pertencem à família dos oniscientes tathâgatas.

PRÁTICA DA NOITE

32. O yoga da noite consiste em duas práticas. Prática da noite, que se executa no momento de adormecer, e da manhã no instante do despertar. Quando dormimos, os sentidos estão em repouso. Praticamos antes de adormecer por que todos os sentidos ainda estão presentes. Os relaxamos em um estado de contemplação. Não lhes permitimos entrar em um estado condicionado; deixamos as coisas tais como são sem sentir-nos coagidos. O indivíduo deve também integrar sua prática de concentração ao sono. Que quer dizer “meditação concentrada”, dhyana? Quando nos fixamos de maneira precisa e com uma grande concentração num objeto antes de lentamente relaxar sua atenção, praticamos samatha ou shine, “acalmar a mente”. Quando trabalhamos de preferência com os movimentos dos pensamentos, isso é que chamamos vipassana ou lhagtong. Dhyana designa essa espécie de meditação. Para a prática da noite, um mínimo de atenção e vigília da mente se revela necessária. Pois é preciso integrar esta concentração ao sono e adormecer em um estado de concentração.

33. Como procedemos? Bem antes de adormecer, visualizamos um A branco entre nossas sobrancelhas, ou uma pequena pérola esférica (tiglé) parecida com um arco-íris de luzes das cinco cores. Visualizamos bem claramente: o A branco ou a pérola não são maiores que um grão de ervilha. Na upadesha dzogchen, as visualizamos no centro do coração de preferência à entre as sobrancelhas; porque essa última visualização cria uma impressão de presença excessiva, susceptível de impedir o adormecimento. De nossa parte, entretanto, adotaremos a visualização entra as sobrancelhas, porque ela permite controlar automaticamente todas as nossas energias vitais ou “prana” (rlung). Se parecer difícil visualizar o A nesse lugar, procederemos a alguns arranjos. O praticante deve proceder com discernimento porque é o individuo que comanda a prática e não ao contrário. É inútil realizar esta visualização se ela impedir o sono. Ela não deve ser muito brilhante, o que nos impediria de adormecer facilmente. Podemos ainda, no lugar do A, visualizar um bindu (tigle), uma pérola de luz irisada análoga as penas da cauda do pavão. Se pudermos visualizar esse bindu pentacolorido, isso terá melhor efeito no controle dos elementos. Começaremos, pois fixando nossa atenção no objeto da meditação, depois relaxaremos ligeiramente nossa atenção; sem esse relaxar não conseguiremos dormir.

34. Quando adormecemos em um estado onde nossos seis agregados sensoriais estão relaxados e alertas, nossa presença não é manchada pela fuligem dos pensamentos discursivos e a clara luz natural manifesta-se. Quando nos fixamos ou nos concentramos num único objeto de meditação, não há lugar para pensamentos estranhos. Mas quando relaxamo-nos um pouco, é fácil surgir pensamentos, como ao individuo deixar-se condicionar por eles. Nós não devemos tentar bloqueá-los, mas se nos faltar presença, eles nos distrairão. Seremos então prisioneiros desses pensamentos e o sono terá que esperar. Mas se permanecermos na presença de um estado relaxado, o sono virá facilmente. Em outras palavras, teremos integrado essa pura presença ao sono, isso leva o nome de “clara luz natural”. Encontraremo-nos então na presença da real condição da existência, o dharmata, livre da distração dos pensamentos discursivos.

35. Entretanto, se podemos fazer a visualização, mas não conseguimos dormir, como proceder então? Quando vamos nos deitar, temos ainda pensamentos porque a mente continua funcionando. Também, quando surgee um pensamento, nesse instante de reconhecimento muito preciso, nos encontramos presentes com uma atenção clara a tudo que surge. Continuamos nessa presença clara e límpida, apesar da intrusão de outros pensamentos. Mas não vemos nada neles que poderíamos dizer tratar-se da calma, ou então do movimento dos pensamentos. Esse procedimento não impedirá nem um pouco o individuo de dormir. Mas saturando a mente com pensamentos e deixando-nos prender à todas as espécies de coisas por distração, seremos incapazes de adormecer. Jamais, entretanto, o estado de presença afetará nosso sono. Encontraremo-nos, pois num estado de presença alerta e vibrante: estabelecidos então em uma presença tranqüila, adormecemos.

36. O processo de adormecimento gnyid-log é em si mesmo a circunstância que permite entrar na claridade da real condição da existência. O funcionamento de todos os nossos sentidos, quando estamos em um estado de presença, se encontra inteiramente absorvido no dharmadatu. Até o adormecer completo, é possível, nos encontrar presentes nesse estado de contemplação.

37. Ao adormecermos, livramo-nos das marcas kármicas do corpo material, das marcas kármicas da visão e das marcas kármicas do funcionamento da mente. Durante o estado de vigília, essas marcas kármicas se manifestam respectivamente como nosso corpo material, como as aparências exteriores que percebemos e como o funcionamento das nossas mentes. Porque dizemos que estamos desembaraçados? Os muros bem sólidos de uma peça, por exemplo, constituem limites materiais que nós não podemos livremente atravessar. Mas quando estamos presentes no estado de rigpa, não somos condicionados pelos corpos materiais. Quando estamos presentes neste estado, há meios de ultrapassar estes limites e nos reencontrar na real condição de existência. Como é isso possível? Entre o momento em que dormimos e o momento em que começamos a sonhar, a mente não funciona e encontramo-nos na presença da real condição da existência. Neste estado, teremos a experiência de um certo grau de fusão com o que chamamos a clara luz natural. Se for o caso, seremos capazes de experimentar sem muito esforço, sonhos conscientes dos quais poderemos controlar o conteúdo. De outra maneira, no instante da morte, seremos capazes de morrer mantendo uma presença e uma sabedoria totais. E quando morremos mantendo a presença, todas as aparições que surgem no tchönyi bardo, aparecem simplesmente como a manifestação da perfeição espontânea, e as reconhecemos como tais. Essas qualidades espontaneamente perfeitas que aparecem então são as do sambhogakaya. O adormecer é um processo análogo ao da morte, dominando o estado de sonho nesta vida, atingiremos o domínio da morte e do estado do bardo. Adormecer no estado da clara luz natural equivale a experiência do tchönyi bardo.
A etapa seguinte é o surgimento do sonho. O estado de sonho é análogo ao sipai bardo. Chamamos esse último “bardo do futuro”, porque ele representa o desencadeamento do processo de renascimento. Quando estamos conscientes de nos encontrar no bardo, há muitas coisas a fazer para melhorar a situação. Assim, do mesmo modo que no estado de sonho, no bardo, não somos condicionados por um corpo material e, portanto não temos as nossas faculdades sensoriais. Graças às práticas efetuadas enquanto vivo, o praticante se encontrará numa melhor posição, e ele terá adquirido uma claridade maior que um ser comum preso às experiências da pós-morte. Pelo fato de sua maior claridade no bardo o praticante terá a capacidade de compreender sua condição e o que está por vir. Ele não se sentirá desamparado, empurrado cegamente e jogado daqui para lá pelo vento de seu karma. Mas esta capacidade só é possível se estivermos conscientes e presentes durante o bardo. É a mesma coisa para os sonhos lúcidos, embora possamos utilizar o estado de sonho para adquirir esta capacidade graças a uma prática cotidiana. No estado de vigília, é preciso passar pela porta para sair de uma peça, mas no estado de sonho podemos atravessar muros, mesmo se forem aparentemente sólidos. Essa experiência do estado de sonho favorece enormemente o triunfo sobre os apegos de nossa vida cotidiana, porque em sonho nós temos diretamente a experiência da insubstâncialidade e da irrealidade de todas as coisas.

38. Quando nos encontramos no estado da clara luz natural, não temos pensamentos discursivos criadores de distrações. Nosso estado de presença se absorve em sua “mãe”, a clara luz natural, e nós nos reconhecemos no estado de dharmata, a real condição da existência. Diríamos os reencontros de um filho único e sua mãe após uma longa separação. Assim falamos da clara luz “filha” que tivemos a experiência na prática durante a vida, e da clara luz “mãe” que experimentamos no momento de adormecer, e muito particularmente no momento da morte. O que nos interessa, é o principio de reintegração da energia. Pelo fato de praticar a clara luz natural, ela chegará durante o período que segue à contemplação, e no caso que nos ocupa, saber, o estado de sonho, onde nós começamos a ter a experiência da consciência de sonho: reconheceremos que os sonhos são sonhos sem sair do sono. Assim, a prática da clara luz natural é suficiente, e não temos necessidade alguma de nenhuma outra prática especial, de nenhum outro yoga. Encontramo-nos libertos de toda ilusão e alucinação, e os sonhos surgirão como amigos benfeitores ajudando-nos a manifestar nossa dimensão da existência na sua totalidade, do mesmo modo que sua sabedoria primordial.
Existem duas maneiras de olhar essa vitória sobre a ilusão. De uma parte, reconhecendo que os sonhos são sonhos enquanto dormimos, tomamos consciência da natureza ilusória do estado de sonho, e, durante o estado de vigília, tomamos cada vez mais consciência da natureza ilusória de todas as coisas na vida cotidiana. Por outro lado, não somos mais escravos dos sonhos e do sono. Quando dormimos, temos tendência a ser condicionados pelos sonhos segundo os mesmo esquemas que nos condicionam na vida cotidiana. Esta prática faz, pois do sonho um método da descoberta do verdadeiro conhecimento e, do mesmo modo, um meio de desenvolver a manifestação de nossa dimensão e de nossa sabedoria primeira. Eis, em resumo a prática da noite.

PRÁTICA DA MANHÃ

39. Existe uma prática da manhã para o momento de acordar. Que fazemos então? Quando acordamos pela manhã, uma sabedoria primordial aparece sem que a mente a tenha modificado, que se mantém presente em sua condição originária. Em seguida mergulhamos, habitualmente, no funcionamento da mente e dos sentidos, como um morto que descobre que renasceu em um novo corpo. Ora, se por outro lado, ficamos nesse estado natural de pura presença sem distração e sem proceder à nenhuma meditação, nós nos reencontramos tranqüilamente presentes em nossa natureza espontânea, e nenhum pensamento discursivo nos perturbará. O indivíduo que se encontra nesse estado não poderá ser condicionado por qualquer aparência que for, nem por nenhum pensamento discursivo. É o que chamamos do supremo guru Samantabhadra. Samantabhadra representa o verdadeiro estado primordial do indivíduo, seu “guru secreto”, se assim podemos dizer. Eis, pois uma maneira de praticar um “guru yoga” essencial. É preciso compreender que esse estado de “rigpa” é rigorosamente idêntico ao estado do guru, do mestre em-si, e que este estado de “rigpa” não é nenhum outro senão nosso estado primordial inato. Conseqüentemente, não será uma questão, no “guru yoga”, de unir ou fundir duas entidades separadas, o mestre e nós mesmos; são sobretudo duas coisas inseparáveis desde a origem primordial! Reconhecer a inseparabilidade do estado do mestre e do nosso próprio estado é a maneira suprema de praticar o “guru yoga”.

40. Assim, quando despertamos, encontramo-nos em um estado de presença e, com uma atenção nua, olhamos diretamente esse estado de presença correta para ver o que podemos encontrar. Neste instante de presença bem preciso não encontraremos, entretanto, absolutamente nada de identificável ou que possamos identificar. E não achamos mais o meditador: ninguém está praticando meditação. De maneira que esta sabedoria primordial nascida de si mesma, luminosa e nua, que surge ao despertar, não encontrando nada a constatar, se auto-libera dos fenômenos. Uma sabedoria primeira não-dual torna-se presente. Esse é um ponto da prática muito importante. Embora aqui a questão seja do despertar, de manhã, deveríamos tentar nos entregar à essa prática a cada instante, e por uma boa razão, mesmo quando nos acreditamos muito presentes em um estado de pura consciência “rigpa”, é possível que estejamos ainda sujeitos a uma espécie de sonolência, até mesmo de torpor. Para tratar esse problema, não teremos que recorrer a nenhuma estratégia seja qual for, não pensaremos que é preciso inicialmente fazer isso ou aquilo. Será suficiente estarmos presentes, porque assim reencontraremos nossa condição anterior, e isso nos reconduzirá ao estado de “rigpa”. Esta condição não implica, portanto nem trabalho, nem pensamento da mente; é simplesmente o meio de nos encontrar em um estado de presença cuja claridade vai aumentando. É também um meio de “refrescar” nossa contemplação em geral, e referimo-nos a isso falando de “sabedoria primordial espontânea”.

41. Assim, ao nos acordamos de manhã, uma sabedoria primordial não-dual aparece e, ao mesmo tempo em que ela aparece, é auto-liberada. Encontramo-nos além de nossa visão kármica comum de um modo objetivo e transcendemos todos os pensamentos dualistas: uma sabedoria primordial não-discursiva manifesta-se claramente. Permanecemos então presentes nesta sabedoria que os pensamentos discursivos não podem absolutamente condicionar. Nossa presença na sabedoria permite a uma consciência primordial de luminosidade, não manchada pelos pensamentos discursivos de tornar-se claramente manifesta. E como não nos encontramos mais no nível dual do sujeito e do objeto, é uma sabedoria primordial de sensação agradável que se torna claramente manifesta.

42. Além disso, uma sabedoria primordial suprema se eleva, que não é nunca errônea porque compreendemos que todos os fenômenos são, em si mesmos, a real condição da existência. A seguir, é uma sabedoria primordial de avaliação quantitativa, conhecendo cada coisa em sua individualidade, que se faz completa e claramente evidente, e então, a natureza espontânea do “trikaya”, ou das três dimensões de nossa existência, se torna manifesta em grau supremo.

BENEFÍCIOS DA PRÁTICA

43. Quando praticamos desse modo noite e dia, é a vida que entra em contemplação na totalidade de sua dimensão. Pouco a pouco o individuo adquire uma aptidão cada vez mais desenvolvida, até que a prática lhe seja familiar. Portanto, as paixões se apresentam como alguma coisa útil na via. E alem do mais, adquirimos, em certa medida, a possibilidade de ajudar os outros no “trikaya”, as três dimensões da existência.

44. Nosso grau de familiaridade com a prática podemos medir pelo controle maior ou menor do estado de sonho. A prática nos permite, dia após dia, triunfar sobre os apegos, de maneira que as sensações de prazer e de dor não mais nos condicionam. E encontramo-nos em um estado de integração em nenhum caso recoberto por concepções e julgamentos. Pelo simples fato da presença da sabedoria primordial, todas as aparências surgem como amigas suscetíveis de nos ajudar na via. De fato, tudo o que encontramos na via pode servir à aprofundar nossa prática. Podemos, pois, interromper a continuidade da visão ilusória e nos reencontrar no estado do “dharmata”, a real condição da existência.

45. O perfeito praticante do dzogchen encontra-se no estado real da existência e aí permanece sem jamais se desviar, tanto de dia como de noite. “Sem desviar” designa a estabilidade da presença. É possível realizar a budeidade mesma em um instante tão breve como aquele que separa duas respirações.

46. Como podemos utilizar as emoções quando elas aparecem na via? Sem categorizá-las em boas ou más, encontramos todos os fenômenos presentes no estado da real condição da existência. É isso que entendemos habitualmente por ro-gcig, “de um único sabor”. Como todos esses fenômenos estão aí na plena pura presença, e na ausência de qualquer conceituação à respeito, reconhecemos o erro por permanecermos na não-discursividade. Em outros termos, nos encontramos em um estado de pura presença, e então, quando se eleva a paixão do erro, nos reencontramos em um estado de não-discursividade. Todos os fenômenos se manifestam como a real condição da existência tal como é em si mesma. A vacuidade e a perfeição espontânea estão simultaneamente presentes nesta sabedoria primordial.

47. Todos os fenômenos que se apresentam como os objetos dos seis agregados sensoriais estão presentes em um modo de claridade luminosa e são despidos de ser-em-si. Embora não existindo realmente, eles estão aí como a real condição da existência. No momento que ela surge, reconhecemos que a emoção da cólera tem por marca distintiva a claridade luminosa, e esta emoção se manifesta como a sabedoria primordial da luminosidade.

48. Tudo o que aparece a nossa volta, tudo o que concerne a nossa visão exterior, tudo não é outra coisa que o estado da real condição da existência, e, no nosso interior, o estado de pura presença é em si mesmo a sabedoria primordial. Deveríamos, todavia evitar de pensar que essas duas coisas (o dharmata e rig-pa) são de um modo último distintos e separados. Se fosse esse o caso nenhuma integração seria possível. Mas não permaneceremos no nível onde fazemos distinção entre um exterior que se oporia a um interior. A realização desta inseparabilidade dá nascimento a manifestação de grande felicidade, mahasukha, que é não–dual por natureza. E como ela encarna a energia, ou compaixão, reconhecemos a emoção do desejo como, na realidade uma manifestação do poder criativo da grande felicidade. Assim, se manifesta uma consciência primordial da sensação de grande felicidade, espontaneamente perfeita e sem a menor limitação. Eis como é possível utilizar as emoções na via.

49. Adquiriremos o poder de ajudar todos os outros seres alargando as três dimensões de nossa existência. O indivíduo existe em três modos, segundo o funcionamento do seu corpo, fala (ou energia) e sua mente. Quando nos realizamos completamente, esta realização pode se manifestar de diferentes maneiras que representam a manifestação do trikaya, das três dimensões de nossa existência. O nirmanakaya designa então nossa dimensão material, ou nosso corpo, o sambhogakaya designa a dimensão sutil de nossa energia e o dharmakaya, a dimensão da existência e a sabedoria primordial que lhe é inerente. Nesse nível os três venenos não são mais chamados “venenos” porque, o indivíduo ao atingir a realização, esses mesmos venenos manifestam-se estritamente como sua dimensão de existência e a sabedoria primordial que lhe é inerente.

50. Não existem mais paixões enquanto tais, as causas de sua emergência foram todas eliminadas, e escapamos da transmigração no samsara. A condição do nirvana foi atingida, isso significa literalmente “passamos além do sofrimento”. Embora lhe seja dado o nome de nirvana, como se alguém chegasse a algum lugar, ou houvesse atingido alguma coisa, na verdade não há nenhum objetivo, nem nada a atingir. Essas são, sobretudo e muito simplesmente, as qualidades inatas desse estado do indivíduo que são espontaneamente tornadas evidentes, em uma forma perfeita, por si mesmas e sem correção nem modificação da mente. Nada a mudar, nada a corrigir, nada a modificar; tudo é perfeito tal como é pelo fato mesmo de ser a manifestação espontânea do estado primordial do indivíduo. Ele vê simplesmente que aquilo que estava em potência desde o início está doravante manifesto, como o sol que reaparece no céu uma vez que as nuvens se dissiparam. É isso que chamamos “claridade”.

QUALIDADES DO PRATICANTE

50. No veículo supremo do Atiyoga dzogchen, esta prática é dita ser bem adaptada ao praticante que possui cinco aptidões:

1. Boa vontade de participar, ou a fé.
2. Aplicação na prática.
3. A presença da mente, ou atenção.
4. A concentração.
5. A inteligência, ou conhecimento.

Temos necessidade de cada uma dessas cinco aptidões. Com sabedoria e inteligência, devemos trabalhar para reunir condições favoráveis ao desenvolvimento de tal aptidão ou de outra que nos faz falta, ou de que temos necessidade. Assim, não nos faltará a ocasião suprema de praticar o dzogchen.

CONCLUSÃO

52. Quando agimos segundo o sistema dos sutras do mahayana, é sempre com a intenção altruísta de fazer o bem a todos. Não é preciso, em seguida negligenciar a compreensão da vacuidade e da natureza ilusória de todas as coisas. E enfim, no momento de concluir, dedicamos os méritos provenientes da prática para o benefício de todos os seres. Expomos aqui uma ínfima porção do néctar quintessencial do ensinamento do mestre Garab Dordje formulando o desejo que todos aqueles que entraram em contato com essas instruções realizem por eles mesmos o estado de Samantabhadra, o estado primordial do indivíduo.

RESUMO BIOGRÁFICO DO AUTOR

O autor deste texto sobre a prática do dzogchen, Namkhaï Norbu Rinpoche, nasceu em dGe-‘ug, cidade do distrito de lCongra, no principado de sDe-ge no Tibet oriental, no oitavo dia do décimo mês do ano do tigre da terra (1938). Seu pai, sGrol-ma Tshe-ring, pertencia a uma família nobre e havia participado no governo de sDe-dge, e sua mãe se chamava Ye-shes Chos-sgron.
Com a idade de dois anos, ele foi reconhecido por dPal-yul Karma Yang-srid Rinpoche1 e Zhe-chen Rab-‘byams Rinpoche2 como a reencarnação de A‘dzom ‘Brug-pa3. A‘dzom ‘Brug-pa foi um dos grandes mestres dzogchen do início do século. Ele foi discípulo do primeiro mKhyen-brtse Rinpoche, ‘Jamdbyangs mKhyen-brtse dBang-po (1829-1892), e de dPal-sprul Rinpoche4. esse dois ilustres mestres dirigiam o movimento ris-med, ou “não–sectário”, no Tibet oriental do séc XIX. Trinta e sete vezes, A‘dzom ‘Brug-pa recebeu transmissões de seu mestre principal, ‘Jam-dbyangs mKhyen-brtse; e de dPal-sprul Rinpoche ele recebeu a transmissão completa do kLong-chen snying-thig e dos preceitos do rtsa-rlung. A‘dzom ‘Brug-pa se tornou por sua vez um gter-ston, um descobridor de tesouros ocultos, com a idade de trinta anos, após certas visões diretas do incomparável ‘Jigs-med gLin-pa (1730-17980. Como ele ensinava a A‘dzom-sgar, no leste do Tibet, durante os retiros de verão e de inverno5, A‘dzom ‘Brug-pa tornou-se o mestre de um grande numero de docentes do rdzogs-chen da época. Um deles foi o tio paterno de Norbu Rinpoche, rTogs-ldan O-rgyan bsTan-‘dzin6, que foi seu primeiro mestre de rdzogs-chen.
Com a idade de oito anos, Norbu Rinpoche foi reconhecido pelo sexto Karmapa7 e dPal-spung Si-tu Rinpoche8, de Lho-‘brug Zhabs-drung Rinpoche10. Este último, reencarnação do ilustre mestre ‘brug-pa bka’-brgyud Padma dKarpo (1527-1592), é o verdadeiro fundador histórico do Estado do Butão. Até o início do século XX, os Zhabs-drung Rinpoches eram os dharmarajas, os chefes temporais e espirituais do Butão.
Norbu Rinpoche era ainda criança quando rDzogs-chen mKhan Rinpoche12 e seu tio paterno rTogs-ldan O-rgyan bsTan-‘dzin lhe transmitiram as instruções do rDzogs-chen gsang-ba snying-thig e do sNying-thig ya-bzhi. Nesse entretempo, gNas-rgyab mChog-sprul Rinpoche13 lhe transmitiu os rNying-ma bka’-ma, o kLong-gsal rdo-rje snying-po e o gNams-chos de Mi-‘gyur rDorje, mKhan Rinpoche dPal-ldan Tshul-khrims (nascido em 1906) lhe transmitiu o rGyud-sde kun-btus, a celebre coleção de práticas tantricas sa-skya-pa. E por acréscimo, ele recebeu muitas iniciações e explicações orais14 diretas de ilustres mestres ris-med, ou não sectárias, do Tibet oriental.
Entre oito e doze anos, ele freqüentou o colégio de sDe-dge dbon-stod slob-grwa do monastério de sDedge dgon-chen, e aí, com mKhan Rinpoche mKhyen-rab Chos-kyl ‘Od-zer (nascido em 1901), ele estudou os treze textos básicos15 em vigor nos cursos acadêmicos estabelecido por mKhan-po gZhan-dga’16. foi então que Norbu Rinpoche se tornou um especialista do Abhisamayalankara. Com o mesmo mestre, ele estudou o grande comentário do tantra do Kalachakra, o tantra do Guhyagarbha, o Zab-mo nang-don do Karmapa Rang-byung rDo-rje, os tantras da medicina18, as astrologias chinesa e indiana19; e, dele ainda, recebeu as iniciações e as transmissões do Saskya’i sgrub-thabs kun-btus.
De oito a quatorze anos, ele cursou o colégio de sDedge Ku-se gSer-ljongs bshad-grwa, e mKhan Rinpoche Ku-se gSer-ljongs bshad-grwa, e mKhan Rinpoche Brag-gyab bLogors (nascido em 1913) o instruiu nos sutras do Prajnaparamita, o Abhisamayalankara e três textos tantricos: o rDor-rje Gur, o tantra de Hevajra e o tantra de Samputa20. Seu preceptor mChog-sprul Rinpoche21 lhe ensinou as ciências profanas22.
Foi ainda entre os oito e quatorze anos que, no monastério de rDsong—gsar, ao sul de Dergue, ele recebeu os ensinamentos do ilustre rDzong-gsar mKhyen-brtse Rinpoche23 sobre o Sasskya’i zachos lam-‘bras, a doutrina quintessencial da escola sa-skya-pa, e sobre o rGyud-kyi spyi-don tnam-bzhag, o lJon-shing chen-mo e o tantra de Hevajra24. Depois no colégio de Khams-bre bshad-grwa, com mKhan Rinpoche Mi-nyag Dam-chos (nascido em 1920), ele estudou um texto fundamental de lógica, o Tshad-ma rig-gter de Sa-skya Pandita.
Em seguida, ele se retirou para uma gruta de meditação, em Seng-chen gNam-brag, para fazer com seu tio r’Togs-ldan O-rgyan bsTan-‘dzin um retiro dedicado as práticas de Vajrapani, Sinhamukha e Tara Branca.

NOTAS:

1. Kun-bzang ‘gro-‘dul ‘od-gsal klong-yangs rdor-rje, nascido em (1898 -)
2. sNang-mdzod grub-pa’i rdo-rje, nascido em (1900 – )
3. ‘Gvo-‘dul dpa’-bo rdo-rje, (1842-1924)
4. rDza dPal-sprul Rin-po-che, O-rgyan’jigs-med chos kyi dbang-po, (1808-1887)
5. Durante os retiros de verão, ele ensinava os rdzogs-chen, e durante os retiros de inverno, o rtsa-rlung, o yoga dos canais e das energias.
6. rTogs-idan designa “aquele ou aquela que compreendeu”, a palavra é mais ou menos sinônimo de rnal-‘byor-pa, “yogui”.
7. rGyal-ba Karmapa, Rang-‘byung rig-pa’i rdo-rje (1924-1981)
8. Padma dbang-mchog rgyal-po (1886-1952)
9. Thugs-kyi sprul-sku
10. Ngag-dbang rnam-rgyal, (1594-1651)
11. Kun-dga’ dpal-idan, (1878-1950)
12. ‘Jam-dbyangs chos kyi dbang-phyng, (1910-1973)
13. ‘Jam-dbyangs blo-gros rgya-mtsho, (1902-1952)
14. dBang dang khrid
15. gZhung-chen bcu-gsum. A saber:
O Pratimokshasûtra, O Vinayasûtra de Gunaprabha,
O Abhidharmasamuccaya de Asanga, O Abhidharmakosha de Vasubandhu,
O Madhyamakavatara de Chandrakirti, Os Mulamadhyamakakarika de Nagarjuna,
Os Catuhshataka de Aryadeva, O Bodhiçaryavatara de Shantideva.
E os cinco tratados maiores de Maitreya-Asanga:
O Abhisamayalankara,
O Mahayanasutralankara,
O Madhyantavibhanga,
O Dharmadharmatavibhanga,
O Uttaratantra
16. gZhan-phan chos-kyi snang-ba
17. Dus-‘Khor ‘grel-chen
18. rGyud-bzhi
19. rTsis dkar-nag
20. Gur-brtag sam-gsum
21. Yongs-‘dzim mchog-sprul kun-dga’ grags-pa, 1922 –
22. Rig-gnas-kyi skor.
23. rDzong-gsar mkhyen-brtse rin-po-che, ‘Jam-mgon mkhyen-sprul Choskyi blos-gros, 1896-1959.
24. sPyi-ljon brtag-gsum. O Tantra de Hevajra leva também do nome de brtag gnyis, ou “em duas partes”.
25. Mun-mtshams.
26. dGongs-gter.
27. Gangs-dkar rin-po-che Karma dshad-sprul shos-kyi seng-ge, (1903- 1956).
28. Nã-ro chos-drug.
29. rTca-ba’i bla-ma, (mestre principal).
30. Shar-rdza bKa-shis rgyal-mtshan, (1859-1935).
31. ‘Ja’-lus-pa.
32. rDzogs-chen ‘dus-sde.