A auto-ilusão é um problema constante à medida que avançamos por um caminho espiritual. O ego está sempre tentando alcançar a espiritualidade. É como se quiséssemos assistir ao nosso próprio enterro. No começo, por exemplo, podemos nos aproximar de nosso amigo espiritual com a esperança de conseguir dele alguma coisa maravilhosa. A esta aproximação dá-se o nome de “caça ao guru”, tradicionalmente comparada à caça do veado almiscareiro. O caçador persegue o veado, mata-o e dele retira o almíscar. Poderíamos adotar essa atitude para com o guru e a espiritualidade, mas isso não passaria de auto-ilusão. Nada teria a ver com uma abertura ou entrega verdadeira.
Podemos também supor erroneamente que a iniciação significa transplante, a transplantação do poder espiritual dos ensinamentos, do coração do guru para o nosso. Essa mentalidade encara os ensinamentos como algo estranho a nós; é semelhante à idéia de transplantar um coração de verdade ou mesmo uma cabeça. Implantar em nós um elemento estranho, proveniente de fora do nosso corpo. Podemos ficar inclinados a avaliar esse possível transplante. Talvez nossa velha cabeça não sirva mais; talvez deva ser jogada no lixo. Merecemos uma cabeça melhor, nova, urna cabeça mais inteligente e cheia de massa cinzenta.
Estamos tão preocupados com o que vamos conseguir com a possível operação que nos esquecemos do médico que vai realizá-la. Será que paramos para estabelecer uma relação com o nosso médico? Ele é competente? A cabeça que escolhemos é mesmo adequada? Não teria o médico alguma coisa a dizer a respeito da cabeça que escolhemos? Talvez o nosso corpo vá rejeitar essa cabeça. Estamos tão envolvidos com aquilo que pensamos conseguir que ignoramos o que está de fato acontecendo, nossa relação com o médico, nossa doença, o que esta nova cabeça é na realidade.
Essa atitude para com o processo de iniciação é muito sonhadora e não tem nada de válido. Por isto necessitamos de alguém que esteja pessoalmente interessado em nós como realmente somos, necessitamos de uma pessoa que represente o papel de espelho. Toda vez que estivermos envolvidos com algum tipo de auto-ilusão, é preciso que o processo todo seja revelado, aberto. Qualquer atitude de apego deve ser exposta.
A verdadeira iniciação dá-se pelo “encontro das duas mentes”. É uma questão de sermos o que efetivamente somos e de nos relacionarmos com o amigo ou amiga espiritual tal como ele ou ela é. Esta é a verdadeira situação em que a iniciação pode ocorrer, porque a idéia de nos submetermos a urna operação e de nos modificarmos de maneira fundamental é completamente irreal. Ninguém pode, na verdade, modificar, de maneira absoluta, nossa personalidade. Ninguém pode virar-nos completamente de ponta-cabeça ou pelo avesso. Temos que usar o material existente, o que já está aí. Precisamos aceitar-nos como somos e não como gostaríamos de ser, o que significa renunciar à auto-ilusão, e ao faz-de-conta.
Toda a nossa constituição, as características de nossa personalidade precisam ser reconhecidas, aceitas; depois talvez possamos encontrar alguma inspiração.
Nesse momento, se manifestamos disposição para trabalhar com nosso médico, internando-nos num hospital, o médico, de sua parte, colocará à nossa disposição um quarto e tudo o mais que se fizer necessário. Assim, ambos os lados estarão criando uma situação de comunicação aberta, que é o significado fundamental do “encontro das duas mentes”. Este é o verdadeiro modo de unir a bênção ou adhishthana, a essência espiritual do guru, à nossa própria essência espiritual. O mestre exterior, o guru, abre-se, e, porque o discípulo também está aberto, porque está “desperto”, verifica-se o encontro dos dois elementos, que são idênticos. Este é o verdadeiro significado de abhisheka, da iniciação. Não se trata de entrarmos para um clube ou fazermos parte de um rebanho: sermos uma ovelha com as iniciais do dono marcadas no traseiro.
Podemos, agora, examinar o que vem depois do abhisheka. Com a experiência do encontro das duas mentes, estabelecemos uma comunicação verdadeira com nosso amigo espiritual. Nós não só nos abrimos como também vivenciamos – como um clarão – uma súbita intuição, um entendimento instantâneo de parte dos ensinamentos. O mestre criou a situação, nós experimentamos o clarão, e tudo parece muito bem.
A princípio ficamos muito entusiasmados; tudo é belo. Podemos verificar que, por vários dias, nos sentimos eufóricos e animados. Até parece que já atingimos o nível do estado búdico. Nenhuma preocupação mundana nos incomoda em absoluto; tudo transcorre sem nenhum empecilho; meditação instantânea ocorre o tempo todo. É uma experiência contínua do nosso momento de abertura com o guru. Isto é muito comum. A essa altura, muitas pessoas talvez achem que já não precisam trabalhar com o amigo espiritual, que até podem deixá-lo, podem ir embora. Ouvi inúmeras histórias de casos assim, acontecidos no Oriente: estudantes que encontraram um mestre, receberam uma experiência instantânea de iluminação e depois se foram. Eles tentavam preservar a experiência, mas, à medida que o tempo passava, ela se tornava uma simples lembrança, palavras e idéias que eles repetiam a si mesmos.
É bem possível que sua primeira reação depois de uma experiência dessa natureza seja a de escrevê-la num diário, explicando em palavras tudo o que aconteceu. Você tenta fixar-se firmemente na sua experiência por meio de escritos e memórias, comentários com os outros, ou conversas com as pessoas que o viram passar pela experiência. Ou pode ser que uma pessoa vá ao Oriente, tenha este tipo de experiência e, em seguida, volte para o Ocidente. Os amigos talvez a achem tremendamente mudada. Ela pode parecer mais calma, tranqüila, sábia. Muita gente talvez peça, a esta pessoa, ajuda e conselhos para seus problemas pessoais, peça uma opinião sobre sua experiência com a espiritualidade. No princípio, o modo como a pessoa ajuda os outros é autêntico, relacionando os problemas deles com a sua própria experiência no Oriente, contando-lhes histórias belas e genuínas do que lhe aconteceu. Isto lhe serviria como uma grande inspiração.
Mas, num dado momento, nesse tipo de situação, alguma coisa tende a se desencaminhar. A lembrança daquele súbito clarão, da visão penetrante que a pessoa experimentou, perde intensidade; não dura porque a pessoa a considera externa a si mesma. Sente que teve uma súbita experiência do estado desperto da mente e que ela pertence à categoria das coisas sagradas, da experiência espiritual. A pessoa atribui grande valor à experiência e depois a relata ao mundo corriqueiro e familiar de sua terra natal, a seus inimigos e amigos, pais e parentes, e a todos de suas relações que agora pensa ter transcendido e superado. Acontece, porém, que agora a experiência já não está mais com quem a viveu. Só resta uma lembrança. E, no entanto, tendo proclamado sua experiência e conhecimento aos outros, a pessoa evidentemente não pode voltar atrás e afirmar que o que disse anteriormente era falso. Não pode fazer isto de maneira alguma; seria humilhante demais. Além do que, ainda tem fé na experiência, acredita que algo profundo de fato aconteceu. Infelizmente, porém, a experiência já não se acha presente no momento atual, porque foi usada e avaliada.
Falando de um modo geral, o que sucede é que, depois que nos abrimos, que temos o “clarão”, num segundo momento, percebemos que estamos abertos e a idéia de avaliação aparece subitamente. “Oba! Fantástico! Tenho que pegar uma coisa destas, tenho que capturá-la e conservá-la, porque é uma experiência muito rara e valiosa”. Assim, procuramos agarrar-nos à experiência e aí começam os problemas – com a consideração de que a experiência verdadeira da abertura é algo valioso. Tão logo tentamos capturar a experiência, toda uma série de reações em cadeia se inicia.
Se considerarmos alguma coisa valiosa e extraordinária, ela então se tomará bem distinta de nós. Não consideramos valiosos, por exemplo, nossos olhos, nosso corpo, nossas mãos ou nossa cabeça, porque sabemos que fazem parte de nós. Está claro que, se perdêssemos qualquer um deles, nossa reação automática seria a de que perdemos uma coisa valiosíssima: “Perdi minha cabeça, perdi meu braço, é impossível substituí-los!” Compreendemos, então, que são coisas valiosas. Quando alguma coisa nos é tirada, temos a oportunidade de compreender que ela é valiosa. Mas quando a temos conosco o tempo todo, quando faz parte da nossa constituição, não podemos valorizá-la particularmente; ela apenas está aí. A avaliação decorre do medo de ficarmos separados, o que é precisamente aquilo que nos mantém separados. Consideramos extraordinariamente importante qualquer inspiração repentina, porque receamos perdê-la. É nesse ponto exato, nesse exato momento, que a auto-ilusão entra em cena. Em outras palavras, perdemos a fé na experiência da abertura e na sua relação conosco.
De alguma forma, perdemos a unidade da abertura e daquilo que somos. A abertura passou a ser uma coisa separada e, então, começamos a dissimular. É evidente que não podemos dizer que perdemos a abertura. “Eu costumava tê-la, mas a perdi”. Não podemos dizer isto, porque iria destruir o nosso status de pessoa realizada. Portanto, o papel da auto-ilusão consiste em recontar histórias. Preferimos contar histórias a experimentar realmente a abertura, porque as histórias são muito vívidas e nos entretêm. “Quando eu estava com meu guru, aconteceu isso e aquilo; ele me disse tal e tal coisa, e abriu-me desta e daquela maneira, etc., etc.”. Neste caso, auto-ilusão significa tentar recriar reiteradamente uma experiência passada, em vez de vivenciar de fato a experiência no momento presente. Para viver a experiência agora, teríamos de desistir da avaliação, da maravilha que foi o clarão, pois é esta lembrança que a mantém à distância. Se tivéssemos a experiência continuamente, ela pareceria bastante corriqueira, e é este fato que não podemos aceitar. “Se ao menos eu pudesse ter outra vez aquela experiência da abertura!” É assim que nos conservamos ocupados em não ter a experiência: recordando-a. Este é o jogo da auto-ilusão.
A auto-ilusão necessita da idéia da avaliação bem como de uma memória de longo alcance. Pensando no que passou, sentimo-nos nostálgicos e comprazemo-nos com nossas recordações, embora não saibamos onde estamos neste exato momento.
Lembramos os “bons tempos”, “aqueles dias bons do passado”. Não permitimos em absoluto que a depressão venha à tona; não queremos aceitar a suspeita de que perdemos contato com alguma coisa. Toda vez que surge a possibilidade de uma depressão e um sentimento de perda ameaça aparecer, a natureza defensiva do ego imediatamente traz à mente lembranças e palavras que ouvimos no passado, a fim de nos confortar. Assim, o ego está continuamente à procura de inspiração sem raízes no presente; é um contínuo voltar para trás. Esta é a ação mais complicada da auto-ilusão: não deixamos, de maneira nenhuma, que a depressão chegue a existir. “Visto que recebi bênçãos tão grandes e tive a sorte de passar por essas maravilhosas experiências espirituais, como é possível dizer que estou deprimido? Impossível, não há lugar para a depressão”.
Conta-se uma história a respeito do grande mestre tibetano, Marpa. Quando Marpa se encontrou pela primeira vez com seu próprio mestre, Naropa, criou um altar que, segundo ele, era a incorporação da sabedoria de um determinado heruka. Como tanto o santuário quanto Naropa dispunham de energia espiritual e poderes enormes, Naropa perguntou a Marpa diante de qual dos dois iria prostrar-se a fim de experimentar a súbita compreensão da iluminação. Sendo Marpa um estudioso, refletiu que o guru vivia na carne, num corpo humano comum, ao passo que a sua criação, o altar, era um corpo puro de sabedoria, nada tendo a ver com a imperfeição humana. Assim, Marpa se prostrou diante do santuário. Naropa, então, lhe disse: “Receio que a sua inspiração vá diluir-se. Você fez a escolha errada. Este santuário é minha criação e, sem mim, nem estaria aqui. A questão do corpo humano versus o corpo de sabedoria é irrelevante. A grande exibição do mandala foi tão-somente uma criação minha”.
Essa história ilustra o princípio do sonho, da esperança, do desejo, como auto-ilusão. Enquanto você olhar para si mesmo ou para qualquer parte de sua experiência como “o sonho que virou realidade”, estará envolvido com auto-ilusão. A auto-ilusão parece depender sempre do mundo dos sonhos, porque você preferiria ver o que ainda não viu a ver o que está vendo agora. Não aceita que o que está aqui agora seja o que é, nem está disposto a continuar com a situação tal qual ela é. Assim, a auto-ilusão sempre se manifesta sob a forma de tentativas de criar ou recriar um mundo sonhado, a nostalgia da experiência de sonhar. E o oposto da auto-ilusão é simplesmente trabalhar com os fatos da vida.
Se procurarmos qualquer tipo de alegria ou felicidade plena, na realização de nossa imaginação e de nossos sonhos, então ficaremos, igualmente, sujeitos ao insucesso e depressão. Tudo se resume nisto: o medo da separação, a esperança de alcançar a união, não são simplesmente manifestações ou ações do ego ou da auto-ilusão, como se o ego fosse, de algum modo, uma coisa real que praticasse determinadas ações. O ego é as ações, os eventos mentais. O ego é o medo de perder a abertura, o medo de perder o estado não-egóico. Este é o significado da auto-ilusão neste caso: o ego que chora a perda do estado não-egóíco, de seu sonho de realização. Medo, esperança, perda, ganho – estes formam o constante desenrolar do sonho do ego, a estrutura que se auto-perpetua, que se auto-mantém e que é a auto-ilusão.
Portanto, a verdadeira experiência, que está além do mundo dos sonhos, é a beleza, as cores e o entusiasmo da experiência real do agora na vida cotidiana. Quando enfrentamos as coisas tais como são, abandonamos a esperança de algo melhor. Não há mágica alguma, porque não podemos mandar que saiamos da nossa depressão. Depressão e ignorância, seja qual for a emoção que experimentamos, todas são reais e contém verdades extraordinárias. Se quisermos, de fato, aprender a ver a experiência da verdade, teremos de estar onde estamos. Tudo é apenas uma questão de ser um grão de areia.
P: O Sr. poderia falar um pouco mais sobre a mecânica dessa força do desespero? Consigo compreender como o desespero pode ocorrer, mas por que ocorre a felicidade, o estado de graça?
R: É possível, no princípio, nos forçarmos a ter a experiência dessa felicidade. É uma espécie de auto-hipnose, no sentido de que nos recusamos a ver o quadro geral que forma nosso pano de fundo. Focalizamos somente a experiência imediata da felicidade. Ignoramos todo o terreno básico em que realmente nos encontramos, por assim dizer, e nos conduzimos para produzir uma experiência de enorme alegria. O problema é que este tipo de experiência se baseia unicamente na observação que fazemos de nós mesmos. Trata-se de uma atitude totalmente dualista. Nós gostaríamos de experimentar alguma coisa e, trabalhando muito, vamos de fato consegui-lo. Todavia, depois que descemos das alturas, depois que percebemos que ainda estamos aqui, como uma rocha escura erguida entre as ondas do mar, instala-se a depressão. Gostaríamos de nos embebedar, de nos embriagar, de nos fundir com o universo inteiro, mas por alguma razão isto não acontece. Continuamos aqui, o que é sempre a primeira coisa que nos faz descer. Mais tarde começam todos os outros jogos da auto-ilusão, as tentativas de nos dar corda ainda mais, porque estamos tentando nos proteger por inteiro. É o princípio do “observador”.
P: O sr. fala de pessoas que vivem alguma experiência e, em seguida, vão agarrá-la intelectualmente, rotulando-a dizendo: “isto é fantástico”. Isto parece ser quase que uma reação automática. O Sr. poderia descrever como as pessoas começam a afastar-se deste comportamento? Tenho a impressão de que, quando mais tentamos não avaliar, mais avaliamos.
R: Bem, quando você compreende que está realmente fazendo isso e não está conseguindo nada, acho então que começa a encontrar a saída. Começamos a ver que o processo todo faz parte de um jogo imenso que, na verdade, não traz nenhum proveito, pois estamos continuamente construindo, em vez de chegar à compreensão de alguma coisa. Não há magia nem truque nenhum presente. A única coisa a fazer é tirar a máscara, o que é bastante doloroso.
Talvez você tenha que construir e construir, até entender a futilidade das tentativas de alcançar a espiritualidade. Toda a sua mente pode ficar completamente congestionada com sua luta. Na realidade, você pode até ficar sem saber se está indo ou vindo, a ponto de se sentir completamente exausto. Aí pode ser que você aprenda uma lição muito útil: desistir de toda a situação, não ser nada. Talvez você até sinta um anseio de não ser nada. Parece haver duas soluções: ou simplesmente tirar a máscara, ou construir e construir, lutar e lutar, até atingir um crescendo, e depois largar tudo.
P: O que acontece quando dizemos: “Oba, consegui!” Isto não acaba com tudo, acaba?
R: Não necessariamente. Mas o que acontece depois? Você prefere ficar repetindo sua experiência a trabalhar com a situação presente daquilo que é? Podemos experimentar uma alegria imensa no primeiro clarão de abertura, que é muito bonito. Porém, o que vem depois é importante: se você vai esforçar-se para agarrar e recriar a experiência, ou se vai deixar as coisas serem como são, permitindo que a experiência seja apenas uma experiência, sem tentar recriar o primeiro clarão.
P: Somos ambiciosos, estamos sempre construindo e, quanto mais pensamos no caso, pior fica. Daí tentamos simplesmente fugir de tudo, tentamos não pensar na situação, tentamos enveredar por todos os tipos de fuga. O que significa isso e como podemos superar o fato de que, quanto mais pensamos na iluminação e tentamos investigá-la, piores ficam as coisas e mais se acumulam conceituações? O que podemos fazer?
R: É muito óbvio. Deixamos por completo de procurar o que quer que seja, deixamos de lado a tentativa de descobrir alguma coisa, de nos provar a nós mesmos.
P: Mas, às vezes, podemos ter um sentimento ativo de estar fugindo, e isto não é o mesmo que não fazer nada.
R: Quando nos pomos a fugir, descobrimos que não somente estamos sendo perseguidos por trás, como também que há pessoas vindo ao nosso encontro pela frente. No final, não há lugar para escapar. Ficamos completamente acuados. A esta altura, a única coisa que podemos mesmo fazer é nos render, pura e simplesmente.
P: O que significa isto?
R: Bem, temos que passar pela experiência. Significa abandonar as tentativas de ir para algum lugar, tanto em termos de fugir de algo, como de correr para algo, pois ambos são a mesma coisa.
P: A lembrança de si ou a auto-observação são incompatíveis com o desistir e o estar aqui?
R: A lembrança de si é, na verdade, uma técnica muito perigosa. Pode tanto consistir na observação de nós mesmos e de nossos atos, como um gato faminto observa um rato, quanto pode ser um gesto inteligente de estarmos onde estamos. Toda a questão se resume em que, se tivermos alguma idéia de relação – estou vivendo esta experiência, estou fazendo isto – o “eu” e o “isto” são, igualmente, muito fortes. De uma forma ou de outra, haverá conflito entre “eu” e “isto”. É mais ou menos como dizer que “isto” é a mãe, e “eu”, o pai. Com a presença destes dois extremos tão polarizados, estamos fadados a dar origem a alguma coisa. Daí que a idéia toda consiste em fazer com que “isto” não esteja presente, pois neste caso o “eu” tampouco estará. Ou, então, que o “eu” não esteja presente e, portanto, “isto” também não. Não se trata de nos dizermos isto, mas sim de senti-lo, uma experiência efetiva. Precisamos afastar o observador que vigia os dois extremos. Afastado o observador, a estrutura toda cai por terra. A dicotomia só subsiste enquanto houver um observador que mantenha o quadro todo em pé. Precisamos remover o observador e a complicadíssima burocracia que ele cria para se certificar de que nada vai escapar ao quartel-general. Afastado o observador, abre-se um espaço enorme, pois ele e a sua burocracia ocupam demasiado lugar. Se eliminarmos o filtro do “eu” e “outro”, o espaço torna-se vivo, preciso e inteligente. O espaço contém a precisão incrível de poder trabalhar com as situações nele existentes. Na realidade, não precisamos do “vigia” ou do “observador” para nada.
P. Será que o observador existe porque desejamos viver no que parece ser um nível mais alto, ao passo que, se deixarmos as coisas como estão, talvez vamos nos encontrar aqui?
R: É verdade. Quando o observador desaparece, não se aplicam noções de níveis mais altos e mais baixos, de modo que não há mais tendência alguma para lutar, nenhuma tentativa para ficar no alto. Então, limitamo-nos a estar onde estamos.
P: Podemos remover o observador à força? Não seria novamente um jogo da avaliação?
R: Não precisamos encarar o observador como um vilão. Assim que começamos a compreender que o propósito da meditação não é passar para uma posição mais elevada, mas sim estar presente, aqui, o observador deixa de ter eficiência bastante para cumprir sua função, e desaparece automaticamente. A qualidade fundamental do observador é tentar ser extremamente eficiente e ativo. Mas a atenção plena é algo que já temos, de modo que tentativas ambiciosas ou “eficientes” de sermos atentos já nascem mortas. À medida que começa a perceber que é irrelevante, o observador se vai.
P: Pode haver consciência sem o observador?
R: Sim, porque o observador é apenas paranóia. Podemos ter abertura completa, uma situação panorâmica, sem precisar discriminar entre dois lados, “eu” e “outro”.
P: Esta consciência implicaria um sentimento de felicidade completa?
R: Creio que não, porque essa felicidade é uma experiência muito individual. Você é independente e vive a sua felicidade. Quando o observador se vai, não há avaliação da experiência em termos de prazer ou dor. Quando você tem consciência panorâmica sem a avaliação do observador, a bem-aventurança se toma irrelevante pelo simples fato de não haver ninguém que a esteja experimentando.
Do livro: “ALÉM DO MATERIALISMO ESPIRITUAL”
Chögyam Trungpa Rinpoche – Ed. Cultrix