SERMÃO DO DESPERTAR
A essência do Caminho é desapego. E o objetivo daqueles que praticam é liberar-se das aparências. Dizem os sutras: “O desapego é iluminação porque não se prende as aparências”. A buditude significa consciência. Os mortais cujas mentes são conscientes alcançam o Caminho da Iluminação e são, portanto chamados budas. Dizem os sutras: “Aqueles que se libertam de todas as aparências são chamados de budas”. O aspecto da aparência como não-aparência não pode ser percebida visualmente, mas pode somente ser conhecida através da sabedoria. Quem quer que escute e acredite neste ensinamento embarcará no grande veículo(53) e abandonará os três reinos.
Os três venenos são o desejo, o ódio e a ignorância. Deixar os três venenos significa ir do desejo, raiva e ignorância de volta à moralidade, meditação e sabedoria. O desejo, a raiva e a ignorância não têm natureza própria. Dependem dos mortais, e qualquer um capaz de refletir verá que a natureza do desejo, do ódio e da ignorância é a natureza búdica. Além do desejo, ódio e ignorância não há senão a natureza de búdica. Dizem os sutras: “Os budas só se converteram em budas enquanto viviam com os três venenos alimentando-se do puro Dharma”. Os três venenos são o desejo, o ódio e a ignorância.
O grande veículo é o maior dos veículos. É o meio de transporte dos bodhisattvas que usam tudo sem usar nada e que viajam todo dia sem viajar. Tal é o veículo dos bodhisattvas. Dizem os sutras: “Nenhum veículo é o veículo dos budas”.
Quem compreender que os seis sentidos(54) não são reais, que os cinco agregados(55) são ficção, e que nenhum deles pode ser localizado em alguma parte do corpo, compreende a linguagem dos budas. Dizem os sutras: “A caverna dos cinco agregados é o vestíbulo do zen. A abertura do olho da mente é a porta do Grande Veículo”. Não pode ser mais claro.
Não pensar em coisa alguma é zen. Sabendo disso, caminhar, estar em pé, sentar-se ou deitar-se, tudo o que fizer é zen. Saber que a mente é vazia é ver o Buda. Os budas das dez direções(56) não têm mente. Ver a não-mente é ver o Buda.
Desistir de si mesmo sem pesar é a maior compaixão. Transcender movimento e imobilidade é a maior meditação. Os mortais permanecem em movimento, e os arhats (57) permanecem imóveis. Porém a mais elevada das meditações transcende tanto a dos mortais como a dos arhats. Aqueles que alcançaram tal compreensão liberam-se de todas as aparências sem esforço e curam qualquer enfermidade sem tratamento. Tal é o poder do grande zen.
Usar a mente para procurar a realidade é ignorância. Não usar a mente para buscar a realidade é conhecimento. Libertar-se das palavras é liberação. Permanecer sem máculas do pó da sensação é permanecer no Dharma. Transcender vida e morte é abandonar o lar (58). Não sofrer outra existência é alcançar o Caminho. Não criar ignorância é iluminação. Não agarra-se à ignorância é sabedoria. Nenhuma aflição é nirvana. E o não surgimento da mente (conceitual) é a outra margem.
Quando você é ignorante, esta margem existe. Quando você desperta, ela deixa de existir. Os mortais permanecem nesta margem, mas aqueles que descobrem o maior de todos os veículos não ficam nem nesta margem nem na outra margem. São capazes de viver em ambas as margens. Aqueles que vêem a outra margem como diferente desta não compreendem o zen.
A ignorância significa mortalidade. E o conhecimento significa buditude. Não são iguais e tampouco são diferentes. Porém as pessoas distinguem a ignorância do conhecimento. Quando somos ignorantes há um mundo do qual escapar. Quando somos conscientes, não há nada do que escapar.
À luz do Dharma imparcial, os mortais não são diferentes dos sábios. Os sutras dizem que o Dharma imparcial é algo que os mortais não podem penetrar nem os sábios praticar. O Dharma imparcial somente é praticado por grandes budas e bodhisattvas. Ver a morte como diferente da vida ou o movimento como diferente da imobilidade é ser parcial. Ser imparcial significa ver o sofrimento como não diferente do nirvana, pois a natureza de ambos é o vazio. Imaginando que acabarão com o sofrimento e entrarão no nirvana, os arhats acabam presos na armadilha do nirvana. Porém os bodhisattvas sabem que o sofrimento é essencialmente vazio e permanecendo no vazio eles permanecem no nirvana. O nirvana significa, nem nascimento e nem morte. Está além de nascimento e morte e além do nirvana. Quando a mente pára de mover-se ela entra no nirvana. Nirvana é uma mente vazia. Quando não existe a ignorância, os budas alcançam o nirvana. Quando não existem aflições, os bodhisattvas entram no lugar da iluminação(59).
Um lugar desabitado(60) é aquele sem desejo, ódio ou ignorância. A avidez é o reino do desejo, o ódio é o reino da forma e a ignorância o reino sem forma. Quando um pensamento começa, você entra nos três reinos. Quando um pensamento termina, você deixa os três reinos. O princípio ou fim dos três reinos, a existência ou não existência de tudo, depende da mente. Isto se aplica a tudo, mesmo aos objetos inanimados como pau e pedra.
Quem souber que a mente é uma ficção e está vazia de algo real, sabe que sua própria mente nem existe nem não existe. Os mortais seguem criando a mente, proclamando que existe. Os arhats seguem negando a mente, proclamando que não existe. Mas os bodhisattvas e budas nem criam nem negam a mente. Isso significa que a mente nem existe nem não existe. A mente que nem existe nem não existe é chamada Caminho do Meio(61).
Se você usa sua mente para estudar a realidade, você não vai entender nem sua mente nem a realidade. Se estudar a realidade sem usar sua mente, você entenderá ambas. Aqueles que não compreendem, não entendem o entendimento. Aqueles que compreendem, entendem o entendimento. As pessoas capazes de verdadeira visão(62) sabem que a mente é vazia, transcendem tanto compreensão como não compreensão. A ausência de compreensão e não compreensão é a verdadeira compreensão.
Vista com a verdadeira visão, a forma não é simplesmente forma, pois a forma depende da mente. E a mente não é simplesmente mente, pois a mente depende da forma. Mente e forma criam e negam uma à outra. O que existe o faz em relação ao que não existe. E o que não existe, não existe em relação ao que existe. Esta é a verdadeira visão. Por meio de tal visão nada é visto e nada é não visto. Tal visão penetra as dez direções sem ver: porque nada é visto; porque não ver é ver; porque ver é não ver. O que os mortais vêm são ilusões. A verdadeira visão está além de ver.
A mente e o mundo são opostos, e a visão nasce onde eles se encontram. Quando a mente não se agita interiormente, o mundo não aparece exteriormente. A verdadeira visão é quando tanto o mundo como a mente são ambos transparentes. E essa visão é a verdadeira visão. E tal compreensão é a verdadeira compreensão.
Nada ver é perceber o Caminho, e nada compreender é compreender o Dharma, pois ver não é ver nem não ver e porque compreender não é compreender nem não compreender. Ver sem ver é verdadeira visão. Compreender sem compreender é verdadeira compreensão.
A verdadeira visão não é somente ver vendo, é também ver não vendo. E a verdadeira compreensão não é somente compreender compreendendo, também é compreender não compreendendo. Se compreenderes tudo, então é porque você não compreende. Somente quando você nada compreende é a verdadeira compreensão. Compreender é nem compreender nem não compreender.
Dizem os sutras: “Não abandonar a sabedoria é estupidez”. Quando a mente não existe, tanto compreender como não compreender são verdadeiros. Quando a mente existe, compreender e não compreender são falsos.
Quando você compreende, a realidade depende de você. Quando você não compreende, você depende da realidade. Quando a realidade depende de você, o que não é real torna-se real. Quando é você que depende da realidade, o que é real torna-se falso. Quando é você que depende da realidade, o que é real torna-se falso. Quando você depende da realidade, tudo é falso. Quando a realidade depende de você, tudo é verdade. Assim, pois o sábio não usa sua mente para buscar a realidade, ou a realidade para buscar sua mente, ou sua mente para buscar a mente, ou a realidade para buscar a realidade. Sua mente não faz aparecer a realidade. E a realidade não faz aparecer a sua mente. E porque ambas, sua mente e a realidade são imóveis, ele está sempre em samadi (63).
Quando aparece a mente mortal, a buditude desaparece. Quando desaparece a mente mortal, a buditude aparece. Quando a mente aparece, a realidade desaparece. Quando a mente desaparece, a realidade aparece. Quem souber que o vazio não depende de nada encontrou o Caminho. Quem souber que a mente de nada depende está sempre no local da iluminação.
Quando você não compreende, está errado. Quando compreende, você não está errado. É assim porque a natureza do erro é o vazio. Quando você não compreende, o certo parece errado. Quando você compreende, o errado não é errado, pois o errado não existe. Dizem os sutras: “Nada tem uma natureza própria”. Aja. Não faça perguntas. Quando você faz perguntas, você está errado. O erro é resultado do questionar. Quando você alcança tal entendimento, as ações equivocadas de suas vidas passadas são varridas. Quando você vive na ignorância, os seis sentidos e as cinco trevas(64) são causadoras do sofrimento e da mortalidade. Quando você desperta, os seis sentidos e as cinco trevas são os causadores do nirvana e da imortalidade.
Alguém que busca o caminho não busca além de si-mesmo, pois sabe que a mente é o Caminho. Mas quando busca a mente, não encontra nada. E quando encontra o Caminho, não encontra nada. Se você pensa que pode usar a mente para achar o Caminho, você está na ignorância. Quando se vive na ignorância, existe a buditude. Quando você está consciente, não existe tal coisa. É assim porque a consciência é buditude.
Se você buscar o caminho, o caminho não aparecerá até que seu corpo desapareça. É como descascar uma árvore. Esse corpo cármico sofre mudanças constantes. Não há realidade fixa. Pratique de acordo com seus pensamentos. Não odeie a vida e a morte e não ame a vida e a morte. Mantém cada um de seus pensamentos livre da ignorância e em vida presenciará o princípio do nirvana (65), e na morte experimentará a garantia de não renascer (66).
Ver a forma, mas não ser corrompido pela forma e ouvir o som, mas não ser corrompido pelo som é liberação. Olhos que não são apegados à forma são os Portais do Zen. Ouvidos que não são apegados ao som são também os Portais do Zen. Resumindo, aqueles que percebem a existência e a natureza dos fenômenos e permanecem desapegados são liberados. Aqueles que só percebem a aparência externa dos fenômenos estão a sua mercê. Liberação significa não estar sujeito à aflição. Não há outra liberação. Quando você sabe como olhar para a forma, a forma não origina a mente e a mente não origina forma. Forma e mente são ambas puras.
Quando as ilusões não estão presentes, a mente é a terra dos budas. Quando as ilusões estão presentes, a mente é o inferno. Os mortais criam ilusões. E através do uso da mente para dar origem à mente eles sempre se encontram no inferno. Os bodhisattvas vêem através das ilusões. E por não usarem a mente para gerar a mente eles sempre se encontram na terra dos budas. Se você não usa sua mente para criar mente, cada estado da mente é vazio e cada pensamento imóvel. Você vai de uma terra de buda67 para outra. Se você usa sua mente para criar mente, cada estado da mente está perturbado e cada pensamento está em movimento. Você vai de um inferno para o seguinte. Quando um pensamento nasce, há bom carma e mau carma, céu e inferno. Quando nenhum pensamento nasce, não há bom carma ou mau carma, não existe céu ou inferno. O corpo não existe nem não existe. Portanto, a existência como mortal e a não existência como sábio são concepções com as quais um sábio nada tem a ver. Seu coração é vazio e espaçoso como o céu. O que se segue é testemunhado no caminho. Está além do alcance de arhats e mortais.
Quando a mente alcança o nirvana, você não vê o nirvana, pois essa mente é o nirvana. Se você vê o nirvana em algum lugar fora da mente, você está se iludindo.
Cada sofrimento é uma semente de buda, porque o sofrimento impele os mortais a buscar a sabedoria. Mas você apenas pode dizer que o sofrimento gera a buditude. Você não pode dizer que o sofrimento é buditude. Seu corpo e mente são o solo. O sofrimento é a semente, a sabedoria é o broto e a buditude o fruto.
O buda está para a mente assim como a fragrância está para a árvore. O buda é proveniente de uma mente livre de sofrimento, tal como uma fragrância provém de uma árvore que não tem partes podres. Não há fragrância sem a árvore e nenhum buda sem a mente. Se há fragrância sem árvore, é uma fragrância diferente. Se há buda sem sua mente, é um buda diferente.
Quando os três venenos estão presentes em sua mente, você vive numa terra imunda. Quando os três venenos estão ausentes de sua mente, você vive numa terra de pureza. Dizem os sutras: “Se você encher uma terra de impurezas e imundícies, jamais um buda aparecerá”. Impurezas e imundícies referem-se à ilusão e outros venenos. Um buda refere-se a uma mente pura e desperta.
Não há linguagem que não seja o Dharma. Ficar o dia inteiro sem dizer coisa alguma é o caminho. Ficar silencioso o dia inteiro e ainda dizer algo não é o caminho. Portanto, a fala do Tathagata não depende do silêncio, nem o seu silêncio depende da fala, nem sua fala existe em separado do seu silêncio. Aqueles que entendem tanto fala como silêncio estão em samadi. Se você fala quando você sabe, sua fala é livre. Se você fica silencioso quando você não sabe, seu silêncio está amarrado. Se a fala não é apegada às aparências, ela é livre. Se o silêncio é apegado às aparências, está amarrado. A linguagem é essencialmente livre. Nada tem a ver com apego. E o apego nada tem a ver com a linguagem.
A realidade não tem altos e baixos. Se você vê altos e baixos, não é real. Uma balsa(68) não é real. Mas um passageiro da balsa é. Uma pessoa que usa tal balsa pode cruzar aquilo que não é real. É por isso que é real.
De acordo com o mundo existe macho e fêmea, rico e pobre. De acordo com o caminho não há macho e fêmea, não há rico ou pobre. Quando a deusa descobre o caminho, ela não muda de sexo. Quando o garoto apunhalado(69) despertou para a verdade, ele não mudou seu status. Livres de sexo e status, eles compartilham a mesma aparência básica. A deusa não teve sucesso por 12 anos em sua busca por feminilidade. Procurar por 12 anos pela hombridade de alguém seria igualmente infrutífero. Os 12 anos referem-se às 12 entradas(70).
Sem a mente não há Buda. Sem o Buda não há mente. Da mesma maneira, sem água não há gelo, e sem gelo não há água. Quem fala sem deixar a mente não vai muito longe. Não se apegue às aparências da mente. Dizem os sutras: “Quando você não vê aparências, vê o Buda”. É isso que significa ser livre das aparências da mente.
Sem a mente não há Buda significa que o Buda vem da mente. A mente é a origem do Buda. Mas embora o Buda provenha da mente, a mente não provém do Buda, tal como um peixe provém da água, mas a água não provém do peixe. Quem quer que veja o peixe verá a água antes de ver o peixe. E quem quer ver um Buda verá a mente antes de ver o Buda. Uma vez que você veja o peixe se esquece da água e uma vez que você veja o Buda, se esquece a respeito da mente, a mente confundirá você, assim como água o confundirá se você não se esquecer dela.
Mortalidade e a buditude são como água e gelo. Afligir-se pelos três venenos é a mortalidade. Ser purificado pelos três liberações(71) é buditude. O que congela no inverno criando o gelo desfaz-se em água no verão. Elimine o gelo e não haverá água. Livre-se da mortalidade e não haverá buditude. É claro que a natureza do gelo é a natureza da água e a natureza da água é a natureza do gelo. E a natureza da mortalidade é a natureza da buditude. Mortalidade e a buditude compartilham a mesma natureza tal como wutou e futzu(72) compartilham a mesma raiz, mas não a mesma estação. É somente por causa da ilusão sobre diferenças que temos as palavras mortalidade e buditude. Quando uma serpente torna-se um dragão ela não muda suas escamas. E quando um mortal torna-se um sábio, ele não muda sua face. Conheça sua mente através da sabedoria interna e cuida de seu corpo através da disciplina externa.
Os mortais liberam budas e os budas liberam mortais. Imparcialidade significa isso. Os mortais liberam budas porque a aflição cria consciência. E os budas liberam mortais porque a consciência extingue a aflição. Não há outro remédio senão a aflição e não há outro remédio para não haver aflição exceto a consciência. Se não fosse pela aflição, não haveria porque criar conhecimento. E se não fosse pelo conhecimento, nada haveria para combater a aflição. Quando se vive na ignorância, os budas liberam mortais. Quando você está consciente, os mortais liberam budas. Os budas não se tornam budas por si mesmos. Eles são liberados por mortais. Os budas consideram a ignorância como seu pai e a avidez como sua mãe. Ignorância e avidez são nomes diferentes para mortalidade. A ignorância e a avidez são como a mão esquerda e a mão direita. Não existe outra diferença.
Quando se vive na ignorância, se está nesta margem. Quando se está consciente, se está na outra margem. Mas uma vez que você sabe que sua mente é vazia e não veja aparências, você está além da ignorância e da consciência. E uma vez que você esteja além da ilusão e da consciência, a outra margem não existe. O Tathagata não está nesta margem nem na outra. E tampouco está na metade da corrente.Os arhats estão na metade da corrente e os mortais nesta margem. Na outra margem está a buditude.
Os budas têm três corpos(73): um corpo de transformação, um corpo de recompensa e um corpo real. O corpo de transformação é também chamado de corpo de encarnação. O corpo de transformação aparece quando os mortais fazem boas ações, o corpo de recompensa quando cultivam sabedoria, e o corpo real quando se tornam conscientes do sublime. O corpo de transformação é o que pode voar em todas as direções resgatando os outros onde é possível. O corpo de recompensa põe fim às dúvidas. “A grande iluminação ocorreu nos Himalaias(74)” repentinamente torna-se verdadeira. O corpo real não faz ou diz coisa alguma. Permanece perfeitamente imóvel. Na realidade, nem sequer existe um corpo de Buda, muito menos três. Falar dos três corpos está baseado simplesmente na compreensão humana, que pode ser superficial, moderada ou profunda.
As pessoas de compreensão superficial imaginam que acumulam méritos e confundem o corpo de transformação com o Buda. As pessoas de compreensão moderada imaginam que estão pondo fim ao sofrimento e confundem o corpo de recompensa com o Buda. E as pessoas de compreensão profunda imaginam que experimentam a buditude e confundem o corpo real com o Buda. Mas as pessoas com a compreensão mais profunda olham em seu interior, não se distraindo com nada. Como uma mente clara é o Buda, alcançam a compreensão de um Buda sem usar a mente. Os três corpos, como todas as outras coisas, são inatingíveis e indescritíveis. A mente sem obstáculos alcança o Caminho. Dizem os sutras: “Os budas não predicam o Dharma. Não liberam mortais. E não experimentam a buditude”. É isso que quero dizer.
Os indivíduos criam carma; o carma não cria indivíduos. Criam carma nesta vida e recebem seus frutos na seguinte. Nunca escapam disso. Só alguém que é perfeito não cria carma nesta vida e não recebe os frutos. Dizem os sutras: “Quem não cria carma obtém o Dharma”. Este não é um dito vazio. Você pode criar carma, mas não pode criar uma pessoa. Quando cria carma, você renasce junto com seu carma. Quando não cria carma, você desaparece juntamente com seu carma. Portanto, como o carma depende do indivíduo e o indivíduo depende do carma, se o indivíduo não criar carma, o carma nada pode fazer com ele. Da mesma maneira: “Uma pessoa pode ampliar o Caminho. O caminho não pode ampliar uma pessoa (75)”.
Os mortais continuam criando carma e erradamente insistem que não há retribuição. Mas por acaso podem negar o sofrimento? Podem negar que o que semeia o estado presente da mente não é o que recolhe o seguinte estado mental? Como podem escapar? Mas se no presente estado da mente não se semeia nada, o seguinte estado da mente nada colhe. Não entenda mal o carma.
Dizem os sutras: “Apesar de crer nos budas, as pessoas que imaginam que os budas praticam austeridades não são budistas. O mesmo aplica-se àqueles que imaginam que os budas estão sujeitos a retribuição de riqueza ou pobreza. Eles são icchantikas. São incapazes de crer”.
Quem compreende os ensinamentos dos sábios é um sábio. Quem compreende os ensinamentos dos mortais é um mortal. Um mortal que possa afastar-se do ensinamento dos mortais e seguir os ensinamentos dos sábios torna-se um sábio. Mas os loucos deste mundo preferem procurar por sábios muito longe. Não acreditam que o sábio é a sabedoria de suas próprias mentes. Dizem os sutras: “Não recite este sutra entre homens sem compreensão”. E dizem os sutras: “A mente é o ensinamento”. Mas as pessoas sem compreensão não acreditam em suas próprias mentes nem que mediante a compreensão desse ensinamento podem se tornar sábias. Preferem procurar um conhecimento distante e esperar por coisas no espaço, imagens de Buda, luzes, incensos e cores. Ficam presas na falsidade e na loucura.
Dizem os sutras: “Quando você vê que todas as aparências não são senão aparências, então vê o Tathagata”. As miríades de portas para a verdade proveem todas da mente. Quando as aparências da mente são tão transparentes como o espaço, desaparecem.
Nossos sofrimentos sem fim são as raízes da doença. Quando os mortais estão vivos, preocupam-se com a morte. Quando estão satisfeitos, preocupam-se com a fome. Sua é a Grande Incerteza. Mas os sábios não consideram o passado e não se preocupam com o futuro, tampouco se apegam ao presente. E de momento a momento eles seguem o Caminho. Se você não despertou para esta grande verdade, o melhor é procurar um mestre na terra ou nos céus. Não agraves sua própria deficiência.
Notas:
56. Dez direções. Os oito pontos cardinais, mais o zênite e o nadir.
57. Os Arhats permanecem imóveis. O arhat alcança o quarto e último fruto do budismo Hinayana, liberação das paixões, cultivando a imobilidade.
58. Deixar o lar. Como Shakyamuni fez para procurar a iluminação. Portanto, tornar-se um monge ou monja.
59. Local da iluminação. Bodhimandala. O centro de cada mundo, onde todos os budas alcançam a iluminação. O termo também refere-se a um templo budista.
60. Local desabitado. Local adequado para o cultivo da espiritualidade.
61. Caminho do meio. O caminho que evita realismo e niilismo, existência e não existência.
62. Visão verdadeira. O Óctuplo Nobre Caminho do Buda começa com a visão verdadeira (reta), que busca romper através do pensamento iludido ou ignorância, o primeiro dos 12 elos da Corrente do Carma: ignorância, formações mentais, consciência, nome-e-forma, órgãos dos sentidos, contato, sensação, desejo, apropriação, existência, nascimento, velhice-e-morte. Os três primeiros referem-se à existência anterior. Os dois últimos à próxima existência.
63. Samadí. O objetivo da meditação. Samadi é uma palavra sânscrita para mente sem distração, uma cobra dentro de um tubo de bambu.
64. Cinco trevas. Os cincos skandas ou agregados, os constituintes da personalidade que obscurecem natureza búdica: forma, sensação, percepção, formações mentais e consciência.
65. Início do nirvana. O nirvana não é final antes de se abandonar o corpo.
66. Garantia de não renascer. A realização do nirvana.
67. Terra búdica. Um reino transformado de imundície à pureza pela presença de um buda, portanto, uma terra pura. Veja a última seção do capítulo um no Sutra de Vimilakirti.
68. Balsa. Buda compara seu ensinamento à uma balsa que pode ser usada para cruzar o Rio de Renascimento Sem Fim. Mas uma vez que serviu ao propósito, a balsa é inútil. Não é mais uma balsa.
69. Deusa…cavalariço. A Deusa aparece no capítulo 7 do Sutra de Vimilakirti. O garoto apunhalado pode ser uma referência ao cavalariço de Shakyamuni. Se assim for, não estou familiarizado com a história.
70. Doze entradas. Os seis órgãos e os seis sentidos.
71. Três liberações. A libertação da ignorância, do ódio e do apego é ultrapassar as três portas da salvação: não-eu, não-forma e não-desejo.
72. Wutou e futzu. Um anestésico é extraído do futzu, as raízes secundárias que crescem da raiz básica do wutou (aconitum). A raiz secundária não se desenvolve até o segundo ano da planta.
73. Três corpos. O Nirmanakaya (Shakyamuni), o Sambhogakaya (Amithaba) e o Dharmakaya (Vairocana).
74. A Grande iluminação aconteceu nos Himalaias. A iluminação de Buda não ocorreu nos Himalaias, mas no antigo estado indiano de Magadha, sul do Nepal. Numa existência anterior, entretanto, Buda viveu nos Himalaias como asceta. Portanto, considerando as vidas anteriores isso é verdade.
75. Uma pessoa pode ampliar o caminho. O caminho não pode ampliar uma pessoa. É um dístico de Confúcio (Analectos, Capítulo 15)