Respondendo às pressões



Respondendo às pressões

Texto de Charlotte Joko Beck, extraído do livro”Nada Especial

Antes do serviço, recitamos o verso do Kesa: “Vasto é o manto da libertação, o campo informe de benefícios. Visto o ensinamento universal, salvando todos os seres sensíveis”* . A frase “campo informe de benefícios” é particularmente evocativa; traz à tona quem somos e qual é a função de um serviço religioso. O ponto da prática do zen é sermos quem somos – um campo informe de benefícios. Essas palavras parecem muito belas, mas vivê-las em nossa própria vida é difícil e confunde.

Consideremos de que maneira lidamos com a pressão ou o estresse. Aquilo que para alguém é pressão para outro não é. Para uma pessoa tímida, pressão poderia ser atravessar uma festa apinhada de gente. Para outra, pressão poderia ser ficar sozinha, ou cumprir prazos. Há indivíduos para quem pressão seria ter uma vida lenta, monótona, sem nenhum prazo a cumprir. Um novo filho, um novo namorado, um novo amigo podem ser focos de pressão. O sucesso também. Há pessoas que lidam bem com o fracasso, mas não com o sucesso. Pressão é aquilo que nos faz ficar tensos, que nos desperta a ansiedade.
Temos diferentes estratégias para responder a pressões. Gurdjieff, intérprete do misticismo sufi, chamava nossa estratégia de “aspecto principal” . Precisamos aprender qual é o nosso aspecto principal – a maneira mais comum de lidarmos com pressões. Quando está sob pressão, uma pessoa tende a recuar, outra se esforça para ser perfeita ou para ser mais estrela ainda.

Há quem responde à pressão trabalhando mais, e há os que então trabalham menos. Alguns fogem, outros tentam dominar. Há os que se ocupam e falam bastante; e há os que se tornam mais calados do que o habitual.
Descobre-se qual é o aspecto principal observando-se quando se está sob pressão. Todo dia quando acordamos, é provável que haja alguma coisa adiante naquele dia que irá nos causar alguma pressão. Quando as coisas estão difíceis, não há senão pressão em nossa vida. Em outras épocas existe muito pouca pressão e então pensamos que as coisas estão indo bem. Mas a vida sempre nos pressiona de alguma maneira.

Nosso padrão típico de responder a pressões é criado bem no início de nossas vidas. Quando enfrentamos dificuldades na infância, o macio tecido da vida começa a formar pregas. É como se essas pregas formassem uma pequena bolsa que usamos para esconder nosso medo. O modo como escondemos nosso medo – essa pequena bolsa, que é nossa estratégia para dar conta da situação – é nosso aspecto principal. Enquanto não enfrentarmos nosso “aspecto principal” e vivenciarmos nosso medo, não conseguiremos ser aquela totalidade contínua, o “campo informe de benefícios”. Em vez disso estamos todos repletos de pregas, de calombos.

Ao longo de uma vida inteira de prática, o aspecto principal da pessoa muda quase que inteiramente. Por exemplo, eu costumava ser tão tímida que, se tivesse de comparecer a uma sala onde estivessem dez ou quinze pessoas, ou a um coquetel para pouca gente, eu levaria uns quinze minutos andando de um lado para outro lá fora antes de conseguir reunir a coragem necessária para entrar. Hoje, no entanto, embora eu não prefira grandes festas, sinto-me à vontade nelas. Existe uma grande diferença entre sentir tanto medo que mal se consegue entrar na sala e sentir-se à vontade nessa situação. Não estou querendo dizer que a personalidade básica da pessoa mude. Eu nunca serei “a alma da festa”, mesmo que viva até os 110 anos. Gosto de olhar para as pessoas que estão numa festa e de conversar com algumas delas; esse é o meu jeito.
Muitas vezes cometemos o erro de supor que podemos apenas nos re-treinar através de esforços e auto-análise. Podemos pensar na prática zen como um estudo de nós mesmos, para podermos aprender a pensar de maneira diferente, da mesma forma como poderíamos aprender xadrez ou culinária francesa. Mas não é isso. A prática zen não é como aprender história da antigüidade, matemática ou culinária refinada. Esses tipos (te aprendizado têm seu lugar, sem dúvida, porém quando se trata de nosso aspecto principal – o modo mais comum de lidamos com a pressão – é nosso mau uso da mente individual que criou a contração emocional. Não podemos usá-la para se corrigir; não podemos usar nossa pequena mente para corrigir a pequena mente. É um problema formidável: aquilo mesmo que estamos investigando é também o nosso meio ou instrumento de investigação. A distorção em nosso modo de pensar distorce nossos esforços para corrigir a distorção.
Não sabemos como atacar o problema. Sabemos que algo em nós não vai bem porque não estamos em paz; tendemos a experimentar todas as espécies de falsas soluções. Uma dessas “soluções” é nos treinar a pensar- de modo positivo. Essa é apenas uma manobra da pequena mente. Quando nos programamos para ter pensamentos positivos ainda não chegamos realmente a nos compreender e sendo assim continuamos a entrar em dificuldades. Se criticamos nossa mente e nos dizemos: “Você não pensa muito bem, então não vou forçá-la a pensar”, ou “Você alimentou todos esses pensamentos destrutivos; agora você deve ter pensamentos agradáveis, pensamentos positivos”, ainda estamos usando nossa mente para tratar de nossa mente. Esse ponto é, sobretudo, difícil para os intelectuais absorverem, uma vez que passaram sua vida inteira usando a mente para resolver problemas e, é natural, iniciam sua prática zen do mesmo modo. (Ninguém melhor que eu para saber como é assim!) A estratégia nunca deu certo e nunca dará.

Existe uma única maneira de se escapar a esse laço fechado e nos enxergar com clareza: temos de dar um passo além do alcance de nossa pequena mente e observá-la. Essa que observa não é pensamento porque o observador pode observar o pensamento. Temos de observar a mente e reparar no que ela está fazendo. Temos de notar como a mente produz esses enxames de pensamentos auto-centrados e cria, dessa maneira, a tensão corporal. O processo de dar um passo atrás não é complicado, mas se não estamos habituados a ele parece novo e desconhecido e talvez assuste. Com persistência, torna-se mais claro.

Vamos supor que perdemos o emprego. Os pensamentos inundam a nossa mente, criando emoções variadas. Nosso aspecto principal irrompe em cena, encobrindo nosso medo para que não precisemos enfrentá-lo diretamente. Se perdermos nosso emprego, a única coisa a fazer é procurar outro, supondo que precisamos de dinheiro. Contudo, em geral não é isso que fazemos. Ou, se estamos procurando outro trabalho, podemos não agir com eficiência porque ficamos muito ocupados com o nosso aborrecimento e com o transtorno causado pelo aspecto principal.
Vamos supor que alguém nos criticou. De repente sentimos a pressão. Como lidar com isso? Nosso aspecto principal aparece no mesmo instante. Usamos qualquer truque mental que conseguimos encontrar: preocupações, justificativas, recriminações. Podemos tentar esquivar-nos do problema pensando em alguma coisa inútil ou irrelevante. Podemos usar alguma droga para silenciá-lo.

Quanto mais observarmos nossos pensamentos e ações, mais nosso aspecto principal tenderá a desaparecer. Quanto mais se desfaz, mais sentimo-nos disponíveis para vivenciar o medo que apareceu antes de tudo. Durante muitos anos, a prática refere-se a fortalecer o observador. Com o tempo, estaremos disponíveis para fazer o que estiver pela frente, sem resistência, e esse observador desaparecerá. Não precisaremos então do observador para mais nada; podemos ser a própria vida. Quando esse processo estiver completo, a pessoa será um ser plenamente realizado, um buda – embora eu ainda não tenha conhecido ninguém cujo processo tenha ficado completo.

Sentar para a prática é como nossa vida diária: o que aparece quando nos sentamos é o pensamento a que queremos nos apegar, o nosso aspecto principal. Se gostarmos de fugir da vida, encontraremos em nossa prática sentada uma maneira de nos esquivar do sentar. Se gostarmos de nos preocupar, ficaremos preocupados; se gostamos de fantasiar, iremos fantasiar. Aquilo que fazemos em nossa prática sentada é como o microcosmo do resto de nossas vidas. Nossa prática sentada mostra-nos como estamos levando nossa vida e nossa vida mostra-nos o que fazemos quando nos sentamos para a prática.
A transformação não começa com a pessoa dizendo para si mesma: “Tenho que ser diferente”. A transformação começa com a compreensão do que está dito nó verso do Kesa: “Vasto é o campo da libertação”. Nossas próprias vidas são um vasto campo de libertação, um campo informe de benefícios. Quando vestimos os ensinamentos da vida, observando nossos pensamentos, vivenciando as sensações que recebemos a cada segundo, então estamos nos dedicando a nos salvar e a salvar todos os seres sensíveis; apenas sendo quem somos.

ALUNO: Meu “aspecto principal” parece mudar conforme a situação. Sob pressão em geral sou controlador, dominador e fico com raiva. Em outra situação, no entanto, posso tornar-me retraído e calado.
JOKO: Mesmo assim, para cada pessoa, comportamentos diferentes em resposta à pressão advêm da mesma abordagem básica diante do medo, embora possam parecer diferentes. Existe um padrão intrínseco que está sendo expresso.
ALUNO: Quando me sinto pressionado – em especial quando me sinto criticado -, dou duro e tento fazer bem as coisas; tento não somente revidar, mas sentar-me na ansiedade e no medo. No ano passado, porém, cheguei à constatação de que, quando me sinto criticado, por trás de meus esforços para agir de forma correta está uma raiva enorme. O que realmente quero é atacar; sou um tubarão assassino.
JOKO: Essa ira esteve ali o tempo todo; ser uma boa pessoa e um bom profissional é seu disfarce. Existe um tubarão assassino em todo mundo. É é o medo que não se vivenciou. Seu modo de encobri-lo é parecer ser tão boa pessoa, fazer tantas coisas e ser tão maravilhoso que ninguém jamais consiga ver quem você de fato é – alguém morto de medo. Conforme vamos desenterrando essas camadas de fúria, é importante não deixá-la vazar para nossas condutas; não devemos infligir nossa fúria aos outros. Na prática genuína, nossa fúria é apenas um estágio que passa. Porém, por algum tempo, sentimo-nos muito mais incomodados do que quando começamos. Isso é inevitável; estamos nos tornando mais honestos, e nosso falso estilo superficial está começando a se dissolver. O processo não dura para sempre, mas com certeza é muito desagradável enquanto dura. De vez em quando podemos até explodir, mas isso é melhor do que fugir ou mascarar nossa reação.
ALUNO: Freqüentemente, consigo enxergar os padrões das outras pessoas com muito mais rapidez do que o meu. Quando elas são importantes para mim, sinto a tentação de lhes dizer o que vejo. Sinto-me como se estivesse vendo um amigo se afogar e não lhe dou um salva-vidas. Quando de fato interfiro, porém, em geral me dá a sensação de que estou me intrometendo em suas vidas, o que não é em absoluto da minha conta.
JOKO: É importante esse ponto. O que significa ser um campo informe de benefícios? Todos vemos as pessoas fazendo coisas que evidentemente lhes são prejudiciais. O que devemos fazer?
ALUNO: Não basta estar consciente e ser presente para elas?
JOKO: Sim, essa é em geral a melhor resposta. De vez em quando as pessoas nos pedem ajuda. Se seu pedido for sincero, está certo responder. Mas podemos nos afobar muito, nos atirar em conselhos. A maioria de nós se compõe de consertadores. Uma antiga máxima zen aconselha a não responder enquanto não nos tiverem solicitado três vezes. Se a pessoa realmente quer sua opinião insistirá. Mas apressamo-nos em dar opiniões quando ninguém as quer. Eu sei: eu era assim.

O observador não tem emoções. É como um espelho. Tudo apenas passa à sua frente. O espelho não julga. Sempre que julgamos, acrescentamos um outro pensamento que necessita ser rotulado. O observador não critica. Julgar não é algo que o observador faça. Ele simplesmente observa ou reflete, como um espelho. Se passa lixo à sua frente, ele reflete lixo. Se passam rosas à sua frente, ele reflete rosas. O espelho continua sendo um espelho, um espelho vazio. O observador nem mesmo aceita; só observa.
ALUNO: O observador não é de fato parte da pequena mente?
JOKO: Não. O observador é uma função da percepção consciente que só surge quando temos o aparecimento de um objeto em nossa vivência no mundo fenomênico. Se não aparece um objeto (por exemplo, no sono profundo), o observador não está ali. O observador finalmente morre quando somos apenas a percepção consciente e não precisamos mais dele.
Nunca conseguimos encontrar esse observador, por mais que o procuremos. No entanto, apesar de nunca conseguirmos localizá-lo, é óbvio que podemos observar. Poderíamos dizer que o observador é uma dimensão diferente da mente, mas não um aspecto da pequena mente, que existe no nível linear comum. Nós somos percepção consciente. Ninguém jamais observou a percepção consciente, no entanto é isso que somos – um “campo informe de benefícios”.
ALUNO: Parece que uma sensação desagradável consegue me ancorar no presente e focalizar minha atenção no aqui-agora.
JOKO: Temos o antigo ditado segundo o qual na última essência do homem está a oportunidade para Deus. Quando as coisas são agradáveis, tentamos nos apegar às amenidades. Em nossa tentativa de reter o prazer, nós o destruímos. Quando estamos sentados na prática e verdadeiramente parados, porém, o desconforto e a dor nos remetem de volta ao presente. A postura sentada torna mais óbvio nosso desejo de escapar ou de fugir. Quando estamos praticando bem, não há outro lugar aonde ir. Nossa tendência é não aprender isso a menos que sintamos desconforto. Quanto mais conscientes estivermos de nosso desconforto e de nossos esforços para escapar, mais transtornos serão criados no mundo fenomênico: desde guerras internacionais até discussões pessoais e brigas em nosso íntimo; todos esses problemas surgem porque nos separamos de nossas vivências. O desconforto e a dor não são a causa de nossos problemas; a causa é que nós não sabemos o que fazer com essas sensações.
ALUNO: Até mesmo no prazer tem um elemento de desconforto. Por exemplo, é um prazer ter um pouco de paz e silêncio, mas logo sinto um certo incômodo ao pensar que o barulho e o alarido podem recomeçar a qualquer instante.
JOKO: Prazer e dor são apenas pólos opostos. O contentamento está em ser disponível para que as coisas sejam como são. Com contentamento, não há polaridade. Se o barulho começa, ele começa. Ambos são contentamento. Uma vez que queremos nos apegar ao prazer e afastar a dor, porém, desenvolvemos uma estratégia de escape. Quando alguma coisa desagradável nos acontece enquanto somos crianças, desenvolvemos um sistema – um aspecto principal para lidar com as coisas desagradáveis – e vivemos desde então com base nisso em vez de ver a vida como ela é.