Comentários sobre o koan Mu



INTRODUÇÃO DO ORGANIZADOR

Desde que Joshu, um dos mais importantes mestres do Zen chinês da era T’ang, retorquiu “MU” para um monge que lhe perguntara se os cachorros tinham a natureza-Buda, a repercussão deste incidente tem ecoado através das paredes dos mosteiros e templos Zens através dos séculos. Mesmo nos dias de hoje nenhum koan é mais freqüentemente prescrito para os noviços. Os mestres japoneses estão de comum acordo em considerá-lo insubstituível para quebrar a distância que separa a mente da ignorância da abertura dos olhos para a Verdade. Uma leitura cuidadosa desta parte e das partes III e V explicará por quê.

Até agora nenhuma tradução de um comentário formal (teisho) sobre o koan-Mu apareceu em inglês. O presente comentário foi feito pelo mestre Zen Yasutani, sem notas, para uns trinta e cinco leigos num sesshin em 1961. Está aqui reproduzido numa tradução exata, com exceção de algumas expressões menos importantes repetidas ou inadequadas, que inevitavelmente surgem no discurso improvisado e foram supressas para fins de publicação.

Na sua clareza e penetração, na inspiração, encorajamento e orientação que oferece tanto ao noviço como ao discípulo adiantado, permanece como um comentário magistral deste koan, honrado através dos séculos.

No Mumonkan (a Barreira sem Portão), compilado por Mumon Ekai, que era mestre Zen, o Mu encabeça a coleção de quarenta e oito koans. Ainda que algumas traduções do Mumonkan aparecessem, deixam elas muito a desejar porque comumente, ao invés de revelarem o espírito essencial do koan, elas o obscurecem. É mais uma prova eloqüente da reverência mal orientada que o Zen engendrou nas mentes de muitos, pois, quanto mais “místico” ou absolutamente incompreensível o koan lhes parece em inglês, mais profundo é considerado.

Cada koan é uma expressão singular de vivência da indivisível natureza-Buda que não pode ser compreendida pela bifurcação do intelecto. Os koans parecem desnorteadores, para pessoas que gostam mais da letra do que do espírito. Os que percebem seu espírito sabem que os koans, apesar da incongruência de seus vários elementos são profundamente significativos. Todos apontam para a Face do homem antes que seus pais fossem nascidos, para o seu verdadeiro ser.

A finalidade de cada koan é libertar a mente das ciladas da linguagem, “que cabe na experiência como uma roupa apertada”. Os koans são de tal modo expressos, que jogam deliberadamente areia nos olhos para nos forçar a abrir os olhos da mente e ver o mundo e tudo nele sem distorção.

Os koans tomam como seus assuntos reais objetos tais como um cachorro, um rosto, um dedo, que nos fazem ver, por um lado, que cada objeto tem valor absoluto, e por outro, freiar a tendência do intelecto de ancorar-se nos conceitos abstratos. Mas o que cada koan quer dizer é sempre a mesma coisa: que o mundo é um todo interdependente e cada um de nós separado somos este TODO.

Os mestres Zen chineses, esses gênios espirituais que criaram os diálogos paradoxais, não hesitaram em se debruçarem sobre a lógica e o senso comum, para fazerem suas maravilhosas criações. Levando habilmente o intelecto a tentar soluções impossíveis a ele, o koan revela-nos as limitações inerentes ao pensamento lógico como instrumento para conseguir a Verdade final. No processo nos questionam de forma livre sobre nossos dogmas e preconceitos guardados com rigor, nos despojam de nossas tendências a discriminar o bem do mal e nos esvaziam da noção falsa de si-e-do-outro, com a finalidade de nos levar um dia a perceber que o mundo da Perfeição não é de fato diferente daquele no qual comemos e eliminamos, rimos e choramos.

O grande mérito dos koans, que se distribuem através da vasta área dos ensinamentos Mahayana, é nos impelir, de modo engenhoso e muitas vezes dramático, a aprender essas doutrinas, não simplesmente com nossa cabeça, mas com todo o nosso ser, não nos permitindo permanecer inativos, especulando indefinidamente sobre eles de forma abstrata.

O que Heinrich Zimmer diz sobre certos tipos de meditação é especialmente verdade com os koans, cujo espírito deverá ser demonstrado diante do roshi e não apenas explicado: “o conhecimento é a recompensa da ação. . . Pois é fazendo as coisas que alguém se transforma”. Executando um gesto simbólico, vivendo realmente em profundidade até o limite máximo, uma função particular, chega-se a realizar a verdade inerente a esta função. Suportando suas conseqüências, a pessoa aprofunda e esgota a essência dela”.

A solução completa de um koan envolve o movimento da mente de um estágio de Ignorância (ilusão) para a consciência interior vibrante de viver a Verdade. Implica isto no mergulhar dentro do campo da consciência da mente-Bodhi imaculada, que é o reverso da ilusão. A determinação de lutar com o koan é em primeiro lugar gerada pela fé na realidade da mente-Bodhi, sendo esta luta em si mesma o esforço dessa Mente para deitar fora os grilhões da Ignorância e chegar ao seu auto-conhecimento.

Agora, qual é a origem do poder do Mu, o que foi que lhe permitiu tornar-se o primeiro da lista entre koans de mais de mil anos? Considerando que koans tais como: “Qual é o som das palmas que alguém bate com as mãos?” e “Qual era sua Face, antes que seus pais nascessem?” persigam o pensamento discursivo e excitem a imaginação, o Mu se mantém friamente afastado tanto do intelecto como da imaginação. Procurem tanto quanto possível ver que o raciocínio não pode conseguir nenhum meio para solucionar o Mu. De fato, tentar resolver o Mu racionalmente, dizem os mestres, é como “tentar atravessar uma parede de ferro dando socos com o punho”. Porque o Mu é inteiramente impenetrável à lógica e à razão e além disto é fácil de enunciar, tem dado provas de ser um bisturi manejável para a extirpação da mais profunda inconsciência e impedir o crescimento maligno do “não-EU” que envenena a pureza intrínseca da Mente, diminuindo sua santidade fundamental.

Um comentário vivo e penetrante (além dos comentários que acompanham os koans) é de grande valor para qualquer aspirante que deseja utilizar um koan como seu exercício espiritual. Além de familiarizá-lo com os planos de fundo do “dramatis personae” e expondo em idioma contemporâneo termos obscuros e alusões metafóricas comuns à língua da antiga China na qual os koans e os comentários estão redigidos, projeta diante dele, em linguagem concisa e vigorosa, o espírito do koan. Faltando esta orientação, seria provável julgar o koan alienante, se não bizarro.

Uma vez que o teisho não é uma palestra comum ou um sermão dirigido a toda gente, mas uma parte integral do treinamento Zen, em geral só é dado num sesshin e essencialmente em benefício daqueles que vêm para praticar o zazen. No mosteiro o teisho, que se realiza pelo menos uma vez e freqüentemente duas vezes por dia, é anunciado pelo badalar solene do hansho, um instrumento no conjunto de tambores, sinos e gongos usados pelo Zen. Ao seu sinal todos se põem em fila e andam da sala do zazen para o salão principal e, dividindo-se em dois grupos, um diante do outro em ângulos retos com o altar, sentam-se nas esteiras de tatami na meia-postura ou na postura do lotus inteira, ou na posição tradicional do sentar japonês. O roshi aparece então escoltado por um assistente que carrega seu livro de koans enrolado num pedaço de pano cerimonial de seda, como sinal de respeito e para protegê-lo. Todos os presentes inclinam a cabeça com humildade diante do mestre à medida que ele se dirige ao butsudan (altar) para acender o pau de incenso e coloca-lo diante da imagem de Buda. Então, guiados pelo roshi, todos se levantam, viram-se para o butsudan, e se prostram três vezes. Terminadas estas expressões devocionais de gratidão, reverência e humildade para com Buda e os Patriarcas, o roshi senta-se numa grande almofada sobre um tablado diante do butsudan, cruza suas pernas na postura do lotus, e dirige o canto do grupo, uma pequena seleção de um sutra. Agora esta pronto para começar seu teisho.

Como o sutra cantado que o precede, o teisho é uma oferta a Buda, e de fato é este o sentido do roshi se colocar diante do butsudan e não dos seus ouvintes durante o pronunciamento de seu comentário. Dirigindo-se a Buda, o roshi com efeito esta dizendo: “Esta é minha expressão da verdade de vossos ensinamentos. Ofereço-vos isto, na esperança de que o acheis satisfatório”. O teisho não é um discurso erudito sobre o “sentido” do koan, pois o roshi sabe que as explicações, seja qual for sua sutileza e dificuldade, não levam à compreensão profunda que é a única coisa que torna alguém capaz de demonstrar o espírito do koan com certeza e convicção. De fato, os mestres Zen consideram as meras definições e exclamações secas e sem vida, acabando por desorientar porque são intrinsecamente limitadas.

A única palavra “Imbecil”, saída das entranhas, transmite mais do que uma centena de palavras definindo-a. Nem tampouco o roshi sobrecarrega seus ouvintes com conferências puramente filosóficas sobre a doutrina budista ou sobre a natureza metafísica da realidade final.

Profundamente consciente dos diferentes níveis de compreensão de seus ouvintes, ele coloca seu comentário de tal forma, que cada um o recebe de acordo com sua capacidade de compreensão, mesmo quando ele relaciona o espírito do koan com as experiências da vida comum dos ouvintes. Na linguagem própria do Zen, o roshi “bate” o koan na sua hara, confiando que as centelhas de verdade emitidas iluminarão as mentes dos seus ouvintes.

Literalmente, hara designa o estômago e o abdômem e as funções da digestão, absorção e eliminação ligadas a eles. Mas tem um significado paralelo psíquico e espiritual. De acordo com os sistemas yogas hindu e budista, há no corpo muitos centros psíquicos, através dos quais a força vital cósmica ou a energia flui. Dois destes centros estão encerrados dentro da hara, um é associado ao plexo solar, cujo sistema nervoso governa os processos digestivos e os órgãos de eliminação. A hara é portanto uma fonte inesgotável de energias psíquicas vitais.

Harada-roshi, um dos mais célebres mestres Zen dos seus dias, ao estimular seus discípulos a concentrarem seu olho da mente (isto é, a atenção, o ponto central do ser total) em sua hara, teria dito: “Vocês devem realizar”— isto é tornar real — “que o centro do universo é o orifício de sua barriga!”

Para facilitar sua experiência desta verdade fundamental, ensina-se o noviço Zen a focalizar sua mente constantemente na extremidade de sua hara (em específico, entre o umbigo e a pélvis) e irradiar todas as atividades mentais e físicas desta região. Com o equilíbrio corpo-mente centrado na hara, gradualmente um sentar de conscientização, um foco de energia vital, estabelece-se ali, influenciando todo o organismo.

Esta consciência de forma alguma se limita ao cérebro, como mostra Lama Govinda, que escreve o seguinte: “Ainda que, baseado nas concepções ocidentais, o cérebro seja o centro exclusivo da consciência, a experiência yóguica demonstra que nosso cérebro-consciência é apenas uma dentre um número de formas possíveis de consciência, e que estas, de acordo com suas funções e natureza, podem ser localizadas ou centradas em vários órgãos do corpo. Estes “órgãos”, que reúnem, transformam e distribuem as energias que correm através deles, são chamados çakras, ou centros de energia. De outros irradiam-se correntes secundárias da força psíquica, comparáveis aos raios de uma roda, às varetas de um guarda-chuva, ou às pétalas de um lotus. Noutras palavras, estes cakras são pontos onde as forcas psíquicas e as funções corporais se fundem umas nas outras, ou se interpenetram. São pontos focais onde as energias cósmicas e psíquicas se cristalizam em qualidades corporais e nas quais qualidades corporais se dissolvem e se mudam novamente em forças psíquicas”.

Fixando o centro de gravidade do corpo abaixo do umbigo, isto é, estabelecendo um centro de consciência na hara, automaticamente se relaxam as tensões advindas do encurvamento habitual dos ombros, de deformação do pescoço e da compressão do estômago. Toda esta rigidez desaparece, a vitalidade aumenta e uma nova sensação de liberdade é experimentada por todo o corpo e a mente, que mais e mais se sentem em unidade.

O zazen já demonstrou claramente que, com os olhos da mente centrados na hara a proliferação de idéias casuais diminui e se atinge mais depressa a fixação num ponto determinado, pois a superabundância de sangue da cabeça é orientada para o abdômen, “refrescando” o cérebro e acalmando o sistema nervoso autônomo. Por sua vez, isto leva a um grau maior de estabilidade mental e emocional. Alguém que funciona através de sua hara, por isso mesmo não se perturba facilmente. É ainda mais capaz de agir rapidamente e com decisão numa emergência, pelo fato de que sua mente, ancorada na hara, não vacila.

Com a mente na hara os pensamentos medíocres e egocêntricos são substituídos por uma amplitude de visão e um espírito de magnanimidade. Isto porque o pensamento, partindo do centro da hara vital e livre da mediação do limitado intelecto discursivo, é espontâneo e universal. A percepção a partir da hara tende para a integração e a unidade, mais do que para divisão e fragmentação. Em poucas palavras é um pensar que vê as coisas estáveis e totais.

A figura do Buda sentado no seu trono de lotus-sereno, estável tudo–conhecendo e tudo-abrangendo, irradiando uma luz infinita e compaixão — é o mais perfeito exemplo da hara expressa através da perfeita iluminação.

O ”Pensador” de Rodin, por outro lado, uma figura solitária, “perdida” em pensamentos com o corpo contorcido, afastado e isolado do seu Eu, manifesta o estado contrário.

É importante reconhecer que a habilidade de pensar e de agir através da hara é, como o joriki só indiretamente relacionado com o satori e não seu sinônimo, O satori é uma “virada” da mente, uma experiência psicológica que confere um conhecimento íntimo, enquanto a hara nada é além do que já foi indicado. Os mestres das artes tradicionais japonesas são todos realizados no pensar e no agir pela hara — não mereceriam o título de “mestre” se não o fossem — mas poucos atingiram o satori sem o treinamento Zen. Por que não?

Porque o seu cultivo da hara é essencial para a perfeição de sua arte e não o satori, cuja conquista pressupõe, como Yasutani-roshi põe em evidência nas suas conferências introdutórias, a fé na realidade da iluminação de Buda e na sua própria natureza-Buda imaculada.

É, portanto do hara que o roshi deve expor seu comentário, se é para brilhar intensamente com o espírito e a força de todo o seu ser, e é igualmente em suas haras que seus ouvintes devem focalizar suas mentes, se devem compreender e absorver diretamente e toda inteira a verdade palpitante que lhes está arremessando. Escutando o teisho, que é na verdade outra forma de zazen, isto é, um estado de concentração ininterrupta que leva à total absorção. Por esse motivo a mente concentrada não deve ser interrompida tomando-se apontamentos durante o teisho ou então desviando o olhar das suas posturas “sentadas” firmes. Num mosteiro onde a disciplina é severa, o superior dos monges chamará a atenção dos principiantes que tentam tomar notas ou cujos olhos vagueiam por toda a sala para ver os outros sentados.

Particularmente para o devoto cujo exercício espiritual é o koan, o teisho, fornecendo numerosas “pistas”, apresenta uma oportunidade sem igual para se obter um “insight” direto para dentro do sentido essencial do koan. Se ele foi bem sucedido em exaurir seus pensamentos através da concentração com a mente fixada num ponto e conseguiu absoluta unidade com seu koan, uma frase eficaz dita pelo roshi poderá ser a flecha de ouro que, repentina e imprevisível, encontra seu alvo, rompendo o mais íntimo manto da escuridão e espalhando por toda a mente, luz, compreensão interiores. Para alguém cuja mente ainda não está madura em outras palavras, está ainda envolvida por pensamentos ilusórios — o teisho é uma fonte rica de indicadores para futura prática. Mas para todos, não importando qual o estado de suas mentes, um teisho decisivo fornece inspiração e encorajamento.

Terminando o teisho, o mestre tranqüilamente fecha o livro dos koans e todos se reúnem a ele no Canto dos Quatro Votos. Em momento algum durante ou depois do teisho ele solicita ou encoraja perguntas. Os mestres Zen manifestam desagrado diante de toda pergunta teórica que não conduza a uma experiência da verdade direta e de primeira mão. Esta atitude poderá ser remontada às origens com Buda, que mantinha um “nobre silêncio” sempre que alguém lhe fazia perguntas tais como “O universo e a alma são finitos ou infinitos? O santo existe depois da morte ou não?” E o Zen-budismo, que é a quinta-essência dos ensinamentos de Buda, do mesmo modo recusa tratar de perguntas que não têm uma resposta definitiva, ou de perguntas cujas respostas só podem ser compreendidas por uma mente banhada pela luz da plena consciência, isto é, na perfeita iluminação. Quando perguntas abstratas e teóricas são feitas durante o dokusan (como algumas vezes acontece) o roshi freqüentemente as lança de volta a quem fez a pergunta, para tentar fazê-lo ver a Fonte de onde brotam e relacioná-lo com esta Fonte.

Mas há ainda outras razões pelas quais perguntas abstratas são encaradas com desagrado. A preocupação com elas não somente tende a tomar o lugar do zazen e da compreensão que somente ele poderá dar, mas pelo titilar do intelecto tornam incomensuravelmente mais difícil a aquietação e o esvaziamento da mente essenciais ao kensho. A resposta clássica de Buda a um monge que ameaçou deixar a vida religiosa se Buda não respondesse suas perguntas sobre se os santos existem depois da morte ou não, vale a pena ser repetida.

“É como se um homem tivesse sido ferido por uma flecha bem untada com veneno, e seus amigos, seus companheiros e seus parentes tenham ido procurar para ele um médico ou cirurgião, e o doente dissesse: “Não consentirei que seja retirada esta flecha enquanto não souber se o homem que me feriu pertence à casta dos soldados ou à casta dos brâmanes.. . souber se ele era alto, baixo, ou de altura média, se era preto, escuro ou de pele amarela; se desta ou daquela vila, aldeia ou cidade;…se era uma flecha ordinária ou uma flecha de cabeça em garra… Este homem morreria sem nunca chegar a saber destas coisas”.

Noutro diálogo declarou Buda: “A vida religiosa não depende do dogma de que o mundo seja eterno ou não, infinito ou finito, de que a alma e o corpo sejam idênticos ou diferentes, ou do dogma de que o santo existe ou não existe depois da morte. De nada aproveita, nada tem a ver com as bases da religião, nem leva à ausência da paixão. . . à suprema sabedoria, e ao Nirvana”.

O COMENTÁRlO

Hoje vou tratar do primeiro caso em Mumonkan, intitulado “Joshu (sobre a natureza inerente a um) cachorro”. Lerei o próprio koan e depois o comentário de Mumon.

Um monge com muita seriedade perguntou a Joshu: “O cachorro tem natureza-Buda ou não?” Joshu respondeu: “Mu!”

COMENTÁRIO DE MUMON

: Na prática do Zen vocês deverão atravessar o portão-barreira colocado pelos Patriarcas. Para conseguir a coisa maravilhosa chamada iluminação, deve-se olhar para a fonte de seus pensamentos, e por este meio exterminá-los. Se não conseguem atravessar a barreira, isto é, impedir o surgimento de pensamentos, vocês são como um fantasma, aderente às árvores e à grama.

Qual é então esta barreira colocada pelos Patriarcas? É o Mu, a barreira única do ensinamento supremo. Afinal é uma barreira que não é barreira. Alguém que a atravessou não somente poderá ver Joshu face a face, como pode andar de mãos dadas com toda a fileira dos Patriarcas. Na verdade, pode, de pé, sobrancelha contra sobrancelha, escutar com os mesmos ouvidos e ver com os mesmos olhos.

Que maravilha! Quem não desejaria ultrapassar esta barreira? Para isto vocês precisarão se concentrar dia e noite, questionando-se sobre cada um dos seus 360 ossos e 84.000 poros. Não interpretem o Mu como o Nada e não o concebam em termos de existência ou não existência. Vocês deverão atingir o ponto em que experimentam como se tivessem engolido uma bola de ferro incandescente que não podem expelir apesar de todo o esforço. Quando tiverem dissolvido toda ilusão e amadurecido para a pureza, depois de muitos anos, a ponto de ser por dentro e por fora como um, vocês saborearão profundamente seu sublime estado da mente mas, como um mundo que teve um sonho, e serão incapazes de falar dele.

Uma vez que irromperem na iluminação, surpreenderão os céus e moverão a terra. Como se tivessem capturado a espada afiada do General Kuan, vocês serão capazes de matar Buda se o encontrarem (e ele os impedir) e de executar todos os Patriarcas que encontrarem (se eles puserem obstáculos a vocês). Livres (de todo cativeiro) do nascimento e da morte, vocês serão capazes de mover-se por todos os Seis Domínios da Existência e pelos Quatro Modos de nascimento num samadhi de inocente gozo.

Como, então, concentrar-se no Mu? Devotem-se a isto energicamente e com todo o coração. Se continuarem assim, sem interrupção, sua mente, como uma luz acesa no escuro, de repente ficará iluminada. É realmente maravilhoso!

O Verso de Mumon:

Um cachorro, natureza-Buda!
Esta é a apresentação do todo, o absoluto imperativo!
Uma vez que começar a pensar “tem” ou “não tem”
Sua (unidade com) a vida será perdida.

O protagonista deste koan é Joshu, um famoso chinês mestre Zen. Penso que seria melhor referir-se a ele como o Patriarca Joshu. Omitirei o relato dos fatos da vida de Joshu. É suficiente dizer-lhes, como todos vocês sabem, que ele era um grande Patriarca Zen. Como existem muitos koans centrados à sua volta, sem nenhuma dúvida é este o melhor dentre os mais conhecidos, O mestre Mumon trabalhou zelosamente nele durante seis anos e finalmente chegou à Autopercepção. Evidentemente, causou-lhe uma profunda impressão, pois o colocou como o primeiro na coleção dos seus quarenta e oito koans. Na realidade não há um motivo especial que explique por que este koan devesse ficar no primeiro lugar — qualquer um dos outros poderia encabeçar a lista tão bem quanto ele — mas Mumon apreciou-o tão profundamente que naturalmente o colocou logo no início.

Na primeira linha lê-se: “Um monge com toda a seriedade perguntou a Joshu”. Isto é, sua pergunta não foi nem frívola nem casual, mas profundamente considerada.

A outra parte: “Um cachorro tem natureza-Buda ou não?” suscita a pergunta: O que é natureza-Buda? Uma passagem muito conhecida no sutra Nirvana declara que todo ser dotado de sensação tem natureza-Buda.

A expressão “todo ser dotado de sensação” significa toda a existência. Não somente os seres humanos, mas animais, até mesmo plantas, são seres dotados de sensação. Portanto um cachorro, um macaco, uma libélula, um verme também têm natureza-Buda de acordo com o sutra do Nirvana. No contexto deste koan, entretanto, pode-se considerar o termo como se referindo apenas aos animais.

O que é, então, a natureza-Buda? Em poucas palavras, a natureza de todas as coisas é tal que se pode transformar em Buda. Agora, alguns de vocês, pensando que existe algo chamado a natureza-Buda, escondida dentro de nós, poderão perguntar mais ou menos em que lugar fica esta natureza–Buda. Podem tender a identifica-la com a consciência, que todos, mesmos os mais perversos, possuem, como se presume. Vocês nunca compreenderão a verdade da natureza-Buda enquanto ancorarem em pontos de vista tão capciosos. O Patriarca Dogen interpretou esta expressão do sutra Nirvana, como significando que aquilo que é intrínseco a todos os seres dotados de sensação é a natureza-Buda, e não que todo ser dotado de sensação tenha algo chamado de a natureza-Buda. Portanto, na visão de Dogen só existe natureza-Buda e nada mais.

No budismo a “natureza-Buda” é uma expressão particular e a “natureza-Dharma” é uma expressão impessoal. Mas, quer digamos natureza-Buda ou Dharma, a substância é a mesma. Aquele que se torna iluminado pelo Dharma é um Buda, portanto o Buda surge do Dharma. O sutra do Diamante diz que todos os Budas e suas iluminações fluem do Dharma. O Dharma, conseqüentemente, é a mãe do ser Buda. Na verdade não existe nem mãe nem filho, pois, como disse, é a mesma coisa, quer se diga Buda ou Dharma.

O que é o Dharma da natureza-Dharma? Dharma significa (também) fenômeno. [Mas Dharma é principalmente o ensinamento de Budha]

O que de ordinário chamamos de fenômeno — isto é, o que é evidente aos sentidos — no budismo se chama Dharma. A palavra “fenômeno” visto relacionar-se somente com as características observáveis, sem incluir aquilo que determina sua evidência, tem uma conotação limitada. Esses fenômenos chamam-se Dharma (ou Lei) simplesmente porque não aparecem por acaso nem pela vontade de um agente especial que superintende o universo. Todos os fenômenos são resultados da lei da causa e do efeito. Surgem quando as causas e condições que as governam amadurecem. Quando uma destas causas ou condições fica alterada, estes fenômenos mudam conseqüentemente. Quando a combinação das causas e condições se desintegram completamente a forma em si desaparece. Toda existência sendo expressão da lei da causa e do efeito, todos os fenômenos são do mesmo modo essa lei, esse Dharma. Ora, como há uma multiplicidade de modos de existir, assim são múltiplos os dharmas correspondentes a estas existências. A substância desses dharmas multiformes chamamos natureza-Dharma. Quer digamos natureza-Dharma ou usemos o termo mais pessoall natureza-Buda, estas expressões referem-se à mesma realidade. Apresentado de modo diferente, todos os fenômenos são transformações de Buda — ou da natureza-Dharma. Todas as coisas, por causa de sua própria natureza, estão sujeitas ao processo da infinita transformação — é isto seu Buda — ou sua natureza-Dharma.

Qual é a substância deste Buda ou natureza-Dharma? No budismo se chama Ku (shunyata, Vazio).

Ora, o Ku não é apenas o esvaziamento. É aquilo que está vivendo, dinâmico, carente de volume, não fixo, para além da individualidade ou da personalidade — a matriz de todo fenômeno. Temos aqui o princípio fundamental ou a doutrina ou a filosofia budista.

Para Buda Shakyamuni, isto não era uma mera teoria, mas a verdade que ele diretamente concebeu. Com a experiência da iluminação, que é a fonte de toda doutrina budista, vocês percebem o mundo de Ku. Este mundo — não fixo, carente de volume, para além da realidade ou da personalidade — existe fora do domínio da imaginação. De acordo com isto, a verdadeira substância das coisas, isto é, sua natureza-Buda ou Dharma, é inconcebível e inescrutável. Uma vez que tudo imaginável compartilha da forma ou da cor, seja o que for que se imagine será natureza-Buda, deverá necessariamente ser irreal. Certamente, aquilo que pode ser concebido é apenas uma figura da natureza-Buda não a natureza-Buda em si mesma. Mas, ainda que a natureza-Buda esteja além de qualquer concepção e imaginação, porque todos nós somos intrinsecamente natureza-Buda, é possível a nós despertar para ela. Somente através da experiência da iluminação, porém, podemos firmá-la no coração. A iluminação é, portanto o Tudo.

Quando vocês passarem a perceber o mundo de Ku, prontamente compreenderão a natureza do mundo fenomenal e cessarão de aderir a ele. O que vemos é ilusório e sem substância, como os fantoches grotescos num filme. Vocês têm medo de morrer? Não precisam tê-lo. Pois, quer sejam mortos ou faleçam naturalmente, a morte não tem substancialmente nada mais além dos movimentos daqueles fantoches. Usando outras palavras, ela não é mais real do que cortar o ar com uma faca, ou arrebentar bolhas de sabão que reaparecem sempre, não importa quantas vezes são arrebentadas.

Uma vez que percebemos o mundo da natureza-Buda, somos indiferentes à morte, pois sabemos que renasceremos através da união de um pai com uma mãe. Renascemos quando nossas relações cármicas nos impelem a isto. Morremos quando nossas relações cármicas decretam que morreremos. Somos mortos quando nossas relações cármicas nos levam a ser mortos. Somos a manifestação de nossas relações cármicas em qualquer momento dado, e quando elas se modificam nós também conseqüentemente mudamos, O que chamamos de vida não é nada mais do que uma seqüência de transformações. Se não mudamos, é porque estamos mortos. Se nós crescemos e envelhecemos é porque estamos vivos. A evidência de que vivemos é o fato de morrermos porque estamos vivos. Viver significa nascer e morrer. Criação e destruição significam vida.

Quando vocês acreditarem verdadeiramente neste princípio fundamental, não ficarão preocupados com sua vida ou sua morte; terão conquistado uma mente inabalável e serão felizes na sua vida quotidiana. Mesmo que o céu e a terra virassem de cabeça para baixo, vocês não teriam medo. E se uma bomba atômica ou de hidrogênio explodisse, não estremeceriam de pavor. Na medida em que vocês se tornam um com a bomba, que motivo teriam para medo?

“Impossível!”, dirão. Quisessem ou não, vocês forçosamente se tornariam um com ela, não é verdade? Do mesmo modo, se fossem apanhados num holocausto, inevitavelmente seriam queimados. Por conseguinte, tornem-se um com o fogo quando não há possibilidade de escapar! Se caírem na pobreza, vivam desta forma sem murmuração e então a pobreza não será um fardo para vocês. Igualmente, se forem ricos, vivam com suas riquezas, tudo isto é o funcionamento da natureza Buda. Resumindo, a natureza-Buda tem a qualidade de ser infinitamente adaptável.

Voltando ao koan, devemos abordar a pergunta: “Um cachorro tem a natureza-Buda ou não?” com precaução, uma vez que não sabemos se o monge é ignorante ou está simulando ignorância a fim de experimentar a Joshu. Quer Joshu responda “tem” ou “não tem”, será abatido. Vocês vêem por quê? Porque o que está envolvido não é questão de “ter” ou “não ter”. Sendo tudo natureza-Buda, qualquer uma das duas respostas seria absurda. Mas isto é um “combate do Dharma”. Joshu deve se desviar do golpe. Ele assim o faz retorquindo repentinamente: “MU!”.

Aqui termina o diálogo.

Em outras versões do mesmo koan, o monge continua perguntando:

“Por que o cachorro não tem uma natureza-Buda, quando o sutra do Nirvana diz que todos os seres dotados de sensação a têm?14. Joshu rebateu com: “Tem seu karma próprio”. Isto significa que a natureza-Buda do cachorro não é diferente do karma. Os atos realizados com uma mente iludida produzem resultados dolorosos. Isto é um karma. Em palavras mais claras, um cachorro é um cachorro como resultado do seu karma passado que o condiciona a ser cachorro. É o funcionamento da natureza-Buda Portanto não falem como se houvesse uma coisa particular chamada “natureza-Buda”. É isto o que se deduz do Mu de Joshu. É claro, então, que o Mu nada tem que ver com a existência ou não existência da natureza-Buda, mas é ele mesmo a natureza-Buda. A resposta “MU!” expõe e ao mesmo tempo projeta inteiramente diante de nós a natureza-Buda. Agora, ainda que vocês sejam totalmente incapazes de compreender o que estou dizendo, não se extraviarão se interpretarem a natureza-Buda desta forma.

A natureza-Buda não pode ser compreendida pelo intelecto. Para experimentá-la diretamente deverão explorar suas mentes com a maior devoção até que estejam absolutamente convencidos de sua existência, pois afinal de contas, são vocês mesmo esta natureza-Buda. Quando lhes disse antes que a, natureza-Buda era Ku — impessoal, destituída de volume, não fixa, e capaz de infinitas transformações, apenas lhes apresentei uma figura dela. É possível pensar na natureza-Buda nestes termos, mas vocês deverão compreender quer seja o que for o que pensem ou imaginem, será necessariamente irreal. Portanto, não há outro meio senão experimentar a verdade em sua própria mente. Este caminho foi mostrado com a maior delicadeza por Mumon.

Consideremos agora o comentário de Mumon. Ele começa dizendo:

“Na prática do zazen…”O zazen, recebendo o dokusan (isto é, as instruções em particular), ouvindo o teisho — todas estas são práticas do Zen. Ficar atento aos detalhes da vida cotidiana é também treinamento do Zen.

Quando sua vida e o Zen forem uma só coisa, vocês estarão verdadeiramente vivendo o Zen. A não ser que concorde com suas atividades cotidianas, o Zen é apenas um ornamento. Devem ter cuidado de não ostentarem o Zen, mas fundi-lo despretensiosamente com sua vida. Para dar um exemplo concreto de atenção: quando vocês tiram as sandálias no pórtico ou na cozinha ou deixam os chinelos antes de entrar no banheiro, devem ter o cuidado de deixá-los bem arrumados, de modo que a próxima pessoa possa usá-los prontamente, mesmo que seja no escuro. Tal presença de espírito é uma demonstração prática do Zen. Se vocês põem suas sandálias ou sapatos distraidamente, não estão atentos. Quando andam, devem dar os passos prestando atenção para não tropeçarem nem caírem. Não sejam negligentes!

Mas estou fazendo uma digressão. Para continuar: “… vocês devem atravessar o portão-barreira colocado pelos Patriarcas”. O Mu é exatamente esta tal barreira, já lhes mostrei, de início, não existe barreira alguma. Sendo tudo natureza-Buda, não existe portão através do qual se entra ou sai. Mas, a fim de nos despertar para a verdade de que tudo é natureza-Buda, os Patriarcas com relutância colocaram barreiras e nos incitaram a atravessá-las. Condenam nossa prática defeituosa e rejeitam nossas respostas incompletas. À medida que se vai crescendo em sinceridade, um dia repentinamente chegar-se-á à Autopercepção. Quando isto acontecer vocês serão capazes de atravessar facilmente o portão-barreira.

O Mumonkan é um livro que contém quarenta e oito dessas barreiras. A linha seguinte começa:

“Para que se realize esta coisa extraordinária chamada iluminação… Notem a palavra extraordinária”. Porque a iluminação é inexplicável e inconcebível, é descrita como extraordinária. “… vocês devem olhar no interior, na própria fonte de seus pensamentos e assim exterminá-los”. Isto significa que é inútil abordar o Zen do ponto de vista lógico ou da hipótese. Vocês nunca chegarão à iluminação através da inferência, cognição ou conceptualização. Deixem de se apegar a todas as formas de pensamento! Saliento isto porque é o ponto central da prática Zen. E em particular, não cometam o erro de pensar que iluminação deve ser isto ou aquilo.

“Se não puderem atravessar a barreira, isto é, eliminar o surgimento de pensamentos, vocês são como um fantasma, apegando-se às árvores, e à grama”.

Os fantasmas não aparecem abertamente em dia claro, mas diz-se que chegam furtivamente depois que está escuro, abraçando a terra e colando-se aos salgueiros. Eles dependem desses suportes para existirem. De certa forma as pessoas humanas são também como os fantasmas, porque a maioria de nós não pode atuar independentemente do dinheiro, do “status” social da honra, do companheirismo, e da autoridade; ou então sentimos necessidade de nos identificarmos com uma organização ou uma ideologia. Se vocês fossem verdadeiramente homens de valor e não fantasmas, deveriam ser capazes de andar eretos por vocês mesmos, não dependendo de coisa alguma. Quando vocês acolhem conceitos filosóficos ou crenças religiosas ou idéias ou teorias de uma espécie ou de outra, vocês também são fantasmas, porque inevitavelmente ficam escravos delas. Só quando sua mente estiver vazia de tais abstrações vocês serão verdadeiramente livres e independentes.

Lê-se nas duas frases seguintes: “Quais são então estas barreiras colocadas pelos Patriarcas? É o Mu, a única barreira do ensinamento supremo”. O supremo ensinamento não é um sistema de moral, mas é o que está na raiz de todos estes sistemas, principalmente no Zen. Somente aquilo que é de imaculada pureza, livre de superstições ou do sobrenatural, poderá ser chamado raiz de todos os ensinamentos e, portanto supremo. No budismo, o Zen é o único ensinamento que não é num ou noutro grau contaminado por elementos do sobrenatural — assim somente o Zen poderá ser chamado o supremo ensinamento e Mu é a única barreira deste supremo ensinamento. Vocês poderão compreender “única barreira” como a barreira sozinha ou uma dentre muitas. No final, não há barreiras. “Aquele que atravessá-la não só verá Joshu face a face…) uma vez que vivemos numa nova era, naturalmente não podemos ver fisicamente Joshu. “Ver Joshu face a face” significa compreender sua Mente…) poderá andar de mãos dadas com toda a linha dos Patriarcas”. A linha dos Patriarcas começa com Mahakashyapa que sucedeu a Buda, e vai até Bodhidharma, o vigésimo oitavo, e continua até os presentes dias. “…sobrancelha com sobrancelha…” é a figura de retórica que exprime uma grande intimidade… “… ouvindo com os mesmos ouvidos e vendo com os mesmos olhos” conota a habilidade de olhar as coisas no mesmo ponto de vista que Buda e Bodhidarma. Implica, naturalmente, em que eu já tenha compreendido com clareza o mundo da iluminação.

“Que extraordinário!” Verdadeiramente maravilhoso! Somente os que reconhecem a sublimidade de Buda, o Dharma e os Patriarcas podem apreciar tal exclamação. Sim, como é verdadeiramente maravilhoso! Aqueles que não se importam com Buda e com o Dharma poderão sentir tudo, menos maravilhar-se, mas nada podem fazer.

“Quem não desejaria atravessar a barreira? — Esta frase deseja estimulá-los na busca da verdade dentro de vocês mesmos. “Para isto deverão concentrar-se dia e noite, questionando-se sobre o Mu, sobre cada um dos seus trezentos e sessenta ossos e oitenta e quatro mil poros”.

Estas figuras refletem o pensamento dos anciãos que julgavam que o corpo era formado desta maneira. De qualquer modo, isto remete-os ao seu corpo inteiro. Deixem-se ser, por inteiro, um montão de dúvidas e questionamentos. Concentrem e penetrem totalmente no Mu. Penetrar no Mu significa conseguir a absoluta unidade com ele. Como poderão alcançar esta unidade? Guardando o Mu tenazmente dia e noite! Não se separem dele em circunstância alguma! Focalizem suas Mentes constantemente nele. “Não interpretem o Mu como um nada e não o concebam em termos de existência ou não existência”. Não devem, noutras palavras, pensar no Mu como um problema que envolve a existência ou não existência da natureza-Buda. Então, que farão vocês? Parem de especular e concentrem-se totalmente no Mu — sómente no Mu!

Não percam tempo, pratiquem com toda a sua energia. (“Precisam atingir o ponto em que experimentam) como se tivessem engolido uma bola de ferro incandescente. “É uma hipérbole, naturalmente, falar-se de engolir uma bola de ferro incandescente. Entretanto, muitas vezes acontece que descuidadamente engulamos um bolo de arroz quente, que se localiza na garganta causando um desconforto terrível. Logo que engolirem o Mu, da mesma forma sentirão um desconforto intenso, irão desesperadamente tentar desalojá-lo, “… e não vão poder vomitá-lo apesar de todo o esforço que fizerem” — assim descreve o estado daqueles que trabalham neste koan. Porque a Autopercepção é uma perspectiva tão torturante que não se pode abandonar; nem se pode perceber prontamente o significado do Mu. Então não há outro caminho para eles senão o de se concentrarem no Mu até que “seus rostos fiquem azuis”.

A comparação com a bola de ferro incandescente é adequada. Vocês devem fundir suas ilusões na bola de ferro incandescente do Mu, presa nas suas gargantas. As opiniões que conservam e seus conhecimentos mundanos são suas ilusões. Também estão incluídos aí os conceitos morais e filosóficos, não importando quão sublimes sejam eles, assim como as crenças religiosas e os dogmas, para não mencionar os pensamentos inocentes corriqueiros. Em poucas palavras, todas as idéias concebíveis estão incluídas dentro deste termo “ilusões” e como tal são obstáculos à realização de sua natureza-Essencial. Então, dissolvam-nas com a bola de fogo do Mu!

Não devem praticar irregularmente. Nunca serão bem sucedidos se fizerem o zazen somente conforme o capricho e o abandonarem facilmente. Devem levar avante com constância por um, dois, três e mesmo cinco anos sem interrupção, constantemente vigilantes. Assim gradualmente irão progredindo na pureza. No princípio não serão capazes de entrar sinceramente no Mu. Escaparão com rapidez porque suas mentes começarão a divagar. Terão de se concentrar ainda mais — somente “Mu! Mu! Mu!” Novamente evadir-se-ão. Mais uma vez tentarão focalizar nele e serão ainda frustrados. É este o padrão comum nos primeiros estágios da prática. Mesmo quando o Mu não escapole, sua concentração se interrompe por causa das várias contaminações da mente. Estas máculas desaparecem com o tempo, mas enquanto não tiverem conquistado a unidade com o Mu, vocês estão longe da maturidade. A absoluta unidade com o Mu, a absorção impensada no Mu — isto é madureza.

Atingindo este estágio de pureza, tanto o seu interior como o exterior naturalmente se fundem. “O interior e o exterior” têm diversos coloridos no seu sentido. Poderão ser compreendidos como exprimindo a subjetividade e a objetividade, ou a mente e o corpo. Quando vocês absorvem plenamente a vocês mesmos no Mu, o interior e o exterior mergulham numa mesma unidade. Mas incapazes de falar sobre isto, serão como “um mudo que teve um sonho”. Um mudo não é capaz de falar sobre seu sonho da noite anterior. Da mesma forma vocês saborearão o gosto do samadhi cada um consigo mesmo, mas serão incapazes de falar a outros sobre isto.

Neste estágio a Autopercepção virá abruptamente. Instantaneamente! “Irromper a iluminação” é só questão de um instante. É como se ocorresse uma explosão. Quando acontece isto, vocês experimentam muita coisa! “Surpreenderão os céus e moverão a terra”. Tudo parecerá tão mudado que pensarão que o céu e a terra sofreram uma reviravolta. Naturalmente, nada desaba no sentido literal da palavra.

Com a iluminação verão o mundo como natureza-Buda, o que não significa que tudo se torna irradiante como uma auréola. Antes, cada coisa exatamente como é passa a ter um sentido e um valor completamente novos. Miraculosamente, tudo é radicalmente transformado, embora permanecendo como é.

É assim que Mumon o descreve:

“É como se você tivesse capturado uma longa espada do General Kuan”. O General Kuan foi um corajoso militar, invencível no combate com sua espada do “dragão azul”. Portanto, Mumon diz que vocês se tomarão tão poderosos quanto aquele que conseguir apossar-se da espada do “dragão azul” do General Kuan. O que significa que coisa alguma desfavorável poderá lhes acontecer. Pela Autopercepção adquire-se uma confiança em si mesmo e uma paciência eminentes. Quando alguém se coloca diante do roshi suas maneiras significam: “Prove-me como quiser”, e é tal sua segurança que poderia sobrepujar o Mestre.

”… seriam capazes de matar Buda se o encontrassem e de se desfazerem de todos os Patriarcas se com eles estivessem”.

Os tímidos ficarão espantados quando escutarem isto e denunciarão o Zen como um instrumento do demônio. Outros, menos exigentes, porém, igualmente incapazes de compreender o espírito destas palavras sentir-se-ão pouco à vontade. Seguramente, o budismo nos inspira o maior respeito por todos os Budas. Mas, ao mesmo tempo, nos adverte de que eventualmente será preciso nos libertarmos do apego a eles. Quando experimentamos a mente de Buda Shakyamuni e cultivamos suas virtudes incomparáveis, realizamos os objetivos mais altos do budismo. Então nos despedimos dele, assumindo a tarefa de propagar seus ensinamentos. Eu nunca ouvi falar de tal atitude na religião que ensina a crer em Deus. Embora o objetivo do budismo seja realizar Buda, mesmo assim, para dizê-lo rudemente, vocês podem matar Buda e todos os Patriarcas. Vocês que realizam a iluminação serão capazes de dizer: “Se aparecessem o glorioso Shakyamuni e o grande Bodhidharma, eu os mataria imediatamente, perguntando: “Por que vocês vêm abalar-me? Não preciso mais de vocês! “Tal será a sua coragem.

“Livre dos grilhões do nascimento e da morte, serão capazes de mover-se pelos Seis Domínios da Existência e pelos Quatro Modos de Nascimento num samadhi de inconsciente deleite. “Vocês serão capazes de encarar a morte e o renascimento sem ansiedade. Os Seis Domínios são os reinos de maya, isto é, do inferno, do mundo dos pretas (dos fantasmas esfomeados), das feras, dos asuras (demônios lutadores), dos seres humanos e dos devas (seres celestes). Os Quatro Modos de Nascimento são nascimento através do útero, nascimento através do ovo chocado fora do corpo, nascimento através da humidade e nascimento através da metamorfose. Nascer no céu ou no inferno, uma vez que não exige progenitores físicos, é nascimento por metamorfose. Quem já ouviu falar de um ser celeste que tivesse de se submeter ao trauma do nascimento? Não há parteiros ou obstetras no céu ou no inferno.

Onde quer que vocês possam nascer, e seja de que forma for, serão capazes de viver com a espontaneidade e a alegria de uma criança brincando — é isto o que significa “samadhi de inocente deleite”.

Samadhi é completa absorção. Desde que estiverem iluminados, vocês poderão descer ao mais fundo dos infernos ou subir ao mais aÍto dos céus com liberdade e arrebatamento.

“Como então se concentrar no MU?” Através do zazen. “Devotem-se a isto energicamente e com toda a sinceridade”. Perseverem com toda a força do seu corpo e espírito. “Se continuarem assim sem interrupção… Não se pode começar e depois abandonar. Deve-se levar avante até o extremo fim, como uma galinha chocando seus ovos até que saiam da casca.

Devem-se concentrar no Mu resolutamente, com firme determinação de não o abandonar, até obterem o kensho. [iluminação]

“… sua mente, como uma lâmpada que se acende na escuridão, de repente ficará iluminada. Que coisa extraordinária!” repete-se, pois nada poderia ser mais extraordinário.

Na primeira linha do verso de Mumon lê-se: “Um cachorro, natureza-Buda”. — Não há necessidade da “natureza”. “Um cachorro é Buda” — o “é” é supérfluo. “Um cachorro, Buda!” Você fala demais quando diz “Um cachorro é Buda”. “Cachorro!” — basta isto. É completamente Buda.

“Isto é o… todo, o imperativo absoluto!” Isto significa que é o autêntico decreto de Buda Shakyamuri — é o Dharma correto. Vocês são este Dharma para a perfeição! Não está sendo concedido de má vontade — está sendo plenamente revelado!

Uma vez que começam a pensar “tem” ou “não tem” suas vidas estarão perdidas. O que é que “suas vidas estarão perdidas” significa? Simplesmente que sua preciosa vida de Buda (de unidade) desaparecerá. 



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