Qual a perspectiva de gênero segundo o budismo?
Quando Mahaprajapati pediu a Xaquiamuni Buda para se tornar monja, Ele recusou. Recusou varias vezes, alegando que mulheres não deveriam abandonar as famílias para entrar na ordem religiosa e viver de esmolas. Finalmente, depois de muita insistência e da solicitação do atendente de Xaquiamuni Buda, o monge Ananda, as mulheres foram admitidas na Ordem, desde que aceitassem oito regras a mais do que os homens. Entre essas oito regras a de submissão a qualquer monge – mesmo uma monja de 100 anos deveria obedecer a um recém ordenado bhikhu (monge).
Como é isto entendido hoje pelos Budistas?
Primeiro é necessario que compreendamos a sociedade da Índia daquela época. As mulheres eram consideradas objetos de prazer, sexualidade e reprodução. Eram, em sua grande maioria, analfabetas e sofriam grande discriminação preconceituosa, a ponto de se recomendar aos homens que as tocassem apenas com a mão impura – a mão esquerda, usada para as pessoas se limparem depois de evacuar. Mulheres eram consideradas impuras, cheias de arrogância, de ciúmes e causadoras da luxúria e de desejos no sexo oposto. Para os monges recomendava-se que fossem evitadas de todas as formas, pois seriam fontes de perversidade e afastamento do verdadeiro e do sagrado.
Entretanto, quando Xaquiamuni Buda foi fazer uma palestra sobre a Verdade, Ele encontrou na entrada da casa para onde se dirigia, sua mãe adotiva, Mahaprajapati, cercada de outras mulheres, que como ela pediam permissão para entrar na ordem religiosa que ele fundara. Mahaprajapati estava cansada, pés sangrando, suja. Ananda, o atendente de Buda, se apiedando comprometeu-se a interceder junto ao seu professor.
Como sempre, Xaquaimuni Buda fez uma palestra dizendo que todos os seres igualmente podem realizar o estado iluminado desde que pratiquem o Caminho Correto, tornando-se assim o próprio Caminho. Ananda, nesse momento, interferiu perguntando:
– Mais Venerável, todos os seres, sem exceção?
Buda responde:
– Sim, Ananda
– Então, por que o Mais Venerável do Mundo não concede a ordenação monástica a Mahaprajapati e seu grupo de mulheres?
O Buda histórico pareceu então perceber a discriminação, o preconceito que Ele mesmo carregava e as aceita na Ordem, desde que obedecessem oito regras especiais.
Elas aceitam e é o inicio da comunidade monástica feminina. Entretanto, esta comunidade está sempre subordinada à comunidade masculina da qual depende e serve. Em alguns paises budistas da Ásia, como a Tailândia, às mulheres não é permitido o uso do manto monástico colorido, sendo elas apenas aceitas como noviças entre leigas e monásticas, vestidas de branco, que renunciam ao mundo, sem entretanto se tornarem monjas completas. Conheci há alguns anos uma idosa monja na Tailândia, que se auto-ordenara monja e se permitia vestir com o manto açafrão dos renunciantes budistas. Entretanto, a maioria mantinha-se apenas de branco e consideram a discriminação que sofriam como o Caminho do Bodisatva, de aceitar posições inferiores para o bem de todos os seres. Tivemos um Encontro Budista Feminino e muitas das monjas e leigas participantes de outros países insistiram para que elas exigissem direitos iguais, o que as fez pensar.
Na Coréia, na China e no Japão as monjas recebem a mesma ordenacão dos monges e podem oficiar as mesmas cerimônias. Entretanto, a situação das mulheres na sociedade também se faz refletir na situacao das monjas na comunidade budista. Geralmente os templos liderados por monjas são menores e submetidos a templos maiores e mais poderosos liderados por monges. Algumas monjas se orgulham de não participar nas questões políticas das instituições, enquanto outras se sentem excluídas e gostariam de ter igualdade de direitos.
Quando eu praticava no Japão conheci uma monja especial que, após a segunda guerra mundial, viajou por todo o país, solicitando igualdade de direitos, ou seja, que as monjas pudessem usar os mantos coloridos da transmissão – a elas só eram permitidos os hábitos negros -, que pudessem oficiar casamentos, enterros, ordenações leigas e ter seus próprios discipulos, o que era permitido apenas aos homens. Kojima Sensei teve sucesso em suas peregrinações, embora fosse muito criticada por outras monjas que achavam que ela deveria se manter quietinha e não se envolver em política. Acredito que hoje em dia todas a agradecem. Ela já faleceu. A Abadessa do Convento de Nagoia, onde pratiquei por oito anos, também tem sido criticada por colegas monjas pela sua exposição pública, seus livros e suas palestras. Entretanto ela diz que como discípula de Buda tem a obrigação de ensinar o Darma. Ela é hoje a primeira e única monja a ter um cargo correspondente a cardeal dentro da estrutura da tradição Soto Zen do Japão.
Conclusão: o Budismo ensina a transcender a mente discriminatória, viver sem preconceitos, entendendo que todos os seres são igualmente iluminados e que esta iluminação se manifesta naqueles que assim a praticam em suas vidas, mas as monjas e as mulheres budistas em geral ainda ocupam papel relativamente secundário nas instituições, mesmo que sejam muito respeitadas e consideradas pelo clero masculino como exemplos de prática verdadeira.
Nos Estados Unidos e na Europa, em grupos formados por monges e monjas locais, a discriminação preconceituosa foi práticamente abolida e temos grandes professoras liderando os maiores centros budistas em vários paises da Europa e vários estados dos EUA.
As liderancas femininas tem características peculiares, como a do se comprometimento com a verdade, a transparência e pureza na prática – sem que isso signifique única ou especialmente voto de castidade, pois o budismo japonês permite o casamento dos monges e das monjas, quer entre si quer com leigos.
Recentemente me contaram que certa ocasião o Dalailama, líder religioso e político do Tibet, em exílio na Índia há mais de 50 anos, pediu a uma monja de sua tradição que liderasse a meditação. Ela, depois que todos se sentaram, começou a falar que gostaria que todos os participantes imaginassem que as imagens de Buda fossem todas femininas, que Dalailama fosse uma mulher, que os digníssimos e veneráveis monjes superiores que o cercam fossem mulheres e que, ao contrário do que estava acontecendo, fossem servidas por homens. Ela continuou contando dos problemas das monjas, das discriminações, da falta de oportunidades de estudo e desenvolvimento. Ao terminar, o Dalailama chorava e pedia perdão. Nunca se conscientizara do problema e se comprometeu a trabalhar para a transformação da posição das mulheres dentro do budismo tibetano.
Eu espero que os ensinamentos do Professor Fundador Xaquiamuni Buda possam ser completamente clarificados e utilizados em nossas vidas, sem distinções de gênero – seres iluminados sendo respeitados e honrados quer sejam homens ou mulheres, quer sejam jovens ou idosos, seja qual for sua nacionalidade, etnia, cor de pele, status social e econômico e assim por diante. Um mundo sem discriminações preconceituosas, com sociedades pacificas e harmoniosas.
- Extraído do site www.monjacoen.com.br