Iniciando a prática zen


Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro”Sempre Zen

Minha cadela não se preocupa com o significado da vida. Ela pode se preocupar em receber ou não a refeição pela manhã, mas não se senta preocupada em conseguir ou não a realização, a libertação, a iluminação. Desde que receba um pouco de comida e afeto, a vida lhe corre bem. Porém nós, seres humanos, não somos como os cães. Temos mentes centradas em si mesmas que nos remetem a muitos problemas. Se não entendermos o equívoco em nossa forma de pensar, nossa autopercepção, que é nossa maior bênção, torna-se também nossa perdição.

Todos nós acreditamos que, em certa medida, a vida é difícil, intrigante e opressiva. Mesmo quando tudo corre bem, como acontece por certo tempo, preocupamo-nos que ela não se mantenha assim. Dependendo de nossa história pessoal, chegamos à idade adulta tendo muitos sentimentos desencontrados a respeito da vida. Se eu lhes dissesse que sua vida já é perfeita, completa e inteira exatamente do jeito que está, vocês pensariam que estou maluca. Ninguém acredita que sua vida é perfeita. No entanto, existe no íntimo de cada um uma dimensão que sabe que somos ilimitados, infinitos.

Vemo-nos presos à contradição de encontrar a vida em meio a um quebra-cabeça muito desconcertante, capaz de nos causar muitos sofrimentos; ao mesmo tempo, temos uma vaga consciência da natureza ilimitada, infinita da vida. Desta maneira, começamos a procurar uma resposta a esse enigma.

A primeira forma de procurar é buscar soluções fora de nós mesmos. No começo, pode acontecer num nível bastante comum. Existem muitas pessoas no mundo que acreditam que se tivessem um carro maior, uma casa mais bonita, férias melhores, um patrão mais compreensivo, ou um parceiro mais interessante, suas vidas seriam muito melhores. Não há quem não pense assim. Lentamente, vamos descartando os "se ao menos", essas coisas que nos fariam viver melhor. "Se ao menos eu tivesse isto, isso ou aquilo, então minha vida seria outra". Na prática, todos estão com alguns desses "se ao menos", na cabeça em algum momento, contudo aos poucos essas idéias vão se desgastando. Primeiro, as mais grosseiras. Depois nossa busca dirige-se a níveis mais sutis.

Por fim, na procura pelo elemento externo a nós mesmos que, em nossa expectativa, irá nos completar, voltamo-nos para uma disciplina espiritual. Infelizmente, nossa tendência é considerar com a perspectiva anterior essa nova possibilidade. Muitas das pessoas que buscam o Zen Center não crêem que a resposta esteja num Cadillac mais novo, mas em alcançar a iluminação. Conseguiram um novo recurso, um novo se ao menos." "Se ao menos eu tivesse condição de entender do que se trata a compreensão, seria feliz". "Se ao menos eu tivesse uma pequena experiência de iluminação, seria feliz." Ao iniciarmos uma prática como o zen, trazemos nossas noções habituais de estar chegando em algum lugar, de alcançar alguma coisa — no caso, a iluminação podendo a partir de então comer todos os docinhos que antes nos tinham sido proibidos.

Toda a nossa vida consiste neste pequeno indivíduo, olhando à sua volta em busca de objetos. No entanto, se você olha algo que é limitado — como o são o corpo e a mente — e procura alguma coisa fora de si, esta coisa torna-se um objeto e também deve ser limitado. Assim, existe alguma coisa limitada procurando algo limitado e, no final, só fica maior aquela velha loucura que o vem tornando uma pessoa tão infeliz.

Todos passam anos a fio consolidando uma visão condicionada da vida. Existe o "eu" e existe essa "coisa" aí adiante que ou me fere ou me agrada. Nossa tendência é levar a vida de modo a tentar evitar tudo o que nos magoe ou nos desagrade, reparando nos objetos, nas pessoas ou situações que, a nosso ver, parecem nos proporcionar dor ou prazer; evitaremos uns e perseguiremos outros. Sem exceção, todos nós fazemos isso. Mantemo-nos distantes de nossa vida, olhando-a, analisando-a, julgando-a, buscando respostas para perguntas como "O que ganho com isso? Vou ter prazer ou conforto, ou será preciso que eu fuja?". Fazemos esse questionamento de manhã à noite. Por trás de nossas fachadas agradáveis e amistosas ferve um constrangimento considerável. Se eu pudesse raspar o verniz e ir um pouco mais fundo do que a superfície de qualquer pessoa, encontraria medo, dor e uma ansiedade desvairada. Todos temos métodos para encobrir tais sentimentos. Comemos demais, bebemos demais, trabalhamos demais; assistimos à televisão demais. Estamos sempre fazendo algo para encobrir nossa ansiedade existencial básica. Algumas pessoas vivem dessa forma até o final de seus dias.

Essa situação piora conforme o tempo vai passando. O que talvez não seja tão ruim quando você tem 25 anos parecerá terrível quando chegar aos cinqüenta. Todos conhecemos aquelas pessoas que já morreram e se esqueceram de deitar-se; elas têm uma mentalidade tão contraída em seus pontos de vista limitados, que a convivência é muito penosa tanto para quem está à sua volta como para elas mesmas. A flexibilidade, a alegria e o fluir da vida já se foram. Essa possibilidade tão sombria ameaça a todos nós a menos que acordemos para o fato de ser necessário trabalhar nossa própria vida, praticar.

É preciso que enxerguemos a miragem de que existe um "eu" destacado de um "aquilo". Nossa prática consiste em anular essa distância. Apenas no momento em que nós e os objetos nos tornarmos um, é que poderemos enxergar o que é nossa vida.

A iluminação não é algo que se atinge. É a ausência de alguma coisa. A vida inteira, a pessoa vai atrás de algo, perseguindo suas metas. A iluminação está em deixar tudo isso de lado. Entretanto, falar sobre ela não adianta muito. A prática precisa ser executada por cada um. Não há o que a substitua. Podemos ler a seu respeito durante mil anos e não adiantará de nada para nós. É preciso que todos nós pratiquemos, e temos de fazer com todo nosso empenho pelo resto da vida.

O que de fato queremos é uma vida natural. Nossas vidas são tão artificiais que realizar uma prática como a do zen, no começo, é bastante difícil. Porém, assim que começarmos a vislumbrar que o problema da vida não é algo externo a nós, teremos começado a percorrer o caminho. Quando o despertar se inicia, quando começamos a perceber que a vida pode ser mais aberta e alegre do que até então pensáramos ser possível, queremos praticar.

Entramos numa disciplina como a prática zen para podermos aprender a viver de modo lúcido, O zen tem quase mil anos e seus defeitos já foram corrigidos; embora não seja fácil, não é insano. É sensato e muito prático. Diz respeito à vida cotidiana. Refere-se a trabalhar melhor no escritório, a criar melhor as crianças, e estabelecer relacionamentos melhores. Levar uma vida mais lúcida e satisfatória deve decorrer de uma prática equilibrada e lúcida. O que desejamos fazer é encontrar uma maneira de trabalhar com a insanidade elementar que existe em função de nossa cegueira.

É preciso coragem para se sentar bem, O zen não é uma disciplina para todos. Precisamos estar dispostos a fazer algo que não é fácil. Se o fizermos com paciência e perseverança, com a orientação de um bom instrutor, então, aos poucos, nossa vida irá se aquietar, ficar mais equilibrada. Nossas emoções não serão mais tão dominadoras. Enquanto sentamos, descobrimos que a primeira coisa, a mais elementar, para trabalhar, é nossa mente caótica, ocupada. Estamos todos enredados num pensar frenético e o problema da prática está em começar a trazer esse pensamento para a claridade e o equilíbrio.

Quando a mente fica limpa, clara, equilibrada, e não mais prisioneira dos objetos, então poderá haver uma abertura e, por um instante, nos daremos conta de quem somos, na verdade.
Contudo, sentar não é algo que praticamos durante um ou dois anos com a idéia de dominar a questão. Sentar é algo que praticamos a vida inteira. Não há limites para a abertura possível ao ser humano. Eventualmente percebemos que somos a base ilimitada e incontida do universo. Para o resto da vida, nossa incumbência será abrirmo-nos cada vez mais a essa imensidão e expressá-la.

Quanto maior for nosso contato com essa realidade, mais aumentará nossa, compaixão pelos outros, maiores serão as alterações em nossa vida cotidiana. Viveremos, trabalharemos e nos relacionaremos de modo diferente com as pessoas. O zen é um estudo para a vida toda. Não é só sentar-se numa almofada durante trinta ou quarenta minutos diários. Toda nossa vida torna-se uma prática, vinte e quatro horas por dia.



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