Meditação Mahamudra


Meditação Mahamudra.


de Bokar Rimpoche
Extraído do livro "Meditação – Conselhos ao Principiante"

A INDIZÍVEL MENTE

O mahamudra1 é um termo que designa o modo de ser, a natureza última, de todos os seres.

Qual é, fundamentalmente, essa mente que caracteriza os seres? Está ela no corpo? É ela exterior ao corpo? Ou em algum lugar entre os dois? É ela branca, vermelha ou de uma outra cor? Qual é sua forma? Qual é sua dimensão?

Se examinarmos a mente com atenção, constatamos que ela é vazia por natureza. Não podemos atribuir-lhe nenhuma característica material.

A mente é vazia, ela não é uma coisa. Isso quer dizer que ela não é nada? Também não. A mente não pode ser uma simples vacuidade, um simples nada, visto que, segundo a experiência que temos dela, ela é a base de surgimento dos múltiplos pensamentos da existência condicionada. Dela nascem, do lado negativo, a cólera e as outras emoções conflituosas, assim como, do lado positivo, a fé e a compaixão. Essa produção natural dos pensamentos basta para demonstrar que ela não é apenas vacuidade.

Quando procuramos o modo de ser da mente e nos perguntamos o que ela é, não podemos dar, de fato, nenhuma resposta, não podemos dizer que ela seja algo. Se disso concluímos que ela não é absolutamente nada, devemos também admitir que essa conclusão não é pertinente, pois há sentimentos de felicidade e de sofrimento. A mente não pode ser definida pelas noções de existência e de não-existência.2

Em verdade, se a natureza da mente é indizível, é porque ela é o dharmakaya3 o "Corpo Absoluto". Ora, esse dharmakaya está para além do campo do pensamento ordinário, para além do que podem exprimir as palavras, para além de todo conceito. Entretanto, embora o dharmakaya seja a nossa verdadeira natureza, não o reconhecemos e vagamos no samsara, o ciclo das existências e do sofrimento. Reconhecer o dharmakaya é a função do dharma e mais particularmente da meditação do mahamudra.

 

A FONTE DA PRÁTICA

Na linhagem kagyupa, a prática do mahamudra foi em sua origem revelada pelo Buddha primordial Vajradhara ao grande realizado indiano Tilopa que, tendo atingido a realização última, transmitiu-a a Naropa. De Naropa ela passou à Marpa, o tradutor, depois a Milarepa, em seguida a Gampopa, que a transmitiu a Tusum Khyenpa, o primeiro Karmapa. A tradição foi, em seguida, mantida pela sucessão dos Karmapas, sem interrupção e na íntegra.

Eu mesmo recebi a transmissão da graça do mahamudra de meus lamas-raízes, o décimo sexto Karmapa e Kalu Rimpoche.4

 

UM CORPO COMPLETO

A prática do mahamudra, para ser completa, deve reunir três elementos, que comparamos às partes de um corpo, a ausência de uma ou de outra impedem o conjunto de ser funcional. Dizemos que:


· O não-apego são as pernas do mahamudra;

· A devoção é sua cabeça;

· A meditação é seu tronco ou seu corpo.

Um corpo só é funcional se estiver completo. Um corpo sem cabeça de nada serviria, assim como um corpo sem tronco. Um corpo que teria cabeça e tronco, mas desprovido de pernas também não poderia realizar as atividades de um corpo completo. Um corpo, para preencher plenamente sua função, deve possuir a integridade de seus membros. Da mesma maneira, para que a prática do mahamudra seja efetiva, ela deve ser completa: cabeça, pernas e tronco. Na falta disso, não seria um mahamudra autêntico.

 

AS PERNAS: O NÃO-APEGO

Quando somos apanhados por um fortíssimo apego por esta vida, somos como que impedidos de avançar na via do mahamudra. Eis por que ser livre desse apego constitui as pernas da prática.

Semelhante não-apego procede de uma compreensão da natureza dos fenômenos. No estado de não-realização, todos os fenômenos, os objetos exteriores que são as formas, os sons, os odores, etc., assim como nosso corpo ou as aparências interiores produzidas em nossa mente, tudo é apreendido como dotado de uma existência real e permanente, o que é uma apreensão errônea.

É preciso, ao contrário, tomar consciência do fato segundo o qual os fenômenos exteriores que nossos sentidos percebem, longe de serem dotados dessa permanência que nós lhes atribuímos, são transitórios: modificam-se a cada instante. Nosso corpo e nossa mente são submetidos ao mesmo processo de modificação constante.

Tomemos como exemplo a casa na qual nos encontramos. Aparentemente, é a mesma de ontem, a mesma do ano passado. Parece que nada mudou. É apenas uma falsa aparência. No nível imperceptível das moléculas constitutivas do edifício produz-se uma mudança contínua, de modo que ele nunca permanece semelhante a ele mesmo. Uma casa nova não continua a ser nova em razão dessa constante modificação. Esta mudança rege seu envelhecimento e assegura que surja inelutavelmente um dia em que ela não será mais do que uma ruína e, por fim, desapareça completamente. Isso vale para todas as coisas, inclusive aquelas que nos parecem as mais duradouras, como as montanhas ou os rochedos. Tudo é impermanente.

Nosso corpo e nossa mente não escapam a essa regra. Considero, por exemplo, que hoje sou Bokar Tulku, que ontem fui Bokar Tulku, que no ano passado também fui Bokar Tulku. Eu teria, então, tendência a pensar que sou sempre o mesmo Bokar Tulku. Todavia, meu corpo modifica-se a cada instante, assim como minha mente,5 que já não é agora o que foi outrora.

A essa compreensão da impermanência deve acrescentar-se a tomada de consciência do sofrimento próprio ao ciclo das existências. Ainda que levemos em consideração tão somente os seres que povoam a terra, podemos constatar o número de sofrimentos contínuos que os afligem, tanto físicos quanto interiores. Acontece, as vezes, que parecemos felizes e que nenhum sofrimento é visível; porém, não é uma verdadeira felicidade, pois não é definitiva e se transformará em sofriniento mais cedo ou mais tarde. Mesmo um estado neutro, sem sofrimento nem felicidade, pela opaciclade mental que ele implica, também provocará um sofriniento. Diz-se que existem três tipos de sofrimentos: o sofrimento doloroso, o sofrimento da mudança e o sofrimento inerente a tudo o que é composto. Desse modo, nenhum ser do samsara conhece um estado de felicidade autêntica.

A partir do momento em que compreendemos que todos os fenômenos exteriores e interiores são impermanentes, que são todos maculados pelo sofrimento e que o samsara é desprovido de interesse, nosso apego as aparências desta vida diminui. Então, voltamo-nos para os métodos de libertação que permitem atingir o estado de Buddha.

 

A CABEÇA: A DEVOÇÃO

A devoção é considerada como a cabeça da prática do mahamudra. Essa devoção tem por objeto todos os lamas da linhagem de transmissão e, mais particularmente, aquele denominado “lama-raiz”, quer dizer, o mestre que nos introduz diretamente à natureza de nossa própria mente.

A devoção é essencial, pois, sem ela, não podemos abrirmos à graça e, sem esta, a realização do mahamudra permaneceria impossível. Comparamos amiúde a graça do mestre a uma montanha nevada e a devoção do discípulo ao sol cujos raios incidem sobre as encostas da montanha. O calor do sol faz a neve fundir, podemos coletar a água e bebê-la. Mas se o sol da devoção não brilha, a neve não fundirá. Não receberemos, assim, a indispensável graça.

 

O

CORPO: A MEDITAÇÃO

O não-apego ao ciclo das existências e o desejo de libertar-se dele, por um lado, e, por outro, a devoção, formam as pernas e a cabeça da prática. Não poderíamos nos abster de abordar o terceiro ponto: a meditação que observa a natureza da mente.

Essa meditação requer saber “posicionar” o corpo e saber “posicionar” a mente.

Uma grande importância é concedida à postura do corpo, pois há interdependência entre o nosso corpo e a mente. Uma postura correta do corpo favorecerá a estabilidade da mente, enquanto uma postura incorreta será nociva a essa estabilidade. Tomamos, portanto, de modo ideal, a postura dita de “Vairochana de sete pontos”:

1 – as pernas cruzadas na postura do vajra;
2 – as mãos no mudra da meditação;
3 – a coluna vertebral reta como uma flecha;
4 – os ombros afastados como as asas de um abutre;
5 – o queixo recuado;
6 – a língua pousada contra o palato de maneira relaxada e os lábios soltos;
7 – o olhar pousado no vago, [+- 1,5m] obliquamente para baixo.

Para aqueles que encontram dificuldades para manter essa postura, podemos resumi-la a dois pontos essenciais: a coluna vertebral perfeitamente reta e as mãos no mudra da meditação.

Uma vez o corpo bem estabelecido dessa maneira, é preciso, em seguida, aprender a posicionar a mente. Como fazê-lo?

Em primeiro lugar, constatamos que surge em nossa mente uma infinidade de pensamentos concernentes ao passado ou ao futuro. Os pensamentos do passado podem referir-se ao que ocorreu há vários anos, alguns meses, algumas horas, ou nos minutos precedentes. Do mesmo modo, os pensamentos do futuro podem referir-se a eventos que ocorrerão daqui a vários anos, em alguns dias, algumas horas, ou nos minutos a seguir. Esses pensamentos do passado ou do futuro, não os seguimos. Permanecemos unicamente na mente tal como ela é no presente, sem distração.

Permanecer sem distração na mente do presente é o que denominamos meditação do mahamudra.

Certas pessoas pensarão que meditar dessa maneira, sem ser tomado pelos pensamentos do passado e do futuro, deve ser extremamente difícil, e mesmo penoso. No entanto, se a mente cessa de projetar-se no que foi ou no que será e permanece tal como é no presente, aberta e relaxada, ela conhece uma sensação de repouso que torna a meditação fácil e agradável.

 

MENTE IMÓVEL, MENTE EM MOVIMENTO

Nesse estado de relaxamento do corpo e de não distração interior, a mente vai, por momentos, permanecer imóvel, sem nenhum pensamento. Por momentos pensamentos vão surgir, e a mente estará assim em movimento. Quando a mente está imóvel, reconhece-se isso e permanece-se nesse estado. Quando surgem pensamentos, da mesma maneira, reconhece-se isso. A maneira justa de proceder é então evitar duas atitudes:

1 – considerar que os pensamentos são uma coisa ruim e que é preciso deter sua produção;

2 – segui-los sem se dar conta disso.

Ao contrário, sem deter, nem seguir, permanece-se relaxado no estado de simples reconhecimento.

A mente que permanece no presente é a meditação do mahamudra.

Os principiantes, quando sua mente permanece calma e estável, têm tendência a regozijar-se dizendo-se que sua meditação é boa. Quando, ao contrário, muitos pensamentos apresentam-se, sentem-se decepcionados e desencorajados, considerando que nunca conseguirão meditar. Estas são duas reações errôneas.

Habitualmente, seguimos os pensamentos sem estarmos sequer conscientes disso; somos enganados por eles. Por isso, a meditação não implica temê-los, desejar seu desaparecimento e tentar detê-los. Em relação aos pensamentos, devemos permanecer sem rejeição, nem aceitação. Que ocorram ou não, isso não tem importância.

O ponto importante da meditação não é a ausência de pensamentos, mas a manutenção de uma vigilância não-distraída, destituída de julgamento, livre das noções de bom ou de ruim.

Tais são, portanto, as três partes que tornam completa e autêntica a prática do mahamudra: as pernas do não-apego, a cabeça da devoção, e o tronco da mente instalada no presente, tal como é, sem distração, sem nada recusar e sem nada tomar.

Notas:


1 – O termo mahamudra designa ao mesmo tempo a natureza última da mente e a meditação que conduz a reconhecê-la, meditação da qual "shine e lhaktong" são etapas. Ele se refere, portanto, ao grau mais elevado da prática. Embora a palavra seja feminina em sânscrito, foi difundido o uso no masculino em francês (e também em português), uso que respeitamos aqui.

2 – As noções de existência e de não-existência aplicadas à nossa mente podem parecer-nos de difícil apreensão, ainda mais porque podemos ter a crença implícita de que nossa mente é um produto do cérebro, enquanto o budismo vê este apenas como um suporte de funcionamento momentâneo. Essas noções constituem a “visão”, quer dizer, o fundamento teórico sobre o qual vai apoiar-se a prática da meditação. Seriam necessários longos e sutis desenvolvimentos para apoiar essa visão. Bokar Rimpoclie apresenta aqui apenas o essencial a fim de permitir melhor compreensão da meditação.

3 – A plenitude do Despertar é explicacla pela noção de “Três Corpos” de Buddha, a palavra "corpo" não se refere aqui a organismo físico, mas a diferentes modalidades do ser.

O dharmakaya

(Corpo Absoluto), é não-manifestado, escapando a toda determinação. Ele é a-temporal e não-espacial, embora todo tempo e todo espaço procedam de suas potencialidades.

O sambhogakaya

(Corpo de Glória) é um corpo de luz manifestando-se em domínios diferentes dos nossos e para nós inacessível em razão dos véus que obscurecem nossa mente.

O nirmanakaya

(Corpo de Manifestação) é o aparecimento sobre a terra, ou em outros lugares da existência condicionada, de um ser Desperto. Foi o caso, por exemplo, do Buddha Shakyamuni.

Para ressaltar que esses três Corpos não são realidades separadas, acrescentamos a eles amiúde um quarto, o svabhavikakaya (Corpo de Unidade essencial).

4 – Dos mestres da linhagem aqui mencionados os dois primeiros são indianos e os seguintes tibetanos. Eis suas datas:



Tilopa: 988-1069;
Naropa: 1016-1100;
Marpa: 1012-1097;
Milarepa: 1040-1123;
Gampopa; 1079-1153;
Tusum Kyenpa: 1110-1193;
Décimo sexto Karmapa: 1924-1981;
Kalu Rimpoche: 1904-1989.

5 – Mente refere-se aqui ao psiquismo, que é mutável. Em contrapartida, a essência da mente é imutável.



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