Do livro: NADA FAZER, NÃO IR A LUGAR NENHUM
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Mestre Linji adverte aos amigos que estão na senda, àqueles que sinceramente estão tentando viver o Darma, que não se deixem enganar pelos demônios, pelas pessoas de cabeça raspada, que vestem túnica de monge, vivem no templo e prostram-se ante o Buda, mas ainda almejam riqueza e ganho pessoal.
As palavras do século IX são um pouquinho diferentes das do século XXI, embora tenham o mesmo significado. Nós dizemos: “Sê tu mesmo. Não tentes ser mais ninguém”. O Mestre Linji disse “Tentai ser pessoas comuns. Uma pessoa comum já é maravilhosa”.
A prática não é trabalho duro. Quando trabalhamos demais em qualquer coisa, quer numa atividade, quer na iluminação, não conseguimos parar para ver todas as maravilhas da vida dentro e ao redor de nós. O Sutra do Coração Prajnaparamita diz isto claramente: “Nenhuma consecução, nenhuma realização”, porque vós já sois o que quereis ser. Não há nada a se conseguir. Paremos. Não façamos nada. Talvez pareça que não estamos indo a lugar nenhum, mas na verdade estamos profundamente neste momento e conseguimos alcançar a suprema dimensão.
Nossa mente comum já é a Senda. Se ficarmos pensando em sair e achar alguma coisa na casa do vizinho, já estamos errados. Sabemos quem é o Buda? Sabemos quem somos? Podemos até ter uma idéia sobre nós próprios, mas essa idéia ainda não é o que realmente somos. Ainda não encontramos nosso verdadeiro ser.
A palavra “Buda” é apenas isso, uma palavra. Podemos pensar que o Mestre Linji está dizendo “Não procureis o Buda, mas procurai o Darma”. Mas isto também é perigoso porque nós também temos nomes e palavras que conjuram uma imagem do Darma, e não a sua verdadeira natureza. Darma é o Darma da mente. A mente não tem forma, permeia as Dez Direções e manifesta a sua atividade bem na nossa frente. O que estamos a procurar é tão diferente da realidade como a terra é diferente do céu. Nossa mente é como um pintor, que cria um fac-símile da verdadeira realidade.
A realidade definitiva só parece difícil porque ao tentar explicá-la nós já estamos discriminando, e com isso perdemos a essência do definitivo, que é a não discriminação Nossa mente tende a discriminar. Ela divide o mundo em sujeito e objeto. Eu sou diferente de ti, o pai é diferente do filho, as nuvens são diferentes dos córregos.
A mente é como uma faca afiada que corta a realidade em pedaços. Dizemos “Adoro isto, detesto àquilo; gosto disto, isso me desagrada. Amo o Buda, odeio Mara. Amamos a beleza, detestamos a feiura; amamos a vida, odiamos a morte. Mas morte e vida coexistem. A cada minuto, cada segundo, muitas células morrem e muitas células novas nascem. Portanto, morte e nascimento são apenas dois lados de uma única realidade. Quando o pensamento dualista não se apresenta, tudo fica claro. Isto está expresso na estrofe de um poema atribuído ao Terceiro Patriarca, Sengcan:
A grande Senda, a verdade absoluta não é nada difícil.
Ela só é difícil porque há discriminação.
Basta que não amemos nem odiemos,
e então, naturalmente, ela se tomará muito clara.
Embora tenhamos o supremo, o comum, o sagrado e o profano dentro de nós, não devemos usar estas palavras porque a verdade delas é algo muito diferente. Quando pensamos em Paris, nós temos uma idéia, uma visão sobre Paris, bem como palavras para descrever Paris. Mas Paris é muito diferente da visão e das palavras que temos. Talvez tenhamos ficado alguns dias fazendo compras em Paris e achemos que já a conhecemos. Há pessoas que viveram dez ou vinte anos em Paris e não descobriram toda a verdade da cidade. Não devemos confundir a palavra e a idéia com a verdade.
Se pudermos entender este aspecto crucial, essencial, devemos aplicá-la imediatamente na vida cotidiana. Somos pobres, mas pensamos ser prósperos. Somos escravos, mas pensamos ser amos. Somos a continuação de todos os nossos ancestrais, mas pensamos estar sozinhos. Não devemos ficar presos a palavras e terminologias.
Mestre Linji ensinou: “O Darma deste monge montanhês é muito diferente do Darma de pessoas que estão apegadas ao mundo. Até mesmo se Manjushri e Samantabadra aparecessem diante de mim em suas diversas manifestações e me perguntassem sobre o Darma, assim que abrissem a boca e dissessem “Mestre Reverendo”, eu conseguiria reconhecê-los”.
Ele está dizendo que pode olhar para alguém e saber de quem se trata. Não discrimina entre comum e santo com base na aparência externa. Que um monge se chame Manjushri, como o bodisatva de grande sabedoria, não quer dizer que ele seja santo. Que uma mulher tenha um simples nome comum não significa que ela seja ímpia.
Às vezes discriminamos antes mesmo de a pessoa abrir a boca. Se nos deparamos com um francês, logo temos alguma idéia sobre o que significa ser francês. Não permitimos que a realidade dessa pessoa nos seja revelada. Quando sabemos que alguém é padre católico ou monge budista, logo fazemos uma idéia do que isto indica quanto a essa pessoa. Muitas pessoas disfarçam-se de Bodisatva Manjushri ou Bodisatva Samantabadra. Se nos livrarmos da discriminação, não poderemos ser ludibriados.
Para estudar budismo, nós procuramos um professor e acreditamos que ele tem sabedoria. Temos de acreditar que ele é santo e que outras pessoas são comuns para podermos seguir esse professor. O professor veste a túnica da santidade e nós acreditamos que ele se torna santo automaticamente. Isso é o que nos mata. Fugirmos do comum em busca do que achamos ser santo é uma espécie de morte. Estamos fugindo de nós mesmos.
Não se pode ludibriar o Mestre Linji porque ele não mais discrimina entre o sagrado e o profano. Não importa que alguém se apresente dizendo ser um bodisatva ou uma simples pessoa comum, pois o Mestre Linji reconhecerá a sua verdadeira natureza.
“A prática não é trabalho duro. Quando trabalhamos demais em qualquer coisa, quer numa atividade, quer na iluminação, não conseguimos parar para ver todas as maravilhas da vida dentro e ao redor de nós. O Sutra do Coração Prajnaparamita diz isto claramente: “Nenhuma consecução, nenhuma realização”, porque vós já sois o que quereis ser”.
Thich Nhat Hanh do livro: NADA FAZER NÃO IR A LUGAR NENHUM – Comentário 12