O castelo e o fosso
Desde que comecei como instrutora encontrei muito poucas pessoas que não estavam de alguma maneira mergulhadas naquilo que consideravam como um problema. É como se suas vidas estivessem enterradas numa densa e enorme nuvem, ou como se estivessem num quarto escuro as voltas com nossa nêmese. Quando estamos nas malhas desse conflito, fechamos o mundo do lado de fora. Francamente, não temos tempo para ele porque estamos muito ocupados com nossas preocupações. Nosso único interesse é solucionar nosso problema. Não vemos mais além do que essa ilusão, em que o problema com que nos preocupamos não é o problema real. Ouço um sem-número de variações sobre esse tema: “Estou tão sozinha”; “A vida é vazia e sem sentido”; “Tenho de tudo, e no entanto…”. Não enxergamos que nosso problema superficial é apenas a pontinha do iceberg. Na realidade, o que consideramos como nosso problema é, na verdade, um pseudo problema.
Para nós com certeza não parece que sejam só pseudo problemas. Se, por exemplo, sou casada e meu marido vai embora sem dúvida não acho que esse seja um pseudo problema. Vai passar muito tempo antes que eu consiga ver que aquilo que estou chamando de o meu problema não é a dificuldade real. Apesar disso, o problema real não é a parte que podemos enxergar, como algo pendurado no ar; o verdadeiro problema é o iceberg que está embaixo da água. Para uma pessoa, o iceberg pode ser uma crença generalizada e entranhada do tipo “Tenho tudo sob controle”; para outra, pode ser “Preciso fazer as coisas com perfeição”. Mas, na verdade, não consigo controlar o mundo sendo prestativa, não consigo controlá-lo sendo desprotegida, não consigo controlá-lo com meus encantos, ou meu sucesso, ou minha agressividade, não consigo controlá-lo pela suavidade ou pela doçura, ou pelo melodrama da vítima. Logo abaixo do problema emergente está um padrão mais fundamental que de-
vemos reconhecer e com o qual nos familiarizar. Trata-se de uma atitude crônica e abrangente perante a vida, uma decisão muito antiga decorrente de nossos temores infantis. Se não conseguirmos enxergá-la e, em vez disso, nos perdermos tentando lidar com o pseudo problema que se apresenta, continuaremos cegos aos acontecimentos e às pessoas.
Só quando nossa abordagem de cegos diante da vida começar a apresentar defeitos é que passaremos a sentir vagos lampejos de que nosso pseudo problema é um castelo assombrado no qual estamos como prisioneiros. O primeiro passo de qualquer prática é saber que somos prisioneiros. A maioria das pessoas não tem a menor suspeita disso: “Oh, comigo vai tudo bem!”
Porém, quando começamos a reconhecer que estamos como prisioneiros, podemos começar a encontrar uma porta que nos leve para fora da prisão. Estaremos então despertos o suficiente para saber que estamos aprisionados.
E como se meu problema fosse um castelo sombrio e tenebroso, cercado de água por todos os lados. Encontro-me num pequeno bote e começo a remar para ganhar distância. Conforme remo, olho para o castelo que vai ficando para trás, e quanto mais me afasto, menor fica. O fosso é imenso, mas finalmente o atravesso e chego na outra margem. Agora, quando olho de novo para o castelo, ele parece muito pequeno. Por ter recuado, não tem mais o mesmo interesse que um dia despertou em mim. Assim, começo a dar mais atenção para o lugar onde agora me encontro. Olho para a água, as árvores, os pássaros. Talvez existam pessoas passeando de bote pela água, apreciando o ar livre. Algum dia desses, enquanto estiver desfrutando o cenário, vou olhar para onde estava o castelo e verei que ele terá sumido.
A prática é como o processo de remar pelo fosso. Primeiro estamos nas malhas de nosso pseudo problema. Em algum ponto, contudo, damo-nos conta de que aquilo que parecia ser o problema não é, afinal de contas. Nosso problema é algo muito mais profundo. Uma luz começa a brilhar. Somos capazes de encontrar uma porta de saída e ganhar uma certa distância ou perspectiva em nossos esforços. O problema poderá ainda continuar nos atormentando, como um imenso castelo mal-assombrado, mas pelo menos estaremos do lado de fora, olhando para ele. Quando começamos a remar e nos distanciar, a água pode estar encapelada e dificultar o avanço. Até mesmo uma tempestade pode nos arremessar de volta à beira do lago, de modo que não conseguimos ir embora ainda por mais algum tempo. No entanto, continuamos tentando e, em algum momento, conseguimos colocar alguma distância entre nós e o castelo tenebroso. Começamos a desfrutar um pouco a vida do lado de fora do castelo. Depois de algum tempo, podemos estar gostando tanto dela que o castelo em si agora parece apenas um outro resto de alguma coisa flutuando na água, tão sem importância.
Qual é o seu castelo? Qual é o seu pseudo problema? E qual é o iceberg lá embaixo, o problema mais profundo que dirige a sua vida? O castelo e o iceberg são uma e a mesma coisa, O que são para você? A resposta, para cada pessoa, é diferente. Se começamos a ver que o problema atual que nos contraria não é a verdadeira questão de nossas vidas, mas simplesmente um sintoma de um padrão mais profundo, então estamos começando a conhecer nosso castelo. Quando o conhecermos bastante bem, estaremos começando a encontrar a direção da saída.
Poderíamos perguntar por que continuamos presos no castelo. Permanecemos presos porque não reconhecemos o castelo, nem como conquistar a nossa liberdade. O primeiro passo na prática é sempre ver e reconhecer nosso castelo ou prisão. As pessoas são feitas prisioneiras de muitas e variadas maneiras. Por exemplo, um castelo pode ser a busca constante de uma vida excitante e movimentada, repleta de novidades e divertimentos. As pessoas que vivem assim são estimulantes, mas difíceis de conviver. Viver num castelo, portanto, não significa necessariamente uma vida de preocupações, ansiedade e depressão.
As prisões mais sutis não parecem em nada com isso. Quanto maior o nosso sucesso no mundo externo, mais difícil pode ser identificar o castelo onde estamos como prisioneiros. O sucesso em si é ótimo; contudo, se não nos conhecemos, pode ser uma prisão. Conheci pessoas famosas em seus campos de atividade e que apesar disso eram prisioneiras de seus castelos. Tais pessoas só partem para a prática quando alguma coisa começa a não dar mais certo em sua vida – embora o sucesso externo em geral torne mais difícil reconhecer e admitir a desintegração. Quando as primeiras rachaduras concretas aparecerem na parede do castelo, talvez comecemos a investigar nossas vidas. Os primeiros anos de prática consistem em chegar a conhecer o castelo do qual somos prisioneiros e começar a encontrar onde está o bote a remo. A viagem através do fosso pode ser tortuosa, especialmente no princípio. Talvez nos aconteçam tempestades e águas agitadas quando nos separamos de nosso sonho de como somos e de como pensamos que a nossa vida deveria ser.
Um só elemento realiza por nós essa travessia: a percepção consciente do que está acontecendo. A capacidade de manter a percepção consciente quando pseudo problemas aparecem é algo que aos poucos se desenvolve pela prática, embora não por esforços deliberados nesse sentido. Quando se dão acontecimentos dos quais não gostamos, criamos pseudo problemas e ficamos seus prisioneiros: ”Você me insultou! Claro que estou com raiva!”; “Estou tão sozinha. Ninguém realmente se importa comigo”; “Minha vida foi muito dura. Abusaram de mim”.
Nossa viagem não termina (e talvez numa única vida humana nunca chegue ao fim) enquanto não virmos que não existe castelo e que não existe problema. A quantidade de água que atravessamos em nosso bote é sempre aquilo que ela é. Como poderia existir algum problema? Meu “problema” é que não gosto disso. Não gosto disso, não gosto desse jeito, a vida não me serve. Assim, partindo de minhas opiniões, reações e julgamentos construo um castelo no qual me faço prisioneiro.
A prática ajuda-me a compreender esse processo. Em vez de me perder em meio a contrariedades, observo meus pensamentos e a contração do meu corpo. Começo a ver que o incidente que me transtornou não é o problema real; em vez disso, minha contrariedade deriva de minha particular maneira de olhar a vida. Escolho esta parte e começo a demolir o meu sonho. Pouco a pouco, vou construindo uma certa distância em perspectiva. Meu bote a remo afasta-se do castelo que ergui e não sou mais prisioneiro ali dentro.
Quanto mais tempo praticamos, mais rapidamente avançamos por esse processo, a cada vez que ele emerge. O trabalho é lento e desencorajador no começo, mas, conforme vão aumentando nosso entendimento e nossas habilidades, ele acelera cada vez mais e chegamos depois a ver que não existem problemas. Podemos desenvolver doenças e perder o pouco dinheiro que tínhamos; apesar desses transtornos, não há problema.
Porém, nós não enxergamos a vida dessa maneira. No minuto em que se impõe a nós algo de que não gostamos, temos, do nosso ponto de vista, um problema. Assim, a prática zen não trata de nos ajustarmos ao problema, mas de vermos que não existe problema nenhum. É uma estrada muito diferente daquela a que estão acostumadas quase todas as pessoas. A maioria apenas tenta consertar o castelo, em vez de ver mais além dele e encontrar o fosso que nos separa dele – e isso é o que a prática nos leva a reconhecer.
Na verdade, a maioria não quer sair do castelo. Podemos não percebê-lo, mas adoramos os nossos problemas. Queremos continuar como prisioneiros de nossas construções, girando e revolvendo no mesmo ponto como vítimas, sentindo muita pena de nós. Depois de algum tempo, pode ser que cheguemos a ver que essa vida na realidade não funciona muito bem. É quando talvez comecemos a procurar pelo fosso. Mas mesmo então, continuamos a nos iludir, buscando soluções que mantêm o castelo intacto e a nós como prisioneiros. Por exemplo, se um relacionamento parece ser o problema, talvez nos atiremos em outro em vez de descobrir a questão que está na base, e que é a nossa fundamental decisão sobre a vida, o castelo que erguemos.
“Minha perna quebrou.” “Estou aborrecido com a minha namorada.” “Meus pais não me compreendem.” “Meu filho usa drogas.” E assim por diante. O que, neste exato minuto, é o fator que nos separa da vida e nos impede de enxergar as coisas como elas são? Só quando a vida for apreciada em todos os seus momentos é que poderemos dizer que sabemos algo de uma vida religiosa.
Compreender é a chave. Ainda assim, são precisos anos e anos de prática para começarmos a entender o que estou descrevendo e é preciso coragem para nos aventurarmos na travessia do fosso, distanciando-nos do castelo. Enquanto ficamos dentro dele, conseguimos sentir que somos importantes. É preciso um interminável treinamento para cruzar aquele fosso com rapidez e eficiência. Não somos muito propensos a sair do castelo. Se estamos terrivelmente deprimidos, a depressão é, apesar de tudo, aquilo que conhecemos; que Deus não permita que nós devamos abandonar nossa depressão. E assustador entrar no nosso pequeno bote e deixar para trás todas as coisas que até então chamávamos de a nossa vida. Aprisionados no castelo, ficamos constringidos a um espaço reduzido, apertado. Nossa vida é sombria e assustadiça, quer o percebamos, quer não. Felizmente, a liberdade (o nosso ser verdadeiro) nunca cessa de nos chamar.