O Vajrayana e o tratamento das emoções – Simples reconhecimento


O VAJRAYANA E O TRATAMENTO DAS EMOÇÕES:
O SIMPLES RECONHECIMENTO
Kalu Rinpoche


INTRODUÇÃO

Ao longo deste ensinamento, iremos considerar, na perspectiva do vajrayana, como se opera, pela meditação, a liberação das emoções conflituosas em seu simples reconhecimento.

O vajrayana, de um modo geral, oferece instruções que tratam de maneira específica os pensamentos e as emoções, de modo a permitir um progresso muito rápido no caminho do Despertar. Considerando-se que os humanos pertencem a um domínio de manifestação chamado a “esfera do desejo”, uma atenção especial é dada ao desejo-apego. Estabelece-se particularmente uma correspondência entre as quatro classes de tantras e os quatro graus de complexidade crescente de satisfação do desejo sexual que eles permitem tratar.


FELICIDADE E INFELICIDADE NO OCIDENTE


Os americanos e os canadenses67 são certamente pessoas que possuem um grande mérito proveniente de suas vidas passadas. Deduzimos isso pelo fato de, por um lado, suas condições de vida exteriores serem extraordinárias e, de outro lado, por terem podido receber ensinamentos, iniciações e instruções da prática de personalidades eminentes como o DalaiLama, o Karmapa, Dilgo Khyentse Rinpocbe, Situ Rinpoche, Shamar Rinpoche, ou Jamgön Kongtrul Rinpoche. Têm também a sorte de terem se estabelecido em seu território lamas tão notáveis como Trungpa Rinpoche e outros. A América do Norte dispõe, então, de um grande potencial positivo.

O país é belo, as casas muito confortáveis, a prosperidade evidente em todos os setores, a começar pela alimentação e roupas. A abundância e a qualidade dos bens materiais são tais, que acreditamos estar no mundo dos deuses. Primeiramente, somos levados a pensar que as pessoas que vivem num tal contexto só podem ser felizes. Entretanto, a mente dos norte-americanos68 não parece sempre de acordo com seu ambiente: ao invés de encontrar ali felicidade, percebem-se muitas dificuldades, insatisfações e sofrimentos. De onde vêm esses problemas? Das emoções conflituosas, mais particularmente do desejo-apego, que os ocidentais não sabem transformar nem afastar. Parece-me que se as emoções perdessem seu poder, o país se tornaria um lugar extraordinário, onde a alegria e a paz se casariam com a prosperidade.

Um provérbio tibetano diz:

Barriga vazia só pensa em roubo.
Barriga cheia só pensa no desejo.


ORIGEM DAS EMOÇÕES


Vimos, com relação ao mahayana, métodos que permitem transformar as emoções. Há no vajrayana métodos que visam purificar as emoções para que elas se tornem as cinco sabedorias ou os cinco Buddhas Patriarcas. Esses métodos implicam visualizações complexas que não podem ser ensinadas em público e não podemos, portanto, abordá-las aqui. Entretanto, existe no vajrayana uma outra abordagem das emoções, fácil de expor e de praticar, muito benéfica, que consiste no “simples reconhecimento”.

Para abordar este método, é preciso, inicialmente, compreender de onde vêm as emoções. É evidente, em primeiro lugar, que as emoções não são produzidas nem pelo corpo, nem pela palavra. Tomemos um cadáver: ele permanece um envelope físico, mas desprovido de mente. Ninguém nunca ouviu falar de um cadáver experimentando o desejo, a cólera, o ciúme ou o orgulho. Portanto, não podemos atribuir de modo algum as emoções ao corpo. Ele não possui nenhuma faculdade para experimentá-las. A palavra também não possui essa faculdade: é apenas um acúmulo de sons, comparável a um eco, logo, desprovida ela própria da capacidade de experimentar o quer que seja.

As emoções só podem vir da própria mente. Isto não significa que o corpo e a palavra não estejam implicados no processo emocional; mas eles o estão a título de executantes ou de servidores. Eles não são os mestres da situação. Se a mente, por exemplo, pensa que é preciso abrir a janela, é o corpo que vai abri-la; se a mente pensa que é preciso acender a luz ou ir embora, é o corpo que vai acionar o interruptor ou se deslocar. O corpo só pode intervir a serviço da mente, mas ele mesmo não toma nenhuma iniciativa. Do mesmo modo, o corpo não dirige as emoções conflituosas, mas se coloca a serviço da mente que as produz.

Os tibetanos utilizam muito a palavra em suas práticas espirituais, recitando um grande número de mantras ou de orações, pois estão convencidos de que, por meio disso, opera-se uma profunda purificação, assim como uma vasta acumulação de mérito. Dessa forma, eles podem passar horas recitando. Os ocidentais, ao contrário, parecem pensar que apenas a mente importa e nutrem dúvidas sobre a eficácia de uma prática da palavra. Por isso, a recitação de mantras ou da oração de refúgio é para eles difícil e não conseguem fazê-la bem por um tempo longo. Eles esquecem simplesmente que, quando a palavra atua, está a serviço da mente que a dirige; portanto, é sempre a mente que está em jogo.


MEDITAÇÃO SOBRE A MENTE


Essa mente que penetra todas as coisas, essa mente comum a todos, precisamos compreender o que ela é.

A mente, em primeiro lugar, é vazia, no sentido de que não existe enquanto objeto: não tem cor, nem forma, nem peso etc. Também não tem lado, nem fronteira, nem centro, nem circunferência. Nada sendo materialmente, é semelhante ao espaço. E necessário saber isto, pois a vacuidade é muito diferente da experiência que temos agora de nossa mente: algo de muito pequeno, que chamamos “eu”, algo limitado ao nosso corpo, algo estreito e conseqüentemente fonte de numerosos problemas.

Deixando nossas costas bem retas, meditamos nessa vacuidade vasta como o espaço, a mente aberta.

(meditação)

“Tenho uma mente; ela se encontra em meu corpo; quero ter as coisas que me agradam, evitar o que me desagrada”: este modo de funcionamento constitui um fardo pesado que nos causa muitos aborrecimentos. Se, ao contrário, colocamo-nos em um estado de abertura e de tranqüilidade onde reconhecemos a mente tal como ela é verdadeiramente, penetrando todas as coisas, desprovida de qualquer limitação material, experimentamos, então, naturalmente, uma sensação de calma e leveza, sem nenhuma complexidade.

(meditação)

A vacuidade da mente na qual nós nos colocamos é semelhante ao espaço, não um espaço obscuro onde não brilham nem o sol, nem a lua, nem mesmo as estrelas, mas um espaço iluminado pelo sol, límpido e vasto. Quando nos colocamos na natureza da mente, em sua vacuidade, devemos fazê-lo com essa qualidade de abertura e limpidez. Em segundo lugar, meditamos, então, sobre a “claridade” da mente. Vacuidade e claridade não são dois aspectos que poderiam ser isolados, ficando cada qual de um lado diferente. Da mesma maneira que num dia ensolarado o céu e a luz são apenas um, a claridade e a vacuidade da mente estão indissoluvelmente misturadas.

(meditação)

Vacuidade e claridade são, em si mesmas, inertes: elas não podem gerar nenhum ato benéfico ou negativo, não podem engendrar nem pensamentos nem emoções conflituosas. Quando permanecemos no estado de claridade-vacuidade, semelhante ao espaço vazio, há ao mesmo tempo uma qualidade conhecedora, uma inteligência (sct. vidja, tib. rikpa) que está consciente da claridade e da vacuidade. A vacuidade-claridade é como a palma da mão e essa inteligência, como a percepção evidente que temos dela. Todavia, na natureza da mente nada divide esses três aspectos. Meditemos, agora, tomando particularmente consciência dessa inteligência.

(meditação)


A MENTE ESPAÇOSA


Assim, a mente é descrita sob esses três aspectos: vacuidade, claridade, inteligência. Caso se medite apoiado nesses três aspectos, de modo muito vasto, muito amplo – praticando-se a pacificação mental, a visão superior ou as fases de criação e de conclusão das divindades do vajayana – isto produzirá um grande conforto, uma grande facilidade e aumentará a eficácia. Se, ao contrário, permanecermos na nossa percepção comum: “Este sou eu, eu estou nesse corpo”, as mesmas práticas serão realizadas com dificuldade, de maneira estreita como se estivéssemos presos num desfiladeiro estreito do qual não saberíamos como sair. Portanto, é muito importante saber meditar da maneira que acabamos de mostrar.

Mesmo quando o lama que dá as instruções sobre a pacificação mental, a visão superior ou as meditações das divindades seja perfeito, se o discípulo abordar essas técnicas com a mente fechada em si mesma, nunca verá o desenvolvimento das qualidades que delas decorrem. Ao contrário, corre um grande risco de se irritar por causa do lama e de ficar ressentido com ele!

Essa mente, união da vacuidade, da claridade e da inteligência, vai em direção ao estado de Buddha; mas é ela também que erra no samsara. Quando meditamos, é a mente que medita; quando se elevam emoções conflituosas ou pensamentos, é ela que os experimenta. Nada é experimentado fora da mente.


A MENTE EM PLENO VÔO


Caso se medite tendo compreendido bem essa tríplice natureza – vacuidade, claridade e inteligência – da mente, medita-se com a liberdade de um pássaro que voa no céu. Nada obstrui a sua rota; pode ir aonde quiser. Nossa meditação será, então, eficaz. Caso contrário, seremos como uma criatura com muitas patas presa num espaço muito pequeno.

Durante a meditação, algumas pessoas sentem dor de cabeça, outras dores nos olhos, nos ombros, ou ainda sentem incômodos em outras partes do corpo. Todas essas dores vêm de uma mente em uma atitude fechada.

Podemos comparar nossa mente dotada desses três aspectos com o mar. As emoções conflituosas e os pensamentos que nela se produzem são como as ondas. As ondas do mar são muito numerosas; mas elas são apenas água, a mesma água do mar. Do mesmo modo, todos os pensamentos e todas as emoções procedem da mente e se reabsorvem na mente. Pode ser útil meditar na beira do mar: pode-se ver, vindo de longe, pequenas ondas que se formam, que depois crescem até ficarem enormes e parecerem capazes de destruir tudo em sua passagem. As ondas voltam em seguida para o mar e não sobra nada delas. As emoções e os pensamentos, do mesmo modo, elevam-se em nossa mente, ganham um enorme poder e acabam por voltar para a vacuidade não sobrando nada deles. Depois surgem outros, que por sua vez se dissipam, para dar lugar a outros.

Sejam, então, hábeis ao meditar. Quando, por exemplo, um desejo poderoso, quase irresistível, eleva-se na mente, tomem a postura de meditação e permaneçam em um estado de grande abertura. Quando o desejo se elevar, olhem simplesmente a mente neste desejo que se eleva, sem se deixarem distrair por outra coisa; o desejo se liberará então por si mesmo na vacuidade. Cada vez que ele voltar, olhem-no da mesma maneira e cada vez ele se desfará. Ao meditar assim, o desejo se libera na consciência primordial. A partir de então as próprias manifestações das emoções serão benéficas e não poderão mais incomodá-los.


RECONHECER A ESSÊNCIA


Tentemos, agora, fazer a experiência da qual falamos. Tomando a postura de meditação correta, deixemos que nossa mente repouse na vacuidade, na claridade e na inteligência. Sem dúvida, irão surgir pensamentos de desejo, de cólera ou de ciúme. Quando se manifestarem, permaneçamos com relação a eles em um estado de simples reconhecimento. Não devemos pensar que devem desaparecer ou que é preciso pará-los, mas simplesmente reconhecer sua essência. Desse modo eles se liberam por si mesmos.

(meditação)

Nesse tipo de meditação, todas as emoções conflituosas são tratadas do mesmo modo. Mesmo quando se elevam em grande número, é uma boa coisa. Não se deve rejeitá-las. Basta reconhecer sua essência; isto não é difícil. E por essa razão que dizemos que elas se liberam por si mesmas.

A emoção principal que vocês encontram é, sem dúvida, o desejo-apego. Se puderem aprender a tratá-la mediante esse tipo de meditação, poderão em seguida estender essa abordagem às outras emoções. Gampopa comparava a meditação a um fogo; quanto mais se alimenta o fogo com madeira, mais potente e vivo ele se torna. Para o praticante, da mesma maneira, quanto mais a meditação encontra emoções conflituosas, mais forte brilha a consciência primordial.

Quando, após o trabalho, vocês se sentem cansados, mental e fisicamente, se estabelecerem a mente nesse estado aberto e espaçoso do qual falamos, o cansaço logo desaparecera; vocês se sentirão relaxados e tranqüilos. Quando, por outro lado, uma forte emoção conflituosa se eleva, se, do mesmo modo, vocês colocarem a mente em um estado semelhante ao espaço, a emoção se liberará por si mesma. Isso será extremamente proveitoso.
Em primeiro lugar, é preciso compreender bem no que consiste esse tipo de meditação, depois aplicá-la. Antes de mais nada, talvez não seja tão fácil compreendê-la como falar dela; depois, tendo compreendido-a, se não se praticá-la, não se poderá extrair nenhum benefício dela. Logo após ter alcançado o Despertar, o Buddha disse:

Encontrei um dharma semelhanteà ambrosia,
Profundo, pacifico, simples, indiviso, radiante.
Como ninguém compreenderia o que eu poderia mostrar,
Permanecerei mudo no meio da floresta.

Então, ele permaneceu absorvido em sua meditação. Algumas semanas mais tarde, os grandes deuses da Índia védica, Brahma e Indra, vieram lhe implorar para que ensinasse aos homens que, sem ninguém para guiá-los, eram como cegos no samsara.
Atendendo a esse pedido, aceitou ensiná-los.

Questão – Essa prática, na qual as emoções se liberam por si mesmas, é suficiente para chegar ao Despertar?

Kalu Rinpoche – Sim, é possível, pois ela permite que as emoções se transformem em sabedorias, mais precisamente naquilo que, no nível do Despertar, é chamado as “cinco sabedorias” e que, no nível dos meios, é representado pelos cinco “Buddhas Patriarcas”.

Questão– Rinpoche explicou-nos que as emoções se elevavam da mente e voltavam para ela. Mas, quando penso em minha própria experiência, não vejo muito bem, nesse caso o que se chama mente. É apenas uma palavra, mas que não designa nada em particular. Acredito ter uma mente, mas não posso encontrá-la.

Kalu Rinpoche – Para responder a essa questão, podemos tomar uma citação do Terceiro Karmapa, Rangjung Dorje:

A mente: não há mente, ela é vazia de essência mental;
Vazia, ela é ao mesmo tempo livre e se manifesta em todas as coisas.
Possa um perfeito exame eliminar toda indecisão.
E ainda:
A mente não é existente- os próprios Vencedores não a vêem;
Ela não é inexistente- é o fundamento universal do samsara e do nirvana;
Ela não é o amálgama de contrários, mas a união, o caminho do meio;
Possa eu realizar o aquilo-mesmo da mente desprovida de extremos.

Forneci-lhes os métodos que, acredito, permitem que toda vez que se produzam emoções conflituosas, pensamentos ou sofrimentos, eles se liberem por si mesmos. Agora, depende de vocês colocá-los em prática ou não. Vocês podem escolher permanecer enredados nas emoções conflituosas ou então livrar-se delas. A escolha é sua: podem continuar prisioneiros ou colocar-se em uma situação confortável, deixando que as emoções liberem-se por si mesmas.


TRAÇOS SOBRE A ÁGUA


No vajrayana, encontramos as três maneiras de tratar as emoções conflituosas em relação aos tantras ditos exteriores, interiores e secretos. Os tantras exteriores utilizam a rejeição das emoções, os tantras interiores sua transformação e os tantras secreto, o simples reconhecimento de sua essência. O vajayana representa, de fato, o caminho mais direto para escapar do império das emoções. Até Marpa, o tradutor, a maioria dos praticantes não se colocavam em uma situação em que se protegiam exteriormente das emoções, mas tratavam-nas interiormente. O próprio Marpa dava um exemplo que permitia compreender o que era sua experiência do desejo e da cólera, diferente do que os outros podiam perceber. Para as pessoas do exterior, dizia, suas emoções assemelhavam-se a desenhos gravados em uma rocha; para ele, eram apenas traços sobre a superfície da água.

Os métodos que permitem se liberar das emoções por meio da rejeição, da transformação ou do reconhecimento da essência, pertencem todos ao ensinamento do Buddha. Entretanto, ele não os ofereceu em um único contexto, mas expôs esta ou aquela abordagem em relação às variadas faculdades daqueles às quais esses métodos se destinavam, propondo cada vez o método que se revelava mais útil.

Vancouver, junho de 1982.



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