de Longchenpa
Traduzido do tibetano por Philippe Cornu
Traduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye
Rigpa é um termo específico de tal modo rico e além dos conceitos que ninguém até agora propôs uma tradução satisfatória para defini-lo. Para palavras de uma tal importância, a tradução por um só vocábulo corre o risco de levar a uma redução conceitual do sentido. Eu escolhi cercar sua definição da melhor maneira, sem buscar em seguida traduzir a palavra rigpa nos textos.
Em inglês, rigpa é freqüentemente traduzido por [awareness] (consciência desperta) e K. Lipman recentemente tentou uma definição: “The flash of knowing that gives awareness its quality”, empregando a fenomenologia. Esta definição, “O clarão do conhecimento que dá ao despertar suas qualidades”, é interessante porque ela dá valor ao aspecto cognitivo de rigpa, que dá todo seu valor ao despertar.
No “Rigpa ngotrö tcher thong rangdrol”, rigpa é assim representado:
Quando os pensamentos se esvaeceram sem deixar traço algum,
Nesse frescor aonde os pensamentos a vir ainda não apareceram,
No instante onde se estabelece o modo natural sem artifícios,
Eis aqui esta consciência dos tempos comuns,
E desde que fixeis vosso olhar sobre vós mesmos,
Esse olhar que não tem nada para “vêr” deságua sobre a claridade,
Rigpa em sua evidência, nu e límpido;
É uma pura vacuidade onde nada de particular existe,
Onde claridade e vazio são indivisíveis,
Nem eterno, pois que nada existe verdadeiramente,
Nem o nada, pois que ele é claro e vivo.
Ele não se reduz ao um, estando presente e consciente em tudo,
Ele não é o múltiplo, porque ele tem um único sabor na inseparabilidade.
Tal é esse rigpa natural, e nada além.
Rigpa é um estado de presença claro e desperto que transcende a mente pensante comum. Ele é como o sol que aparece quando as nuvens dos pensamentos se afastam. Rigpa é não-composto, não tem começo nem fim. Em sua essência ele é primordialmente puro [kadag] e sem elaborações, isso que chamamos ainda vacuidade. Mas em sua natureza, ele é luminosidade espontaneamente presente [lhundrup]. Esses dois aspectos são indissociáveis.
Do ponto de vista de rigpa, a mente conceitual [sem], as paixões, etc., não são senão um jogo oriundo de sua criatividade luminosa. Há, pois uma imensa diferença entre mente comum, [sem] e rigpa. [Sem] é um epifenômeno de rigpa, uma simples função da claridade e de seu movimento. Rigpa é um estado claro e sem distrações onde nenhum apego é possível. Nesse estado, tudo que surge não é mais que uma exibição sem finalidade e se dissolve sem deixar traço, como uma vaga no oceano ou um desenho sobre a água.
Comparamos tradicionalmente rigpa a um espelho. O espelho tem duas características: ele é vazio em si-mesmo, e simultaneamente ele tem potencialidade de refletir claramente todas as espécies de aparências, belas ou feias. Essas aparências, visíveis no espelho, são incapazes de o sujar, pois ele permanece vazio por essência. Estar sob a influência da mente comum e do apego, é estar fascinado pelos reflexos e se lançar em perseguição, seduzido por uns, irritado ou desgostoso com outros. Estar no estado de rigpa consiste em contemplar a exibição dos reflexos permanecendo na condição natural do espelho, sem estar distraído. Os reflexos não têm nenhum poder sobre o espelho, e este permanece imutável e sem manchas. Assim, do ponto de vista do espelho os reflexos não criam nenhum problema. Se quando vemos as projeções, esquecemos no mesmo instante a condição natural, a ilusão se instala.
Nos textos antigos do dzogchen, em particular do [semde], rigpa é também chamado [tchang tchoup sem], quer dizer bodhichitta ou “mente de iluminação”. Mas esse termo tem uma significação especial no dzogchen. [tchang] significa “totalmente puro”, sendo sinônimo de [kadak]. A pureza primordial de rigpa. [Tchoup] significa “realizado”, “perfeito”, e evocando aqui a natureza espontaneamente realizada de rigpa [lhundrup]. [Sem] é, pois aqui a natureza da mente primordialmente pura e espontaneamente presente, e não mais a mente no sentido comum.
Rigpa é nossa condição natural, nosso modo de ser último e primordial. Presente em cada um dos seres sensíveis, se bem que velado, o chamamos também tathâgatagarbha, a “essência do tathâgatha”. Dum ponto de vista último, rigpa é também Samantabhadra, o Budha primordial. Enfim, enquanto presença espontânea capaz de manifestar todos os fenômenos, o chamamos “o rei que cria todas as coisas”. Todos esses termos são equivalentes e tais diferenciações são usadas somente com uma finalidade descritiva.
Um último ponto importante a propósito de rigpa. Na nossa condição comum, nós não reconhecemos rigpa, e somente [sem] nos parece ser a mente. Nos textos, falamos em procurar a “natureza da mente”, [semnyi]. Descobrir a natureza da mente é descobrir que [sem] não tem realidade, que ela é vazia de existência própria, que ela não tem nem origem, nem lugar, nem destino. Mas isso não é ainda rigpa. Rigpa é apresentado ao discípulo no momento preciso quando a mente comum é temporariamente dissolvida. Se o estudante reconhece no instante esta presença vazia e luminosa, sem nenhum apego nem conceito, podemos então falar do estado de rigpa.
Assim, o Ati-yoga é o veiculo de rigpa que transcende todas as análises conceituais, todas as elaborações e fabricações mentais. Enquanto tal, ele está além de todas as opiniões e da “vias” dos outros veículos, que dependem ainda da mente pensante, [sem]. […]
O veículo do dzogchen se inicia somente com a compreensão e a experiência de rigpa, existe um modo de transmissão de poder particular no dzogchen, que visa a apresentação direta de rigpa ao discípulo. Esta transmissão, o [rigpa tsel wang] ou transmissão de poder da energia criadora de rigpa”, corresponde à quarta iniciação dos tantras, a iniciação da fala.
Existem numerosas espécies em cada uma das três séries dos ensinamentos dzogchen [semde, longde, e menagde]. Esta apresentação pode ser direta de mente a mente, simbólica ou oral. Numerosos procedimentos são utilizados. Assim existem as apresentações metafóricas, as apresentações dos sentidos, e as apresentações do signo[sinal]. Enfim, existem quatro graus de elaborações para essas transmissões de poder: transmissão de poder elaborada, transmissão de poder sem elaborações, transmissão de poder completamente despida de elaborações e transmissão de poder absolutamente despida de elaborações.
Em todos os casos, o mestre, que se encontra no estado de rigpa, tenta desvelar ao discípulo o que é seu rigpa afim de que ele tenha a experiência direta e, sobretudo a reconheça. Este reconhecimento da visão mesmo que fugaz, é indispensável ao desenvolvimento da prática, porque, sem saber do que se trata, como poderemos “desenvolver” a presença de rigpa? A prática visa, com efeito, um único objetivo, estabilizar a visão e aumentar o poder de rigpa, afim de que ele impregne progressivamente todos os nossos atos.
A meu ver há influência Mahayana ou de Sabedoria demais sobre o tantrismo budista, prejudicando a verdadeira técnica que deve envolver mantra e empoderamento, tal como esforço criativo da mente para criar condições para a elevação de kundalini. Mas esta “quarta iniciação dos tantras, a iniciação da fala” dá alguma esperança.