Os seis estágios da prática
O caminho da prática é claro e simples. No entanto, quando não o entendemos, ele pode parecer confuso e sem sentido. É um pouco como aprender a tocar piano. Logo no início de meu aprendizado, um professor disse-me que, para me tornar uma pianista melhor, eu deveria praticar a seqüência C (dó), E (mi), O (sol), várias vezes seguidas, até cinco mil. Ele não me deu nenhum motivo; só me disse que o fizesse.
Já que eu era uma boa menina quando pequena, provavelmente fiz isso mesmo sem entender por que era necessário. Mas nem todos somos bons meninos e meninas. Por isso quero apresentar-lhes o ”porquê” da prática elucidando os passes do caminho que precisamos percorrer – por que é necessário todo esse tedioso e repetitivo trabalho. Todas as minhas aulas falam dos aspectos desse caminho; esta é uma revisão, com a finalidade de pôr as coisas em ordem, segundo uma certa perspectiva.
A maioria daqueles que não se entregaram a nenhuma espécie de prática (existem muitas pessoas praticando a seu próprio modo, sejam ou não discípulas do zen) está naquilo que denomino o pré-caminho. Isso com certeza se aplicou a mim antes que eu começasse a praticar. Estar no pré-caminho significa estar inteiramente cativo de nossas reações emocionais diante da vida, adotando a visão de que a vida está acontecendo para nós. Sentimo-nos fora de controle, atolados no que parece uma confusão estonteante. Isso pode ser verdade para quem também está praticando.
A maioria dos adeptos volta para esse estado de dolorosa confusão às vezes. A seqüência do homem montado num touro ilustra esse aspecto; podemos estar trabalhando perto dos estágios finais e de repente, perante uma situação de estresse, regredir de repente a estágios anteriores. Às vezes, saltamos de volta para o período do pré-caminho, onde nos vemos totalmente tomados por nossas reações. Essa reversão não é nem boa, nem ruim, apenas algo que fazemos.
Estar totalmente à mercê do pré-caminho, no entanto, é não ter a menor idéia de que existe um outro caminho para se ver a vida. Adentramos o caminho da prática, porém, quando começamos a reconhecer nossas reações emocionais; por exemplo, que estamos sentindo raiva e começando a criar caos. Começamos a descobrir quanto medo sentimos ou com que regularidade temos pensamentos mesquinhos ou invejosos.
O primeiro estágio da prática é esse processo de tomar-me consciente de meus sentimentos e de minhas reações internas. Rotular os pensamentos ajuda nesse sentido. É importante ser firme nessa fase, porém, caso contrário perderemos uma boa parte do que se passa em nossos pensamentos e sentimentos. Precisamos observar tudo o que se passa. Nos primeiros seis a doze meses de prática podemos sofrer muito porque começamos a nos enxergar com mais nitidez e a reconhecer o que realmente estamos fazendo. Rotulamos os pensamentos, por exemplo: “Eu queria que ele sumisse do mapa!”, ou “Não consigo mais agüentar o jeito como ela arruma os travesseiros!”. Num retiro intensivo, esses pensamentos têm a tendência de se multiplicar conforme vamos ficando cansados e irritadiços. Nos primeiros seis a doze meses, abrirmo-nos para nossa vida interior pode ser um grande choque. Embora esse seja o primeiro estágio da prática, resíduos dele permanecem nos dez ou quinze anos seguintes, conforme continuamos a nos conhecer cada vez mais.
No segundo estágio, que começa de maneira típica no segundo ano e se estende até o quinto, começamos a romper os elos dos estados emocionais, decompondo-os em seus componentes físicos e mentais. Conforme prosseguimos rotulando pensamentos, e quando começamos a saber o que significa vivenciar a nós, nosso corpo e aquilo que chamamos de o mundo externo, os estados emocionais lentamente começam a se desfazer. Nunca desaparecem por completo, porém. A qualquer momento, podemos voltar com tudo para o estágio anterior – e isso nos acontece com grande freqüência. Mesmo assim, estamos começando um novo estágio. A demarcação entre estágios nunca é precisa, claro. Cada um flui no seguinte. É mais uma questão de ênfase.
O estágio um é o começo da conscientização do que está se passando e do mal que isso causa. No estágio dois, somos motivados a desfazer os elos das reações emocionais. No estagio três, começamos a encontrar alguns momentos de puro vivenciar sem os pensamentos autocentrados: apenas o puro vivenciar em si. Em alguns centros zen, esses estados são às vezes chamados de experiências de iluminação.
No estágio quatro, de maneira lenta e firme nos encaminhamos para um estado não-dual de vida em que a base do existir é vivencial, em vez de ser dominado por falsos pensamentos. É importante lembrar que são anos e anos de prática implicados em todos esses estágios.
No estágio cinco, 80 a 90% da vida é vivida de maneira vivencial. Agora viver é algo muito diferente do que costumava ser. Podemos dizer que essa é uma vida do não-ego, porque o pequeno eu, aquele preenchimento emocional através do qual víamos a vida e que nos fazia despencar, praticamente se foi. Nessa fase, é impossível o discípulo viver como no pré-caminho, ficando prisioneiro de tudo e nas malhas de suas reações emocionais. Mesmo que a pessoa quisesse reverter do estágio cinco para o pré-caminho, ela não o conseguida. No estágio cinco, estão muito mais fortes a compaixão e a valorização da vida das outras pessoas. Nesse estágio, é possível ser professor e ajudar os outros que se encontram em outros momentos do caminho. Os que chegaram no estágio cinco provavelmente já são professores de um jeito ou de outro. Frases como “Eu não sou nada” (e “Portanto sou tudo”) não são mais destituídas de sentido, como frases literárias de efeito, mas coisas que a pessoa sabe intuitivamente. Esse conhecimento não é nada especial ou exótico.
Do ponto de vista teórico, existe um sexto estágio, o estado de buda, em que a vida transcorre toda em estado vivencial puro. Não o conheço e duvido que alguém o atinja por completo.
De longe o mais difícil de tudo é saltar do estágio um para o dois. Primeiro, devemos tomar consciência de nossas reações emocionais e de nossa tensão corporal, de como nos desincumbimos de tudo em nossas vidas, mesmo que ocultemos as nossas reações. Temos que nos encaminhar para a mais nítida conscientização possível, rotulando os nossos pensamentos e começando a sentir a tensão no corpo. Resistimos a realizar esse trabalho porque ele começa a dilacerar quem nós pensávamos ser. Nesse estágio, é útil tomar consciência de nosso temperamento básico, de nossa estratégia para enfrentar a pressão de nossas vidas. A psicoterapia também pode ser proveitosa nesse estágio se for inteligente. A boa terapia ajuda-nos a aumentar nosso campo de consciência. Infelizmente, terapeutas bons de verdade são até certo ponto raros e a maior parte das terapias não é inteligente e inclusive incentiva a jogar culpa em outros.
Nesse cenário de lutas que é a transição do estágio um para o dois, começamos a nos dar conta de que temos escolha. Qual é essa escolha? Uma é a recusa de praticar: “Não vou mais rotular esses pensamentos; é um tédio. Vou só me sentar e ficar sonhando com alguma coisa agradável”. A escolha é permanecer atolado e continuar sofrendo (o que, infelizmente, significa que faremos os outros sofrer também) ou encontrar a coragem para mudar. Onde encontrar essa coragem? Ela aumenta conforme nossa prática continua e começamos a tomar consciência de nosso próprio sofrimento e (se formos de fato persistentes) do sofrimento que causamos às outras pessoas. Começamos a perceber que, se recusarmos a batalhar aqui, causaremos danos à vida. Temos de fazer uma escolha entre viver uma vida dramática e autocentrada e outra baseada na prática. Adiantar-se de maneira firme do estágio um para o dois implica que nosso drama tem, lentamente, de chegar ao fim. Do ponto de vista do pequeno eu, esse é um sacrifício tremendo.
Quando estamos nos debatendo entre o estágio um e o dois, fazemos julgamentos morais: ”Ele realmente me deixa irado!”; “Sinto-me rejeitada!”; “Sinto-me magoado”; “Estou aborrecida e ressentida”; “Sinto vontade de me vingar”. Essas sentenças brotam de nossas emoções. Todas são muito saborosas e até sedutoras: elaboramos um drama de primeira em cima de nossa posição de vítimas da vida, do que aconteceu conosco, de como tudo é dificílimo. Apesar de nosso sofrimento todo, na verdade adoramos ser o centro de tudo isso: ”Sinto-me deprimida”; “Sinto-me entediada”; “Sinto-me aborrecido”; “Sinto-me irritado”; ”Sinto-me excitada”. Esse é o nosso drama pessoal. Todos temos versões de um drama pessoal, e são necessários anos de prática antes de nos sentirmos dispostos a considerar seriamente abandoná-lo. As pessoas deslocam-se em velocidades diferentes devido a diferenças de histórico pessoal, de força, de determinação. Ainda assim, se formos persistentes, começaremos a mudar do estágio um para o dois.
Quanto mais clara for a inserção no estágio dois, começam a suceder cada vez mais períodos em que nos encontramos dizendo: “Oh, tudo bem. Não sei por que pensei que isso fosse um grande problema”. Descobrimos que vemos tudo com uma compaixão crescente. Esse processo nunca chega a ficar completo ou a finalizar. Em qualquer momento podemos mergulhar de volta no estágio um. Mesmo assim, no geral, nossa capacidade de apreciação aumenta e descobrimos que podemos valorizar pessoas que antes não conseguíamos nem sequer suportar. Numa boa prática, existe um movimento quase que inexorável, mas devemos estar dispostos a passar tanto tempo quanto seja preciso em cada passo. O processo não pode ser apressado.
Enquanto insistirmos nos julgamentos emocionais que mencionei (e pode haver infinitas variações dos mesmos), podemos estar seguros de que não estamos instalados com firmeza no estágio dois. Se ainda acreditamos que uma outra pessoa nos faz sentir raiva, por exemplo, precisamos reconhecer exatamente qual é o nosso trabalho. Nosso ego é muito poderoso e insistente.
Quando nos deslocamos para o estágio três, estamos aos poucos deixando para trás o estágio dualista dos julgamentos -ter pensamentos, emoções, opiniões a respeito de nós e dos outros, de tudo e do mundo – e nos encaminhamos para uma vida menos dualista e mais satisfatória. Os casais discutem menos entre si, começamos a deixar mais em paz os filhos; os problemas que estamos enfrentando se atenuam quanto mais rápido percebemos o que é apropriado para ser feito. Alguma coisa está de fato mudando. Quanto tempo isso tudo leva? Cinco anos? Dez anos? Depende da pessoa.
O continuum da prática poderia ser dividido de diferentes maneiras. Poderíamos simplificar a análise com uma analogia:
primeiro, existe o solo, que é aquilo que somos neste momento do tempo. O solo pode ser de argila ou areia, rico em húmus e adubo. Pode atrair quase nenhuma minhoca, ou muitas minhocas, dependendo de sua fertilidade. O solo não é nem bom, nem mau; é aquilo com que deparamos como ponto de partida para trabalhar. Não temos praticamente nenhum controle sobre o que os nossos pais nos deram em termos de hereditariedade e condicionamento. Não podemos ser nada além do que somos neste preciso momento. Temos coisas por aprender, sem dúvida; mas a qualquer ponto do processo somos quem somos. Pensar que deveríamos ser qualquer outra coisa é ridículo. Simplesmente praticamos com aquilo que somos. Esse é o solo.
Ao nos entregarmos ao trabalho de cultivo do solo estamos cobrindo aqueles que denominei estágios dois a quatro. Trabalhamos com o que é o chão – as sementes, o adubo, as minhocas -‘ arrancando as ervas daninhas, podando, usando métodos naturais para produzir uma boa safra.
Do solo que foi cultivado vem uma colheita que começa a mostrar-se bem evidente no estágio quatro e aumenta daí em diante. A colheita é a paz e o contentamento. As pessoas queixam-se para mim dizendo: “Ainda não sinto contentamento em minha prática”, como se ela lhes fosse proporcionar essa vivência. Quem nos dá esse contentamento? Nós nos oferecemos essa vivência por meio de uma prática incansável. Não é algo que possamos esperar ou exigir. Aparece quando aparece. Uma vida de contentamento não significa que estejamos sempre felizes e nada mais. Significa apenas que a vida é rica e interessante. Podemos até detestar certos aspectos do viver, mas cada vez mais é algo satisfatório de se viver, num plano geral. Não nos engalfinhamos mais com a vida.
Resumindo: o primeiro estágio consiste em nos conscientizarmos do que somos emocionalmente, incluindo nosso desejo de controlar. O segundo estágio é decompor as reações em seus componentes físicos e mentais. Quando esse processo começa a tornar-se um pouco mais adiantado, começamos – no terceiro estágio – a passar alguns momentos em puro vivenciar. Agora o primeiro estágio parece bastante remoto. No quarto estágio, movimentamo-nos com mais liberdade no sentido de viver vivencialmente, afastando-nos dos esforços para tanto. No quinto estágio, a vida vivencial está agora instalada com firmeza. De 80 a 90% do tempo, a pessoa está vivenciando seu viver. O tempo do pré-caminho – cativo das emoções pessoais e transferindo-as para os outros, pensando que a culpa de nossas dificuldades é alguém que não nós – agora é impossível de ser retomado. A partir do estágio dois em diante, a compaixão e a apreciação dos outros começam a crescer.
ALUNO: A sua descrição dos estágios da prática é muito útil. É como um mapa: não nos diz como chegar ao fim, mas nos permite saber onde nos encontramos ao longo do percurso.
JOKO: Como alguém “chega ao fim” depende de cada pessoa. Todos somos diferentes e os padrões de ego variam de pessoa a pessoa. Ainda assim, é útil ter uma imagem do padrão geral.
O que descrevi é bastante parecido com as dez figuras clássicas da seqüência do touro e do homem, mas veio apresentado em termos mais psicológicos porque essa forma de abordagem é mais conhecida hoje em dia. No fundo, porém, prática é prática; precisamos entrar com tudo o que somos. Temos simplesmente de fazê-la. C, E, O. C, E, O. C, E, O.