Os tomateiros rivais
Há alguns instantes recebi um telefonema de uma amiga da costa leste que está morrendo. Ela disse que talvez tenha mais três ou quatro dias de vida e que estava telefonando para dizer adeus. Depois dessa ligação, lembrei-me da preciosidade desta jóia que chamamos vida – e de quão pouco sabemos a seu respeito ou a apreciamos. Mesmo que saibamos um pouco, como é pouco o quanto cuidamos dela!
Algumas pessoas, em especial as que pertencem a comunidades espirituais, podem imaginar que a jóia da vida nunca tem conflitos, discussões ou transtornos – que é só calma e paz. Esse é um grande engano porque se não entendemos como o conflito é gerado, podemos fazer com que a nossa vida entre em rota de colisão com a vida dos outros. Primeiro, precisamos ver que todos sentimos medo. Nosso medo básico é o de morrer, e este está na base de todos os outros. Nosso medo de sermos pessoalmente aniquilados leva-nos a condutas inúteis, entre as quais o esforço de proteger nossa auto-imagem, o ego. Dessa necessidade de proteção vem a raiva. Da raiva nasce o conflito. E o conflito destrói nossos relacionamentos com os outros.
Não estou querendo dizer que uma boa vida não tenha acaloradas discussões, desacordos; isso é bobagem. Quando eu era menina conheci muito bem dois senhores e suas famílias. Estas eram amigas e era comum sairmos juntos para passeios de fim de semana. Esses dois homens competiam em todas as oportunidades, mas mais especialmente na temporada do tomate. Apresentavam suas safras na feira local. Suas discussões a respeito de seus tomates eram clássicas: iam erguendo a voz até as paredes começarem a tremer. E, na realidade, os dois ganhavam o prêmio de “O Melhor Tomate da Feira”. Era uma delícia vê-los porque os dois sabiam que aquele bate-boca era só para brincar. O teste de um bom conflito, de uma boa troca de opiniões, é que quando o conflito termina não resta frieza ou amargor, nenhum apego à idéia do “eu ganhei, você não”. Tudo bem discutir, mas apenas se for por diversão. Se temos uma discussão com alguém que nos é próximo, mas, depois de tudo supostamente perdoado e esquecido, continuamos frios e distantes, então está na hora de olharmos mais de perto essa situação.
Um verso do Tão Te Ching afirma: “O melhor atleta quer que seu adversário esteja em sua melhor forma. O melhor general entra na mente de seu inimigo. O melhor negociante serve ao bem comunitário. O melhor líder segue a vontade do povo”1. Todas essas pessoas entendem o que é a competição. Não é que evitem competições, mas competem com espírito esportivo. Nesse sentido são como as crianças, em harmonia com o Tão. Se nossas discussões se dão nesse sentido, tudo bem. Mas quantas vezes isso acontece?
Suzuki Roshi foi interpelado certa vez se a raiva poderia ser como um vento puro que varre e deixa tudo limpo. Ele disse: “Sim, mas não creio que você precise se preocupar com isso”. Ele disse que nunca tinha sentido uma raiva que fosse como o vento puro. E a nossa raiva com certeza não é pura também porque existe medo por trás dela. Enquanto não entrarmos em contato com o nosso medo e o vivenciarmos por inteiro, nossa raiva será capaz de causar danos.
Um bom exemplo está em nosso esforço para sermos honestos. A honestidade é a base absoluta de nossa prática. Mas o que isso quer dizer? Vamos supor que dizemos para alguém: “Quero ser honesto com você. Quero lhe contar como vejo o nosso relacionamento”. O que dissermos pode ser proveitoso. Porém, muitas vezes nossos esforços de honestidade não vêm da verdadeira honestidade, mas de um espírito de brincar, de incluir o outro – mesmo que possamos fingi-lo. Enquanto tivermos a menor intenção que seja de ter razão, de mostrar ou ensinar algo para o outro, precisamos nos acautelar. Enquanto nossas palavras tiverem a menor ligação que seja com o ego, serão desonestas. As palavras verdadeiras vêm quando entendemos o que é saber que estamos com raiva, saber que estamos com medo, e esperar. Dizem as antigas palavras: “Você tem a paciência de esperar até que sua mente aquiete e a água fique clara? Você consegue se manter imóvel até que a ação correta apareça por si?”. Esse é um modo maravilhoso de apontar o “x” da questão: será que conseguimos ficar em silêncio por um momento até que as palavras justas apareçam por si – palavras honestas, que não magoam os outros? Essas palavras podem ser muito francas. Podem comunicar exatamente o que queremos dizer. Podem inclusive ser as mesmas palavras que teríamos falado a partir de nosso ego, mas haverá uma diferença. Viver desse jeito não é fácil. Ninguém consegue fazê-lo o tempo todo. Nossa primeira reação vem da autopreservação e do medo, e então a raiva salta bem no meio da cena. Nossos sentimentos foram feridos, estamos com medo, ficamos com raiva.
Se tivermos paciência de esperar até que a lama (nossa mente) decante e a água fique límpida, se permanecermos imóveis até que a ação correta surja por si, as palavras certas aparecerão, sem que precisemos pensar nelas. Não precisaremos justificar aquilo que estamos dizendo usando múltiplas razões; não teremos quaisquer razões. As palavras certas se farão dizer se tivermos nos aquietado. Não conseguimos isso sem uma prática sincera. Pode não ser uma prática formal; às vezes, apenas respiramos fundo, esperamos um minuto, sentimos como vão as coisas bem no meio de nossa barriga e então é que falamos. Por outro lado, se estamos tendo um grande conflito com uma pessoa, talvez precisemos de mais tempo. Pode ser melhor às vezes não dizer nada durante um mês.
Meus velhos amigos que discutiam por causa dos tomates não tinham nenhuma intenção de causar dano. Apesar de todo o barulho, não havia realmente a participação de seus egos. Já vinham jogando aquele jogo havia anos. Muitas vezes ouço dos alunos histórias a respeito de seus amigos, do que deu errado, e do que querem fazer para “acertar” a situação. “Meu amigo fez uma coisa ruim. Meu amigo não me ajudou. Vou mostrar para ele como é que estou me sentindo.” Acerca de tais situações Jesus disse: “Que atire a primeira pedra aquele que não tiver pecado”. Todos temos falhas. Eu tenho falhas; você também. Todos temos falhas. Contudo, o nosso ego nos diz que só o outro está errado. Grande parte daquilo que chamamos de comunicação com os outros durante nossos conflitos acaba sendo, no fundo, dizer-lhes como são falhos. Então eles, muito natural mente, querem nos dizer como nós temos falhas. E assim vai, de lá para cá, de cá para lá. Nada de útil está sendo comunicado. As pessoas que estão falando são como dois navios que passam um pelo outro à noite. As pessoas se negam a esperar até que a lama assente, porém. Temos medo de que os outros se aproveitem de nós. Mas será que isso pode mesmo acontecer?
ALUNO: Não podem se aproveitar de nós, mas com certeza nos sentimos assim uma grande parte do tempo.
JOKO: Sim, é comum sentirmos que estão se aproveitando de nós. Vamos supor uma pessoa que nos deve dinheiro e não paga. Ou que alguém deixa de cumprir uma promessa que nos fez. Ou que alguém fala de nós pelas costas. E por aí vai; todos nós fazemos essas coisas. Será que essas condutas são suficientes para se abandonar um amigo, um marido ou mulher, um filho, ou pai ou mãe? Teríamos nós a paciência de esperar até que nossa lama assentasse e a água estivesse clara? Conseguiríamos manter-nos imóveis até que a ação adequada aparecesse por si? Às vezes, ficamos com raiva de nós. Quando isso acontece, costumamos empregar palavras falsas e que brotam de nossa propensão a nos sentirmos magoados ou prejudicados. Em vez de dirigir a alguém a nossa ira, nós a reencaminhamos para nós mesmos. Mas só segundo o Tao – o vazio, o silêncio – é que as palavras justas e a ação justa podem aparecer. As palavras e condutas justas são o Tao.
Quando leciono, tenho menos interesse nos conflitos que os alunos vivem e mais no caráter de suas palavras e de onde elas procedem. No caso das pessoas que têm praticado por algum tempo, as palavras podem parecer melhores, mas ainda vêm do lugar errado. “Eu sei que é tudo eu. Eu sei que não tem nada que ver com você. Não pretendo ser ranzinza nem intrometido, mas…” O julgamento ainda está presente, apenas disfarçado. Poderiam ter apenas dito: “Mas que droga! Por que é que você não pega e arruma suas roupas?”. Embora seja bom que as roupas estejam arrumadas, não é desse jeito que se faz isso acontecer. Conseguiríamos nos manter imóveis, de boca fechada, até que a ação e as palavras justas aparecessem por si? A maior parte do tempo não há perigo em não se fazer nada. Quase tudo o que fazemos não faz muita diferença, de qualquer maneira, nós apenas achamos que faz.
Somos pessoas zangadas porque estamos todos assustados, Felizmente, temos em geral a oportunidade de praticar com a raiva, com as pessoas que são difíceis para nós. Podemos tentar lidar com elas eliminando-as de nossas vidas. Por que fazemos isto?
ALUNO: Para facilitar a nossa vida.
ALUNO: Porque pensamos que elas são a causa do nosso problema.
ALUNO: Porque elas não fazem o que queremos que façam.
ALUNO: Porque talvez elas nos mostrem algo a nosso respeito que não queremos enxergar.
ALUNO: Para evitarmos a nossa própria culpa.
ALUNO: Poderíamos estar querendo puní-las.
ALUNO: Talvez na última vez em que estivemos juntos tenha sido tão confuso e doloroso que não queremos nos aproximar outra vez.
JOKO: Precisamos estar dispostos a descansar na confusão e no incômodo, deixando a lama assentar até conseguirmos ver com mais nitidez. Com essa espécie de prática, podemos descobrir a jóia preciosa de nossa vida; haverá então uma ausência de altercações. Ainda poderemos ter discussões, como os tomateiros rivais – mas por espírito esportivo. Quando estudamos a raiva a fundo, ela desaparece. Como disse Dogen Zenji, estudar o budismo é estudar o eu, e estudar o eu é esquecer o eu. Quando nossa raiva se dissipa num nada, não há problema. A ação correta aparece por si. Em retiros intensivos, esse processo é acelerado. O eu autocentrado torna-se mais transparente, mais nítido, e assim podemos nos assentar bem no meio dele. Conforme a lama decanta e a água fica límpida novamente, podemos enxergar a jóia – quase como se estivéssemos em águas tropicais e conseguíssemos olhar bem no fundo e ver as plantas e os peixes coloridos. Então podemos falar as palavras verdadeiras, em oposição às autocentradas, que sempre criam desarmonia.
ALUNO: Joko, o que você diz para alguém que está morrendo?
JOKO: Não muito, ou “eu amo você”. Mesmo quando estamos morrendo ainda queremos fazer parte da experiência humana.
ALUNO: Algumas vezes, quando tenho um conflito, se consigo sair e dizer algo da melhor maneira possível, mesmo quando não sai perfeito, aprendo muita coisa a meu respeito que não queria saber e isso é muito valioso. Então posso ser honesto a respeito disso, em vez de esperar.
JOKO: Sim, eu entendo. Quando eu digo para esperar, não estou falando de uma fórmula. Estou falando de uma atitude de aprendizagem. Às vezes é útil dizer algo antes que a lama assente; depende da atitude, do espírito das palavras. Mesmo que o espírito esteja um pouco torcido, se estamos aprendendo depressa enquanto agimos isso também pode ficar bem. Se agirmos de maneira imprópria, então nos desculpamos. Deveríamos estar sempre prontos para nos desculpar. Todos temos coisas de que pedir desculpas.
ALUNO: Eu muitas vezes penso que estou sendo honesto e só mais tarde é que percebo que estava enganando a mim mesmo.
JOKO: Sim. O teste de um bom conflito – em contraste com o conflito que causa dano – é que não restam resíduos depois. Todos se sentem bem mais tarde. Está tudo claro. Acabado. O clima fica agradável. É maravilhoso, mas raro.
ALUNO: Parece que existem algumas coisas, no entanto, que simplesmente não conseguimos consertar.
JOKO: Não estou falando de consertar coisas; isso é tentar controlar o mundo, dirigir o universo.
ALUNO: Às vezes permito que as pessoas abusem de mim. Quando faço isso, é importante falar e colocar um limite. Quando faço isso costumo obter bons resultados.
JOKO: Tudo bem falar e esclarecer, se o fizermos com as palavras verdadeiras. E se sentimos que abusaram de nós, precisamos reconhecer que talvez tenhamos consentido com esse abuso. Quando vemos isso, pode vir a ser desnecessário dizer qualquer coisa. Em vez de tentar educar ou salvar a outra pessoa (o que nunca é algo que nos diz respeito), podemos apenas aprender.
Nota:
1 – Tão Te Ching: A new English version, with foreword and notes, por Stephen Mitchell, Nova York: Harper & Row, 1988, p. 68.