Qual é o caminho?

Nós sofremos e reclamamos. Isolados, mal-compreendidos, alheios, sozinhos, fazendo um pouco de bem, evitando um pouco o mal, parecemos abandonados pelo que há de melhor. É como se uma luz que deveria estar brilhando se apagasse e fôssemos tragados pelo lusco-fusco do sofrimento. A vida é baseada no sofrimento e o sofrimento é subjacente a tudo que fazemos. Sofremos porque temos fome e sofremos porque estamos saciados, sofremos por ter e por sentir falta. Sofremos por causa do amor, por medo de vir a perder o que amamos, e sofremos quando odiamos. Há um ciclo constante de medo, ódio, avidez, tédio, esperança, desespero. Há é verdade, períodos de prazer que vêm como oásis no deserto. Podem ser puros, não contaminados, mas causam-nos sofrimento por sua própria beleza. Passamos a viver no amanhã, o amanhã se torna uma doença. Vivemos na esperança; a esperança nos sustenta: algo por que ansiar, algo a agarrar. E assim, sendo usada e maltratada, a esperança é destruída. A vida pode ser dolorosa agora, dizemos, mas isso ocorre porque temporariamente as coisas não estão bem como deveriam. Quando conseguir aquele novo emprego ou aquela nova casa, meu diploma, namorado/a, mais dinheiro, outro diploma minha vida vai se estabilizar – calma, serena, e feliz. A dor, acreditamos, é um acidente, uma intromissão, uma trapalhada de um destino descuidado. […] mas, mesmo assim, por trás do temor – vislumbramos às vezes, por assim dizer, pelo canto do olho – que há alguma coisa, alguma esperança, e a fé nunca está totalmente perdida. […]

Por que esta fé de que existe uma saída? Por que esta constante, mesmo que disfarçada, busca pelo caminho? […]
Por que esta convicção, em tantas pessoas, de que não é necessário ser assim? Por que a crença de que esta vida amarga num mundo estranho não é tudo, de que há um lar, um caminho para casa, mesmo que visto através de lentes açucaradas? […]

Apesar de toda evidência da experiência, nossa e de outros, a maioria, senão todos nós estamos plenamente convencidos de que a paz e a satisfação são nosso verdadeiro legado, mesmo que vivamos na miséria e em desespero, proclamamos que a vida não é tão ruim. Quando o mestre Joshu pergunta “Qual é o caminho?” ele o faz como qualquer um, como você e eu, e ele pergunta por que sabe, lá no fundo, que há um caminho. […]

Quando vamos a um mestre, esperamos por boas novas. Não importa quão tediosa ou apavorante seja a nossa vida, não importa quanta ansiedade, e raiva sintamos, temos um “instinto” que nos diz que, se ele for de fato um verdadeiro mestre, um que até certo ponto alcançou a verdade, então ele terá uma mensagem de conforto e alegria.
Foi com certeza esse “instinto’ que deu forças a Joshu, enquanto prosseguia com dificuldades, ardendo com a sede pela verdade, que o ajudou ao longo de todos aqueles quilômetros intermináveis e solitários de inverno e de luta. Podemos imaginá-lo ensaiando seu encontro: ora dizendo isso, ora aquilo, mas sempre com seu mestre Nansen dizendo as palavras confortadoras. Mas o que é que Nansen diz?

Joshu perguntou ”Qual é o caminho?”
Nansen disse: “A mente comum é o Caminho” […]

Por fim, você ouve falar de um mestre Zen que tem todas as respostas. Ele mora a algumas centenas de quilômetros, o que vai lhe custar uma semana ou mais de extenuante caminhada para ir até ele. Bem, farei isso! Se ele tiver as respostas, é o lugar para onde ir. De modo que você arruma sua trouxa, pega algum dinheiro, e começa a andar. […]

Por fim você chega lá, o encontra, ele está vivo e o receberá. E então: “Qual é o Caminho?” – “A mente cotidiana é o Caminho”.
O que você sente? O que você faz? Ele não sabe as respostas, o que ele quer dizer? Estará me testando? Quer dizer alguma outra coisa? Porque não dá uma resposta direta? […]

Pode também ser bom fazer uma pausa para ver o que Nansen não quis dizer com o seu “A mente de todo o dia é o Caminho”.
Um mestre, no seu comentário sobre esse koan, afirmou que Nansen quis significar a mente cotidiana expurgada de sua avidez, raiva, e ignorância, já liberta das amarras da ansiedade e da dor. Mas, então, ela não é mais a mente comum! Ou se for, a próxima questão de Joshu teria de ser “Como é que se expurga a mente desse jeito? Como se vai da mente para a Mente?”. Mas, Nansen está dizendo que “mente é Mente”. Não há Caminho de mente para Mente. “Qual é o Caminho?” significa “Como me livro de todo este entulho que carrego por aí comigo?”.
Algumas pessoas interpretam Nansen como dizendo que a mente comum é a mente medíocre. Acham que o desenvolvimento e o uso de qualquer talento ou capacidade as afastariam da “mente comum”. Mas, para um professor universitário, a mente comum é ser um professor universitário, a mente comum é ser um professor universitário na mesma medida que ser um garçom é a mente comum para o garçom. Um presidente de uma empresa tem os problemas de um presidente de empresas. Biscateiros têm os problemas de biscateiros. […]

Ainda outros dirão que se o Zen é a mente comum, então não há nada de que precisemos fazer, nada que tenhamos que aprender. Instrutores espirituais e guias ao longo do caminho são desnecessários. Alguns destes irão até citar um famoso diálogo entre o mestre Hyakujo e seus monges: “Vocês são um bando de comedores de bagaço!” (i.é., que comem os restos depois de extraído o suco). “Porque perdem seu tempo fazendo peregrinações por aí? Não sabem que em toda terra de Tang não há nenhum professor de Zen?” Um monge aproximou-se e disse: “Mas com certeza há os que instruem discípulos e dirigem comunidades?” Hyakujo disse: “Sei disso. Não digo que não há Zen; é só que não há mestres Zen”. […]

Hyakujo não está desmerecendo os professores Zen, nem o ensinamento, nem os monges. Não está dizendo que a religião, os templos, a educação nos conduziram a esta confusão pavorosa. Há uma ironia em um mestre falar de outros mestres da maneira que Hyakujo faz. Uma ironia que é plenamente exposta em: “Não digo que não há Zen; é só que não há mestres Zen”. É parcialmente desta ironia, onde as palavras e a situação referida pelas palavras estão em conflito, que a afirmação de Hyakujo obtém sua força sutil. De uma forma semelhante Nansen empurra Joshu na direção de um conflito final ao dizer “A mente de todo o dia é o Caminho”. O uso da ironia dessa forma dá uma qualidade expansiva ao ensinamento que é dado. É como um gongo que é tocado e continua a reverberar. Mas para verdadeiramente se juntar a Hyakujo, deve-se prosseguir para além desta ironia. É verdade que “Não há mestres de Zen”. Mas de que forma é verdade? É verdade que a mente cotidiana é o Caminho, mas como podemos ver esta verdade? […]

Quantas pessoas podem tolerar a noção de serem iguais a todos os outros? Mas isto, diz Nansen, é onde começa e termina. Muitas têm a esperança de que o treinamento espiritual, o Zen, as tirará fora do ciclo comum da vida, que elas, em certo grau, se tornarão extraordinárias, especiais, ou que esperienciarão estados mentais extraordinários, beatitude perpétua, um “êxtase” incessante. No entanto, é precisamente este desejo que é a primeira e maior barreira à verdadeira prática. Humildade é aceitar que se é comum, nem melhor nem pior que o comum, mas comum. […]

Mas, esta mente comum, desprezada, escarnecida, e temida, quão difícil é de ser alcançada, quão facilmente é deixada de lado. A mente comum é até mesmo a mente dos julgamentos, opiniões, crenças e dogmas. Nós a julgamos má e procuramos pelo que é elevado, espiritual, bom. Este julgá-la como má, esta busca pelo que é elevado, esta busca pelo caminho, é a mente cotidiana. O “caminho da mente cotidiana” não é um caminho fácil. […]

Então o que Nansen quer dizer quando diz “A mente cotidiana é o Caminho”? Joshu também ficou perplexo porque teve de perguntar “Então como é que adentramos no Caminho?” Nansen disse: “No momento em que você se direciona para ele, você se afasta dele. Quanto mais você procura, mais ele foge”. Podes ver o que Nansen está fazendo? Podes ver com que firmeza sem remorso ele segura Joshu? Ele é como um buldogue com enormes mandíbulas. Joshu está encurralado. Nada que Nansen dissesse poderia ser mais direto ou despretensioso, mas não deve haver nem sequer um piscar de olhos. […]

Joshu está perguntando: como se trabalha para alcançar a verdade? E Nansen diz que até mesmo erguer uma mão, bane a verdade para sempre.
Joshu devia estar transpirando a essa altura e se sai com a pergunta seguinte: “Se não experimentarmos, como saberemos que é o Caminho?”. Esse é o eixo sobre o qual todo o koan gira. É como um divisor de águas. […]

Se a mente cotidiana é o caminho – escovar os dentes, ir ao banheiro, comer, andar, se apaixonar, ter sucesso, fracassar, adoecer, ficar zangado, se desesperar, ter esperança – se tudo isso é o Caminho, como podemos saber que é o caminho se não podemos nos esforçar?
A palavra chave é “saber”. “Como podemos saber que é este o Caminho?” Nansen se apodera dessa palavra e com um golpe de espada corta a confusão de Joshu. “O Tao não pertence ao saber ou ao não-saber. O conhecimento é uma ilusão; o não-saber é um ‘branco’”. […]

Alguém perguntou a Baso “O que é Budha?” esta é uma outra maneira de dizer “Qual é o Caminho?”. Baso respondeu “Esta mente mesma é o Caminho”. Se a mente não tem a ver com saber ou não-saber, tem relação com quê? A mente é cognição. Não há maneira de se aproximar de Nansen através de uma análise de palavras e estruturas lógicas. Para se tornar um com Nansen é necessário abrir o olho interior. Uma vez aberto esse olho, a verdade está em toda a parte. O que há para saber, como se pode não saber? Um peixe vive na água, um pássaro vive no ar. Para onde quer que olhemos, aí está ela. Uma canção Hindu diz “Meu amor está em meus olhos, é por isso que o vejo em toda a parte”. Se a mente é cognição, o que há para saber? Se você realmente alcançar esta mente isenta de dúvida, será como o grande vazio, tão vasto, tão ilimitado. Como pode haver qualquer divisão nesta mente ou no Tao?
O Caminho é a mente comum: a discussão com um amigo a xingação de um vizinho, a crítica de um chefe. É como o grande vazio, tão vasto, tão ilimitado. Não é que primeiro você tenha um e depois tenha o outro.

“Todos os sistemas de ensinamento budista estão na mente, onde tesouros incomensuráveis se originam. Todas as suas faculdades sobrenaturais e suas transformações reveladas na disciplina, meditação e sabedoria estão suficientemente contidas em nossa mente e nunca saem de lá. Todos os obstáculos para se chegar à pura cognição, que surgem das paixões que geram karma, são originalmente inexistentes. Toda causa e efeito não passa de um sonho. Não existe mundo comum para se largar, nem pura cognição para procurar. O mundo interior e o mundo exterior profano são uma única e mesma coisa. O Tao é sem forma e ilimitado. Está livre de pensamento e ansiedade”.
“Quando tiver entendido este ensinamento budista verá que não falta nada em você, e você mesmo não difere do Budha”. […]

Embora Joshu tenha enxergado dentro da mente de Nansen e se tornado um com ele naquele momento, ainda assim, levou 25 anos para compreender o que tinha visto, e outros 30 anos para poder reivindicar isto para si.

Trechos retirados do livro:
PENSANDO ZEN
de Albert Low – Ed. Bodigaya

Print Friendly, PDF & Email

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *