Suzuki Roshi disse: "A renúncia não consiste em desistir das coisas deste mundo, mas em aceitar que elas se vão". Tudo é impermanente; cedo ou tarde, tudo se vai. Renúncia é um estado de desapego, de aceitação das partidas. Impermanência é, aliás, apenas um outro nome para perfeição. As folhas caem; o lixo e os detritos se acumulam; dos fragmentos de rocha nascem as flores, as folhagens, as coisas que consideramos adoráveis. A destruição é necessária. É necessário um grande incêndio nas matas. O modo como interferimos nos incêndios florestais pode não ser uma boa atitude. Sem destruição não pode haver vida nova. A maravilha do viver, a constante mudança, poderia não existir.
Devemos viver e morrer. Esse processo é a própria perfeição.
Toda essa mudança, porém, não é o que temos em mente. Nosso impulso não é apreciar a perfeição do universo. Nosso impulso pessoal é encontrar uma maneira de sustentar para sempre nossa glória imutável. Pode parecer ridículo, mas é o que passamos fazendo o tempo todo. Essa resistência a mudanças não está em sintonia com a perfeição da vida, que é a impermanência. Se a vida fosse permanente não poderia ser a maravilha que é. No entanto, a última coisa que apreciamos é nossa própria impermanência. Quem não notou seus primeiros fios de cabelo branco sem comentar com os próprios botões "Hum…". Há sempre uma luta em andamento dentro da existência humana. Recusamo-nos a ver a verdade que está toda à nossa volta. Realmente não vemos de jeito nenhum a vida. Nossa atenção está dirigida em outro sentido. Estamos sempre envolvidos numa batalha interminável com nossos receios a respeito de nós mesmos e de nossa existência. Se quisermos ver a vida, deveremos prestar-lhe atenção. Mas não estamos interessados nisso, só temos interesse pela batalha de preservação de nossas pessoas, para todo o sempre. E claro que essa é uma luta ansiosa e inútil que não pode ser vencida jamais. Quem sempre vence é a morte, "braço direito" da impermanência.
O que desejamos que a vida nos dê é que os outros, como espelhos, reflitam nossa glória. Queremos que o parceiro garanta nossa segurança, que nos faça sentir que somos maravilhosos, que nos dê o que desejamos, para que então nossa ansiedade se amenize um pouco. Procuramos amigos que, no mínimo, neutralizem a faca afiada de nosso medo de que não estaremos mais por perto, a partir de um certo dia. Não queremos ver isso. O mais engraçado é que nossos amigos não se deixam enganar por nós. Eles vêem exatamente o que estamos fazendo. Por que o vêem com tanta clareza? Porque também estão fazendo a mesma coisa. Não estão interessados em nossos esforços para sermos o centro do universo. Apesar disso, dedicamo-nos a essa batalha sem cessar. Ocupamo-nos de um modo frenético o tempo todo. Quando falham nossas tentativas para vencer a luta, podem tentar a paz na falsa forma de uma religião. As pessoas que oferecem essa saída tornam-se ricas. Ficamos desesperados para que alguém nos diga:
"Está ótimo. Tudo será maravilhoso para você". Mesmo na prática zen tentamos encontrar um meio de esquivar-nos à prática genuína para que possamos alcançar uma vitória pessoal.
As pessoas costumam me falar: "Joko, por que você pratica de um modo tão árduo? Por que não enfeita um pouco a coisa?". Do ponto de vista do pequeno eu, a prática só pode ser árdua. A prática aniquila o pequeno eu, que não tem o menor interesse por ela. Não se pode esperar dele que saúde essa aniquilação com grandes demonstrações de alegria. Por isso, não há o que enfeitar para agradar o pequeno eu, a menos que queiramos ser desonestos.
Há, contudo, um outro lado da prática. Quando nosso pequeno eu morre nosso irado, exigente, queixoso, manipulador pequeno eu aparece um enfeite genuíno: alegria e autoconfiança autênticas. Começamos a saborear o que é realmente se importar com outra pessoa sem esperar nada em troca. Essa é a verdadeira compaixão. O quanto a teremos, depende da velocidade em que for morrendo o pequeno eu. Conforme ele se vai começam a ocorrer cá e lá momentos em que vemos a vida como ela é. Pode ser que, às vezes, atuemos e sirvamos os outros de modo espontâneo. Com este crescimento sempre vem o arrependimento. Quando nos damos conta de que quase o tempo todo magoamos a nós mesmos e aos outros, arrependemo-nos; essa contrição, em si, é pura alegria.
Portanto, vejamos que nossos esforços em sesshin são destinados a aperfeiçoar—nos; queremos ficar iluminados, queremos ter clareza, queremos ficar em paz, queremos ser sábios. Quando nossa prática tornar-se o momento presente, diremos: "Mas não é mesmo uma chatice! Os carros passam, meus joelhos doem, minha barriga ronca…. Não temos qualquer interesse pela perfeição infinita do universo, que na realidade, pode ser a pessoa sentada a meu lado, respirando de modo barulhento ou suando. A perfeição infinita é passar por essas inconveniências: "As coisas não estão acontecendo do jeito que eu quero". A qualquer momento só existe aquilo que está acontecendo. No entanto, não estamos interessados nisso. Pelo contrário, ficamos aborrecidos. Nossa atenção dirige-se para outro lado. "Esqueça a realidade! Estou aqui para ficar iluminado!"
O zazen, no entanto, é uma prática sutil: mesmo quando lutamos, resistimos contra ela e a distorcemos, nossos conceitos a respeito dela tendem a se destruir por si. Aos poucos, apesar de nós, começamos a ficar interessados naquilo que a prática é de fato, em contraste com nossas idéias do que pensamos que ela deveria ser. A questão da prática é exatamente esse espaço de colisão em que meus desejos de imortalidade pessoal, minha própria glorificação, meu controle pessoal do universo, colidem com o que é. Esse momento ocorre muitas vezes em nossa vida; quando sentimos irritabilidade, ciúme, excitação, está havendo a colisão entre o modo que desejo as coisas e como elas são. "Odeio aquela respiração barulhenta. Como ficar consciente do que é quando ela respira daquele jeito?" "Mas como praticar, quando os meninos do vizinho estão tocando rock?" Todos os momentos oferecem-nos um verdadeiro tesouro de oportunidades. Mesmo ao longo do dia mais tranqüilo e sem incidentes temos muitas oportunidades de ver a colisão entre o que desejamos e o que realmente é.
Toda prática boa tem como meta tornarmo-nos conscientes de nossos falsos sonhos, de modo que nada exista em nossa experiência física e mental que nos seja desconhecido. Precisamos não apenas conhecer nossa raiva, como saber quais são nossos recursos pessoais para enfrentá-la. Se uma reação não for consciente, não poderemos olhá-la e dar-lhe as costas. Cada reação defensiva (e temos uma a cada cinco minutos em média) é prática. Se praticarmos com os pensamentos e as sensações físicas que compõem a reação, estamos abertos para a totalidade, ou para o sagrado, se preferirem. Numa boa prática, estamos sempre transformando nossa centração pessoal (estamos presos no cerne de reações pessoais) num canal cada vez mais universal para a energia universal, para essa energia que altera o universo um milhão de vezes por segundo. Dentro de nossa vida fenomênica, o que enxergamos é a impermanência; o outro lado é alguma outra coisa e não lhe damos nome. Quando estamos efetuando uma boa prática estamos ampliando um canal para essa energia universal e a morte perde a dor da ferroada.
Um dos grandes obstáculos para enxergar é a nossa falta de consciência de que toda prática tem um poderoso elemento de resistência. Essa situação permanecerá até que nosso eu pessoal esteja completamente morto. Só um Buda não tem qualquer resistência e duvido que dentrc da população humana existam Budas. Até que morramos, sempre existe alguma resistência pessoal que tem de ser reconhecida.
Um segundo grande obstáculo é a falta de honestidade a respeito de quem somos, a cada instante. É muito difícil admitir: "Estou sendo vingativa” ou "Estou sendo punitiva" ou "Estou sendo hipócrita". Esse tipo de honestidade é difícil. Nem sempre temos de participar aos outros do que observamos em nós; mas não deveria estar acontecendo coisa alguma de que não tivéssemos consciência. Temos de ver que estamos perseguindo ideais de perfeição em vez de reconhecermos e aceitarmos nossa imperfeição.
Um terceiro obstáculo é ficarmos impressionados com nossas pequenas aberturas, quando vão ocorrendo, e assim desviarmo-nos do caminho principal. Elas são apenas frutos e não têm importância a menos que as usemos em nossas vidas.
Um quarto obstáculo é termos pouco entendimento da magnitude da tarefa que nos propusemos. A tarefa não é impossível, mas é interminável, além de não muito difícil.
O quinto obstáculo, comum para aqueles que dedicam muito tempo à prática nos Centros, é a substituição da prática persistente por conversas, discussões e leituras. Quanto menos dissermos a respeito da prática, melhor. Além de uma situação professor-aluno direta, a última coisa sobre o que falo é a prática zen. E não falo sobre dharma. Por que falar a esse respeito? Minha tarefa é observar como eu o violo. Vocês conhecem o antigo ditado: "Aquele que sabe não fala, e aquele que fala não sabe". Quando falamos sobre prática o tempo todo, nossa conversa torna-se uma outra forma de resistência, um obstáculo, um disfarce. É como os acadêmicos que salvam o mundo diariamente na hora do jantar. Falam, falam e falam — mas que diferença isso faz? Na outra ponta dessa linha estaria alguém como Madre Teresa de Calcutá. Não penso que ela fale muito. Ela está ocupada fazendo.
A prática inteligente sempre lida com uma única coisa: o medo que está na base mesma da existência humana, o medo de que eu não seja. Claro que eu não sou, mas a última coisa que desejo saber é isso. Sou a própria impermanência dentro de um invólucro humano em rápida transformação, que dá a impressão de sólido. Temo ver o que sou: um campo energético em constante mudança. Não quero ser isso. Portanto, a boa prática diz respeito ao medo. O medo assume a forma de um constante pensar, especular, analisar e fantasiar. Com toda essa azáfama, criamos um revestimento tipo nuvem, que nos mantém protegidos dentro de uma prática de faz-de-conta. A verdadeira prática não é segura; pode ser qualquer coisa, menos segura. Mas não gostamos disso e assim, ficamos obcecados com nossos esforços febris para concretizar a versão de nossos sonhos pessoais. Essa prática obsessiva é, em si, só uma outra nuvem entre nós e a realidade. A única coisa que importa é vermos com o concurso de uma lanterna impessoal: vermos as coisas como elas são. Quando a barreira pessoal se desmancha, por que é que precisamos chamá-la de alguma coisa? Simplesmente vivemos nossa vida. Quando morrermos. estaremos simplesmente mortos. Sem problemas de espécie alguma.