Somos bem parecidos a rodamoinhos no rio da vida. Em seu fluxo, o rio ou riacho encontra pedras, galhos ou irregularidades de leito que levam ao aparecimento espontâneo de rodamoinhos aqui e ali. A água que passa por esses pontos rapidamente os atravessa e se reintegra ao rio, podendo mais adiante entrar em outro rodamoinho e prosseguir depois. Embora por curtos períodos ela pareça distinta, um evento separado, a água do rodamoinho é apenas o próprio rio. A estabilidade do rodamoinho é temporária. A energia do rio da vida forma as coisas vivas – o ser humano, o gato, o cachorro, as árvores e as plantas – e, então, o que mantinha o rodamoinho no lugar sofre uma modificação e aquele torvelinho é desfeito e toma a entrar no fluxo maior. A energia que foi um certo rodamoinho se dissolve e a água prossegue, talvez para ser novamente retida e, por um momento, transformar-se em outro rodamoinho.
Preferimos, no entanto não pensar sobre nossas vidas dessa maneira. Não queremos nos ver como uma formação temporária e simples, um rodamoinho no rio da vida. O fato é que assumimos uma forma por um certo tempo e, quando as condições são propícias, saímos de cena. Não ha nada errado em sair de cena; é uma parte natural do processo. Contudo, gostamos de pensar que esses pequenos rodamoinhos que somos não fazem parte do rio. Queremos nos ver como seres permanentes e estáveis. Toda a nossa energia é dirigida para nossas tentativas de proteger nossa suposta realidade em separado. Para proteger essa nossa separação, criamos limites fixos e artificiais. Em conseqüência disso, acumulamos excesso de bagagem, coisas que deslizam para o fundo do rodamoinho e não podem fluir de novo. Assim, as coisas vão entupindo nosso rodamoinho e o processo fica confuso. O rio precisa fluir naturalmente, sem empecilhos. Se o nosso rodamoinho particular está todo entulhado de coisas, acabamos também prejudicando o rio em si. Ele não conseguirá ir a parte nenhuma. Os rodamoinhos próximos terão menos água em virtude de nosso apego desesperado. O melhor que podemos fazer por nós e pela vida é manter a água de nosso rodamoinho fluindo e limpa para que apenas continue seu curso. Quando fica represada, criamos problemas mentais, físicos e espirituais.
A melhor maneira de servirmos outros rodamoinhos é permitindo que a água que entra no nosso tenha liberdade para escorrer através dele e ir em frente solta e rápida, para atingir qualquer outro ponto que precise ser mobilizado. A energia da vida busca uma rápida transformação. Se conseguirmos ver a vida dessa maneira e não nos apegarmos a nada, a vida simplesmente vem e vai. Quando detritos chegam ao nosso pequeno rodamoinho, e se seu fluxo for harmônico e forte, eles ficam girando por alí durante um certo tempo e depois seguem adiante. Não é assim porém que vivemos. Como não percebemos que somos simples rodamoinhos no rio do universo, consideramo-nos entidades separadas que precisam proteger seus limites. O próprio julgamento "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso rodamoinho, fazemos de tudo para evitá-lo, para expulsá-lo, ou para, de alguma maneira, controlá-lo.
Noventa por cento da vida é gasta na tentativa de criar limites em tomo do rodamoinho. Estamos constantemente na defensiva: "Ele talvez me magoe"; "Isso pode dar errado"; "Não gosto dele de jeito nenhum". Esse é um completo mau uso da nossa função vital e, mesmo assim, todos nos comportamos dessa forma, em maior ou menor escala.
As preocupações financeiras refletem nosso esforço para manter limites fixos. "E se o meu investimento fracassar? Talvez eu perca todo o meu dinheiro." Não queremos que nada ameace nosso suprimento monetário. Todos pensam que isso seria uma coisa terrível. Sendo protetores e ansiosos, apegando-nos aos nossos bens materiais, entulhamos nossas vidas. A água que deveria estar correndo, entrando e saindo, para poder servir, toma-se estagnada. O rodamoinho que ergue um dique a sua volta e se isola do resto do rio se toma estagnado e perde sua vitalidade. A pratica consiste em não se estar mais preso ao que é particular, mas em enxergá-lo como realmente é uma parte do todo. Apesar disso, gastamos a maior parte de nossa energia criando água parada. E isso o que acontece quando se vive no medo. O medo existe porque o rodamoinho não entende o que é – ou seja, nada além do próprio rio. Enquanto não tivermos um vislumbre dessa verdade, toda nossa energia estará indo à direção errada. Criamos muitos pontos de estagnação que geram contaminação e doenças. Esses pontos estagnados em busca de proteção dentro dos diques começam a brigar uns com os outros. "Você fede. Não gosto de você".Águas estagnadas causam muitos problemas. O frescor da vida está perdido.
A pratica do zen ajuda-nos a ver de que maneira criamos estagnação em nossa vida. "Será que eu fui sempre tão zangado e nunca reparei?" Assim, nossa primeira descoberta na pratica é reconhecer nossa própria estagnação, criada por nossos pensamentos centrados em nós mesmos. Os maiores problemas são criados por aquelas atitudes que não conseguimos enxergar em nós. A depressão, o medo e a raiva que não são reconhecidos criam rigidez. Quando reconhecemos a rigidez e a estagnação, a água começa a fluir de novo, pouco a pouco. Sendo assim, a parte mais vital da prática é o desejo de ser a própria vida que é apenas o conjunto das sensações que nos chegam – como aquilo que cria nosso rodamoinho.
Ao longo de muitos anos, treinamo-nos para fazer o oposto: criar pontos de água estagnada. Essa é a nossa falsa conquista. Desse esforço incessante nascem todos os nossos problemas e o nosso distanciamento da vida. Não sabemos como ser íntimos, como ser um fluxo de vida. Um rodamoinho estagnado, com limites defendidos, não está próximo de nada. Prisioneiros de sonhos, centrados em nós mesmos sofremos, como dizem os votos diários de um de nossos centros de zen. A prática é a lenta inversão disso. Para a maioria dos estudantes, essa inversão é trabalho para uma vida inteira. A mudança é em geral dolorosa, principalmente no inicio. Quando estamos habituados à rigidez e a inflexibilidade de uma vida defendida, não queremos dar permissão para que novas correntes de energia cruzem o espaço da consciência, por mais rejuvenescedoras que sejam.
A verdade é que não gostamos muito de ar fresco. Não gostamos muito de água limpa. Leva muito tempo ate conseguirmos enxergar nosso sistema de defesa e manipulação da vida em nossas atividades diárias. A prática ajuda-nos a enxergar tais manobras com mais clareza, e essas constatações sempre são desagradáveis. Ainda assim, é fundamental que vejamos o que estamos fazendo. Quanto mais tempo praticarmos, mais prontamente poderemos reconhecer nossos padrões de defesa. O processo nunca é fácil ou indolor, porém, e aqueles que estão esperando encontrar um lugar fácil e rápido para descansar não deverão embarcar nessa viagem.
Por esse motivo é que não me sinto à vontade com o crescimento do Centro Zen em San Diego. Um número excessivo de aprendizes está em busca de soluções fáceis e indolores para suas dificuldades. Prefiro um centro menor, limitado àqueles que estão prontos e dispostos a executar o trabalho. Claro que não espero de principiantes o mesmo que de praticantes mais experientes. Estamos todos aprendendo, cada vez mais. No entanto, quanto maior o centro, mais difícil é manter o ensino limpo e rigoroso. Não é importante o número de alunos que conseguimos atrair para o centro. Importante é manter forte a prática. Por isso estou exigindo cada vez mais nos ensinamentos. Este não é um lugar para quem está interessado numa paz ou num estado de graça artificial, ou em algum outro estado particular.
O que obtemos efetivamente da pratica é tornarmo-nos mais conscientes, mais despertos, mais vivos. E reconhecer nossas tendências nocivas tão bem que não tenhamos necessidade de pô-las em prática com os outros. Aprendemos que nunca está certo berrar com alguém só porque estamos aborrecidos. A prática ajuda-nos a perceber onde nossa vida está estagnada. Diferentemente dos rios de montanha com sua maravilhosa água percorrendo vários lugares, somos as vezes levados a uma imobilização com pensamentos do tipo: "Não gosto disso… Ele de fato me magoa", ou "Minha vida é tão difícil". Na realidade, só existe o fluxo incessante da água. Aquilo que chamamos de nossa vida nada mais é que um pequeno desvio, um rodamoinho que se forma para em seguida se desfazer. As vezes, seus desvios são pequeninos e muito curtos: a vida rodopia por um ano ou dois em um só lugar e depois é removida. As pessoas se indagam por que alguns bebês morrem quando ainda são tão novinhos. Quem sabe? Nos não sabemos por quê. Faz parte desse interminável fluxo de energia. Quando pudermos aceitá-lo, estaremos em paz. Quando todos os nossos esforços vão à direção oposta, não estamos em paz.
ALUNO: Em nossa vida, é uma boa idéia escolher uma direção especifica e concentrar ali nossa atenção, ou em melhor apenas aceitar as coisas como elas são? Estipular metas especificas pode bloquear o fluxo da vida, não é?
JOKO: O problema está não em termos metas, mas em nossa relação com elas. Precisamos ter algumas metas. Por exemplo, os pais se estipulam metas, como organizar suas finanças antecipadamente para pagar a educação de seus filhos. As pessoas com talentos naturais tem como meta desenvolvê-los. Não ha nada de errado nisso. Ter metas é parte de ser humano. É como chegamos Ia que cria transtornos.
ALUNO: O melhor caminho é ter as metas, mas não ficar na dependência do resultado final?
JOKO: É isso. A pessoa simplesmente faz aquilo que é preciso para atingir seu objetivo. Qualquer pessoa que se interesse em obter um grau acadêmico precisa matricular-se numa escola e assistir as aulas, por exemplo. A questão é incentivar o objetivo realizando-o no presente: fazendo isto, isso ou aquilo, conforme for se mostrando necessário, aqui, agora. Em algum momento iremos colar o grau, ou o que for. Por outro lado, se apenas sonhamos com um objetivo e deixamos de prestar atenção ao presente, é provável que não consigamos levar nossa vida adiante — e fiquemos estagnados.
Seja qual for a nossa escolha, o resultado nos servirá como uma lição. Se estivermos atentos e despertos, aprenderemos o que é necessário fazer em seguida. Nesse sentido, não ha decisão errada. No minuto mesmo em que tomamos uma decisão, somos confrontados com nosso próximo professor. Podemos fazer escolhas que nos deixem incomodados. Podemos ter remorso por certas coisas que fazemos e aprender com essas experiências. Por exemplo, não existe uma pessoa ideal para se casar, nem um meio ideal de se viver. No instante que nos casamos, estamos com todo um novo conjunto de oportunidades inéditas de aprendizagem, combustível para prática. Isso vale não apenas para casamentos, mas para qualquer relação. Enquanto estivermos praticando com o que chega a nos, o resultado final será quase sempre recompensador e terá valido a pena.
ALUNO: Quando estipulo uma meta para mim, minha tendência é usar o estilo "rápido e em frente", ignorando o fluxo do rio.
JOKO: Quando o rodamoinho tenta tomar-se independente do rio, como um tomado que rodopia e sai do controle, ele pode causar muitos estragos. Mesmo que pensemos no objetivo como um certo estado futuro a ser alcançado, a verdadeira meta é sempre a vida deste momento. Não há como empurrar o rio para o lado. Mesmo que tenhamos construído um dique a nossa volta e tenhamos nos tomado um lago de água estagnada, alguma coisa acontecerá que não havíamos previsto. Talvez é a amiga e seus quatro filhos que se convida para vir nos visitar por uma semana. Ou morre alguém. Ou o trabalho muda de repente. A vida parece nos apresentar justamente aquilo que seria preciso para movimentar o lago.
ALUNO: Em termos da analogia dos rodamoinhos e do rio, qual é a diferença entre vida e morte?
JOKO: O rodamoinho é um vórtice, e em tono de seu centro a água gira. Conforme a vida da pessoa vai prosseguindo, o centro aos poucos vai ficando cada vez mais fraco. Quando enfraquecer o suficiente, desfaz-se e a água simplesmente se torna de novo parte do rio.
ALUNO: Desse ponto de vista, não seria melhor ser sempre apenas parte do rio?
JOKO: Nos sempre somos parte do rio, sendo rodamoinhos ou não. Não há como evitarmos ser parte do rio. Não sabemos disso, porém, porque temos uma forma delimitada e não enxergamos além dela.
ALUNO: Portanto é uma ilusão que a vida seja diferente da morte?
JOKO: Em sentido absoluto isso é verdade, embora de nosso ponto de vista sejam momentos distintos. Em níveis diferentes, ambas as percepções são verdadeiras: não existe vida e morte. Existe vida e morte. Quando só conhecemos essa segunda perspectiva, apegamo-nos a vida e tememos a morte. Quando as vemos as duas, o aguilhão da morte é muito mais tênue.
Se esperarmos o bastante, todos os rodamoinhos acabarão desfazendo-se com o tempo. A mudança é inevitável. Como vivo em San Diego há muito tempo, tenho observado os penhascos de La Jolla há anos. Eles estão mudando. A linha costeira que existe hoje não é a mesma que eu contemplava há trinta anos. Acontece o mesmo com os rodamoinhos: eles também mudam e, com o tempo, vão enfraquecendo. Algo cede enfim, a água flui numa corredeira — e está tudo certo.
ALUNO: Quando enfim morremos, retemos alguma coisa do que fomos ou tudo se acaba?
JOKO: Não vou responder a essa pergunta. Sua pratica irá proporcionar-lhe um certo entendimento dessa questão.
ALUNO: Algumas vezes você descreve a energia da vida como uma inteligência natural que nos somos. Essa inteligência teria algum tipo de limite?
JOKO: Não. Inteligência não é uma coisa; não é uma pessoa. Não tem limites. No instante em que estabelecemos limites para uma coisa, nos a inserimos na esfera fenomênica das coisas, como um rodamoinho que se enxerga separado do rio.
ALUNO: Um de nossos votos comuns no Centro Zen fala de um "ilimitado campo de benesses"*. Isso é o mesmo que o rio, que a inteligência natural que nos somos?
JOKO: Sm. A vida humana é apenas uma forma temporária que essa energia toma.
ALUNO: Apesar disso, em nossas vidas existe de fato a necessidade de limites. Tenho uma grande dificuldade em juntar Isso com o que você está dizendo.
JOKO: Alguns limites são simplesmente inerentes ao que somos; por exemplo, todos temos uma quantidade limitada de energia e de tempo. Precisamos reconhecer nossas limitações nesse sentido. Mas isso não quer dizer que tenhamos de estabelecer limites artificiais e defensivos que bloqueiam nossas vidas. Mesmo quando somos ainda pequenos rodamoinhos podemos já reconhecer que somos parte do rio – e não ficamos estagnados.
Notas:
- Os votos são os seguintes: Preso num sonho autocentrado: somente sofrimentoApegado a pensamentos autocentrados: exatamente o sonho. A cada momento, a vida é assim: a única mestra. Ser somente este momento: o caminho da compaixão.
- Francis Dojun Cook. How to raise an ox: Zen master Dogen´s Shobogenzo, including ten newlv translated essays. Los Angeles: Center Publications. 1978. p24 es.