A mente cria a forma da realidade
Você se lembra de nossa conversa a respeito dos conceitos de espaço e tempo no Avatamsaka Sutra e na teoria da relatividade? Tão logo abandonamos os conceitos de espaço absoluto e tempo absoluto, muitos conceitos correlatos, que durante muito tempo formaram nossos padrões de pensamentos, começam a desmoronar. Os teóricos do bootstrap reconhecem que todas as partículas atômicas, como os elétrons, não podem existir independentemente umas das outras. Existem efetivamente “interligações” entre as partículas, e essas “partículas” são por sua vez interligações” entre outras partículas. Nenhuma partícula possui natureza independente. Essa noção está muito próxima da idéia de interdependência, inter-existência e interpenetração.
A teoria da relatividade exerceu forte influência em nossa interpretação das partículas nucleares. Na relatividade, a massa e a energia são a mesma coisa, do mesmo modo como descobrimos que a chuva pode ser ao mesmo tempo sujeito e verbo de uma frase. Quando sabemos que a massa é apenas uma forma de energia, compreendemos que as “interligações” entre as partículas são realidades dinâmicas do espaço/tempo quadridimensional. Para os cientistas de hoje, uma partícula nuclear, exatamente como “um grão de poeira” ou “a ponta de um fio de cabelo” no Avatamsaka Sutra, combina o espaço e o tempo. Essas partículas podem ser consideradas um “grão” de tempo, assim como o Avatamsaka Sutra diz que o momento mais curto possível (ksana) contém não apenas o passado, o presente e o futuro, como também a matéria e o espaço. Uma partícula não pode mais ser considerada um objeto tridimensional (como uma laje de mármore ou um grão de poeira) situado no espaço. Ela tornou-se mais abstrata para nossa mente. Os elétrons, por exemplo, podem ser chamados de “corpos dinâmicos quadridimensionais no espaço-tempo” ou “ondas de probabilidade”. Precisamos ter em mente que palavras como “partícula”, “corpo” e “onda” não têm mais o mesmo significado que na linguagem comum. A física contemporânea tem lutado para transcender o mundo dos conceitos e, como resultado, as partículas são agora encaradas como quantidades matemáticas abstratas (do ponto de vista do conhecimento discriminativo ordinário).
Alguns cientistas proclamam que as propriedades das partículas nucleares nada mais são do que criações da mente deles, que na verdade as partículas não possuem propriedades independentes da mente daqueles que as observam. Isso implica que, no mundo das partículas, a mente que percebe a realidade de fato a cria.
Observador e participante
Para os físicos de hoje, o objeto da mente e a mente em si não podem ser separados. Os cientistas não podem mais observar nada com total objetividade. A mente deles não pode ser separada dos objetos. John Wheeler sugeriu que substituamos o termo “observador” pelo termo “participante”. Para que haja um “observador”, é preciso que exista uma rígida fronteira entre sujeito e objeto, mas no caso de um “participante” a distinção entre sujeito e objeto torna-se indist
inta e até mesmo desaparece, e a experiência direta passa a ser possível. Essa noção de um participante/observador aproxima-se bastante da prática da meditação. Quando meditamos sobre nosso corpo, de acordo com o Satipatthana Sutta meditamos sobre “o corpo dentro do corpo”. Isto significa que não consideramos nosso corpo como um objeto separado, independente da nossa mente que o está observando. Meditar não é medir o objeto da mente ou refletir sobre ele, e sim percebê-lo diretamente. Isto se chama “percepção sem discriminação” (nirvikalpajnana).
O hábito de distinguir a mente do seu objeto está tão profundamente entranhado em nós que somente aos poucos, através da meditação, conseguimos eliminá-lo. O Satípatthana Sutta apresenta quatro objetos de meditação: o corpo, os sentimentos, a mente e os objetos da mente. Esse tipo de meditação foi praticado pelos discípulos do Buda enquanto ele estava vivo. O objetivo dessa classificação da realidade é nos ajudar a meditar, e não a analisar as coisas. No Sutta, todos os fenômenos materiais são considerados “objetos da mente”. É claro que podemos observar que o corpo, os sentimentos e até mesmo a mente também podem ser classificados como “objetos da mente”. O fato de todos os fenômenos, inclusive os materiais, serem considerados “objetos da mente” no Sutta demonstra claramente que desde os tempos mais antigos o Budismo se opunha à distinção entre a mente e seus objetos.
As montanhas são novamente montanhas, os rios são novamente rios
Os físicos que se dedicam ao estudo da partícula elementar, quando voltam para casa após um dia de trabalho no laboratório, frequentemente têm a sensação de que os objetos comuns, como uma cadeira ou uma fruta, perderam a substancialidade que pareciam ter anteriormente. Depois de penetrar no mundo das partículas elementares, tais cientistas não conseguem encontrar nada essencial no mundo da matéria, exceto sua própria mente. Alfred Kastler declarou: “A matéria só pode ser apreciada a partir de seus dois aspectos complementares, que são ondas e partículas. Os objetos ou coisas que sempre foram considerados componentes da natureza precisam ser repudiados22”. Embora a cadeira ou a laranja possa não ser mais matéria para nós, mesmo assim precisamos nos sentar na cadeira e chupar a laranja. Somos constituídos da mesma essência delas, mesmo que isto seja apenas uma forma matemática que nós mesmos podemos inventar. Os meditadores compreendem que todos os fenômenos se interpenetram e inter-existem com todos os outros fenômenos, de modo que na vida do dia-a-dia eles encaram uma cadeira ou uma laranja de uma maneira diferente da maioria das pessoas. Quando eles olham para as montanhas e os rios, eles percebem que “os rios não são mais rios e as montanhas não são mais montanhas”. As montanhas “entraram” nos rios, e os rios “entraram” nas montanhas (interpenetração). Não obstante, quando querem nadar, eles têm de mergulhar no rio, e não subir a montanha. Quando voltam à vida do dia-a-dia, “as montanhas são novamente montanhas, e os rios são novamente rios”.
Nem forma nem vazio
O cientista que compreende a natureza da interdependência entre as partículas provavelmente será influenciado pela maneira com a qual percebe a realidade até mesmo na vida cotidiana. Por causa disso, também pode ocorrer algum tipo de transformação em sua vida espiritual. Os meditadores que compreendem a interpenetração e a interexistência das coisas também sofrem mudança em si mesmos. Essa transformação é a meta fundamental da meditação. É por isso que a “consciência de ser” é mantida durante todo o dia e não apenas durante os períodos de meditação. O meditador está consciente quando caminha, fica de pé, se deita e assim por diante. Alguns cientistas também fazem isso, refletindo o dia inteiro sobre o tema que estão pesquisando, através de todo seu ser, mesmo enquanto comem ou tomam banho.
A noção de inter-origem (paratantra) está muito próxima da realidade vivente. Ela destrói os conceitos dualistas de um/muitos, dentro/fora, tempo/espaço, mente/matéria, e assim por diante, que a mente usa para limitar, dividir e moldar a realidade. A noção de inter-origem pode ser usada não apenas para destruir o hábito de retalhar a realidade, mas também para ocasionar uma experiência direta da realidade. Como ferramenta, contudo, ela não deve ser considerada em si mesma uma forma de realidade.
Paratantra é a natureza da realidade vivente, a ausência de um eu essencial [existência inerente]. Assim como o triângulo só existe porque três linhas se cruzam, também não podemos afirmar que qualquer coisa existe em si mesma. Por não possuírem uma identidade independente, todos os fenômenos são descritos como vazios (shunya). Isso não significa que os fenômenos estejam ausentes, mas apenas que são destituídos de um eu essencial, ou de uma identidade permanente independente de outros fenômenos. Da mesma maneira, na física do bootstrap, a palavra “partículas” não significa pontos tridimensionais que existem independentemente uns dos outros.
A palavra “vazio” nesse caso é diferente do termo habitual. Ela transcende os termos usuais de vazio e forma. Ser vazio não significa ser não-existente, e sim destituído de uma identidade permanente. Para evitar confusão, os estudiosos budistas com freqüência usam a expressão “verdadeiro vazio” para referir-se a esse tipo de vazio. O mestre zen Hue Sinh, que viveu no séc. XI durante a dinastia Ly, declarou que não podemos usar as palavras vazio e forma para descrever objetos; porque a realidade está além desses dois conceitos:
Os dharmas são idênticos aos não-dharmas,
Nem existindo nem não existindo.
Aquele que compreende totalmente esta idéia
Percebe que todos os seres são Buda.
A flor Udumbara ainda está florescendo
Existe uma prática denominada “Meditação sobre o Verdadeiro Vazio”, na qual o meditador abandona sua maneira habitual de pensar sobre o ser e o não-ser, compreendendo que esses conceitos eram formados pela percepção incorreta das coisas como independentes e permanentes. Quando uma macieira produz flores, não vemos ainda as maçãs, de modo que poderíamos dizer: “Existem flores, mas não existem maçãs nesta árvore”. Fazemos essa afirmação porque não percebemos a presença latente das maças nas flores. O tempo aos poucos revelará as maçãs.
Quando contemplamos uma cadeira, vemos a madeira, mas deixamos de observar a árvore, a floresta, o carpinteiro, ou nossa própria mente. Quando meditamos sobre ela, conseguimos ver na cadeira todo o universo em todas as suas relações entrelaçadas e interdependentes. A presença da madeira revela a presença da árvore. A presença da folha revela a presença do sol. A presença da flor da maçã revela a presença da fruta. Os meditadores conseguem enxergar o um nos muitos, e os muitos no um. Mesmo antes de verem a cadeira, eles são capazes de perceber sua presença no coração da realidade vivente. A cadeira não é separada. Ela existe apenas em suas relações interdependentes com tudo o mais no universo. Ela existe porque todas as outras coisas existem. Se não existisse, as outras coisas também não existiriam.
Cada vez que usamos a palavra “cadeira” ou que o conceito “cadeira” se forma em nossa mente, a realidade é dividida em dois. Existe a “cadeira” e existe tudo o que é “não-cadeira”. Esse tipo de separação é ao mesmo tempo violenta e absurda. A espada da conceituação funciona dessa maneira porque não compreendemos que a cadeira é feita totalmente de elementos não-cadeira. Uma vez que todos os elementos não-cadeira estão presentes na cadeira, como podemos separá-los? Um indivíduo desperto vê vividamente os elementos não-cadeira ao olhar para a cadeira, e compreende que a cadeira não tem limites, não tem início nem fim.
Quando criança, talvez você tenha brincado com um caleidoscópio. quantas imagens maravilhosas são formadas pelos fragmentos de vidro colorido colocados entre duas lentes e três espelhos. Cada vez que você mexe levemente o dedo, surge uma imagem nova e igualmente bela. Poderíamos dizer que cada imagem tem um início e um fim, mas sabemos que a verdadeira natureza dela, as lentes e o vidro colorido, não surge nem desaparece com cada nova configuração. Esses milhares ou milhões de padrões não estão sujeitos à noção de “início e fim”. Da mesma maneira, seguimos nossa respiração e meditamos sobre a natureza sem início e sem fim de nós mesmos e do mundo. Ao fazê-lo, podemos perceber que a liberação do nascimento e morte já está ao nosso alcance.
Negar a existência de uma cadeira é negar a presença de todo o universo. Uma cadeira que existe não pode se tornar não-existente, mesmo que a rachemos em pedacinhos ou a queimemos. Se conseguíssemos destruir uma única cadeira, poderíamos destruir todo o universo. O conceito de “início e fim” está estreitamente ligado ao conceito de “existir e não-existir”. Por exemplo, a partir de que momento no tempo podemos dizer que uma bicicleta específica passou a existir e a partir de que momento ela deixou de existir? Se dissermos que ela começou a existir no momento em que a última peça foi montada, isto significa que não podemos dizer: “Esta bicicleta precisa apenas de uma última peça”, no momento anterior? E quando ela está quebrada e não podemos andar nela, por que dizemos que ela é “uma bicicleta quebrada”? Se meditarmos a respeito do momento em que a bicicleta existe e sobre o momento em que ela não existe maís, perceberemos que a bicicleta não pode ser colocada nas categorias “existir e não-existir” ou “início e fim”.
O poeta indiano Rabindranath Tagore existiu ou não antes de nascer? Se você aceitar o princípio da “interpenetração” do Avatamsaka Sutra ou o princípio da “interexistência” da física bootstrap, você não poderá dizer que já houve um tempo em que “Tagore não existiu”, mesmo na época antes do nascimento ou depois da morte dele. Se Tagore não existe, então todo o universo não pode existir, e nem eu nem você existimos. Não é por causa do “nascimento” dele que Tagore existe, e tampouco por causa da “morte” dele que ele não existe.
Num final de tarde eu estava no pico do Abutre no estado indiano de Bihar quando vi um belo pôr-do-sol e, de repente, percebi que Shakyamuni Buddha ainda estava sentado no local:
O grande mendigo de outrora
ainda se encontra no pico do Abutre
contemplando o belo pôr-do-sol.
Gautama, como é estranho!
Quem disse que a flor Udumbara
floresce apenas a cada 3.000 anos?
O som da maré alta, você não pode
deixar de escutar se tiver o ouvido atento.
Já ouvi muitos amigos se lamentarem por não ter vivido na época de Buda. Creio que mesmo que eles cruzassem por ele na rua, não o teriam reconhecido. Não apenas Tagore e Shakyamuni Buda, mas sim todos nós não temos início nem fim. Estou aqui porque você está aí. Se um de nós não existir, ninguém mais pode existir. A realidade não pode ser limitada por conceitos como existir, não-existir, nascimento e morte. A expressão “verdadeiro vazio” pode ser usada para descrever a realidade e destruir todas as idéias que nos aprisionam e nos dividem, e que criam artificialmente uma realidade. Sem uma mente livre de idéias preconcebidas, não podemos penetrar a realidade. Os cientistas estão começando a perceber que não podem usar a linguagem comum para descrever insights não conceituais. A linguagem científica está começando a ter a natureza simbólica da poesia. Hoje em dia, palavras como “charme” e “cor” estão sendo usadas para descrever propriedades de partículas que não possuem uma contraparte conceitual na “macro-esfera”. Algum dia a realidade se revelará além de todas as conceitualizações e medições.
O Tathagata não chega nem vai embora
Esta realidade não conceitualizável, ou verdadeiro vazio, também é chamada de “assim é” (bhutatathata). Ela não pode ser concebida ou descrita através de palavras, devendo ser diretamente experimentada. Suponha que haja uma tangerina sobre a mesa e alguém lhe pergunte: “Qual o gosto dessa fruta?”
Em vez de responder, você precisa tirar um gomo da tangerina e oferecê-lo à pessoa que fez à pergunta para que ela o prove. Ao fazer isso, você permite que ela penetre a qualidade “assim é” da tangerina sem nenhuma descrição verbal ou conceitual.
Para lembrar a seus discípulos da natureza incondicionada, sem início e sem fim da realidade, Buda lhes pediu que se dirigissem a ele como o Tathagata. Não se trata de um título honorífico. Tathagata significa “aquele que vem assim” ou “aquele que vai assim”. Significa que ele surge do assim é, permanece no assim é e, algum dia, voltará ao assim é. Quem ou o que não surge do assim é? Você e eu, uma lagarta, um grão de poeira, tudo surge do assim é, tudo permanece no assim é, e um dia voltará ao assim é. Na verdade, as palavras “surge do”, “permanece no”, e “voltará ao” não têm um significado real. Nunca podemos abandonar o assim é. No Anuradha Sutra, o Buda respondeu a uma pergunta que estava perturbando muitos monges: “O que acontece ao Tathagata depois da morte? Ele continua a existir? Ele deixa de existir? Ele continua ao mesmo tempo a existir e a não existir? Ele não continua nem deixa de existir?”
O Buda perguntou a Anuradha: “O que você acha? O Tathagata pode ser reconhecido através da forma?”
“Não, mestre”.
“O Tathagata pode ser encontrado fora da forma?”
“Não, mestre”.
“O Tathagata pode ser reconhecido por meio do sentimento, da percepção, das criações mentais ou da consciência?”
“Não, mestre”.
“Anuradha, se você não consegue achar o Tathagata nem mesmo nesta vida, por que você quer resolver o problema de se ele continuará ou deixará de existir, se continuará ao mesmo tempo a existir ou deixar de existir, ou se nem continuará nem deixará de existir depois da morte?”23
Robert Oppenheimer, físico conhecido como o pai da primeira bomba atômica, teve a oportunidade de ler esta seção do Anuradha Sutra. Ele a interpretou baseado nas observações que fez sobre as partículas, que não podem ser limitadas por conceitos de espaço, tempo, existência ou não-existência. Ele escreveu:
Para aquelas que parecerem ser as mais simples perguntas, tenderemos a não dar resposta ou dar uma resposta que à primeira vista fará lembrar mais um estranho catecismo do que declarações diretas da ciência física. Se perguntarmos, por exemplo, se a posição do elétron permanece a mesma, precisamos responder “não”; se perguntarmos se a posição do elétron muda com o tempo, precisamos responder “não”; se perguntarmos se o elétron está em repouso, precisamos responder “não”; se perguntarmos se ele está em movimento, precisamos responder “não”.24
Como você pode ver, a linguagem da ciência já começou a aproximar-se da linguagem do budismo. Depois de ler a citação acima do Anuradha Sutra, Oppenheimer declarou que até este século os cientistas ainda não haviam sido capazes de compreender as respostas que Buda dera 2.500 anos antes.
A rede de nascimento e morte pode ser despedaçada
Uma outra meditação pode ser usada em lugar da do verdadeiro vazio. Ela se chama meditação sobre a qualidade milagrosa da existência. “Existência’ significa estar no presente. “A qualidade milagrosa da existência” significa ter consciência de que o universo está contido em cada coisa, e que o universo não poderia existir se não contivesse cada coisa. Essa consciência da interligação, interpenetração e interexistência faz com que seja impossível dizermos que algo “é” ou “não-é”, de modo que a chamamos de “existência milagrosa”.
Embora Oppenheimer tenha respondido “não” quatro vezes às perguntas a respeito da natureza dos elétrons, ele não quis dizer que os elétrons não existem. Embora o Buda tenha dito: “Você não consegue achar o Tathagata nem mesmo nesta vida”, ele não quis dizer que o Tathagata não existe. O Grande Prajna Paramita Sutra usa a palavra “não-vazio” (asunya) para descrever esse estado. “Não vazio” é o mesmo que “a qualidade milagrosa da existência”. “Verdadeiro vazio” é “a qualidade milagrosa da existência” podem evitar que caiamos na armadilha de estabelecer uma distinção entre a existência e a não-existência.
Tanto os elétrons quanto o Tathagata estão além dos conceitos de existência e não-existência. A natureza do verdadeiro vazio e da qualidade milagrosa da existência dos elétrons e do Tathagata nos salvam das armadilhas da existência e da não-existência e nos conduzem diretamente ao mundo da não-conceituação. Como podemos praticar a meditação sobre a qualidade milagrosa da existência? Qualquer pessoa que compreenda a teoria da relatividade sabe que o espaço está intimamente relacionado tanto com o tempo quanto com a matéria. Para essas pessoas, o espaço tem um significado mais amplo do que para aquelas que ainda acreditam que o espaço existe independentemente do tempo e da matéria. Quando contemplamos uma abelha, talvez queiramos vê-Ia primeiro através dos olhos de um físico que compreenda a relatividade, e depois ir inclusive além dessa visão e enxergar nela o verdadeiro vazio e a qualidade milagrosa da existência. Se você tentar fazer isso regularmente, com todo o seu ser, estou certo de que conseguirá se libertar do emaranhamento da rede de nascimento e morte. Nos círculos zen, o problema do nascimento e morte sempre foi considerado extremamente premente. O mestre zen Hakuin desenhou bem grande o caráter que representa a morte e depois acrescentou a seguinte frase, em pinceladas menores: “Quem conseguir enxergar as profundezas desta palavra é um verdadeiro herói”.25
Eu costumava achar que libertar-me do nascimento e da morte era uma meta longínqua. Quando lecionei em Saigon, na Universidade Budista Van Hanh, contemplei as estátuas de Arahats descarnados, e imaginei que devia ser necessário exaurir nossas forças dessa maneira para diminuir nossos desejos, até que fôssemos tomados pela completa exaustão e compreendêssemos essa liberação. Mais tarde, porém, quando praticava em Phuong Boi, no Vietnã central, percebi que a libertação do nascimento e morte não é um projeto abstrato ou de longo prazo. O nascimento e a morte são apenas conceitos. Livrarmo-nos desses conceitos significa livrarmo-nos do nascimento e morte. É perfeitamente possível.
Mas a libertação do nascimento e morte não pode acontecer apenas em função do entendimento intelectual. Quando percebermos a natureza interdependente de tudo no universo, quando compreendermos o significado do verdadeiro vazio e da qualidade milagrosa da existência, teremos plantado as sementes da libertação no campo da nossa consciência. Para que essas sementes cresçam, precisamos praticar a meditação. Através da prática da meditação, podemos nos tornar suficientemente fortes para abrir caminho através do conceito de nascimento e morte, que é na verdade apenas um dos inúmeros conceitos que criamos.
Um físico capaz de perceber a interpenetração e a interexistência das partículas elementares sem ultrapassar o próprio intelecto, alcançou do ponto de vista da liberação budista, apenas uma fachada decorativa. Alguém que estude o budismo sem praticar a meditação também acumulou o conhecimento como mera decoração. Temos o nosso destino em nossas mãos. Temos a capacidade de praticar até que todos os conceitos sobre o nascimento e a morte, sobre a existência e a não-existência, sejam erradicados.
As imagens que ofereci – o sol, a laranja, a cadeira, a lagarta, a bicicleta, os elétrons e assim por diante – podem ser objetos que nos tragam uma experiência direta da realidade. Medite sobre o sol como seu segundo coração, o coração do seu “eu exterior”. Medite sobre o sol em cada célula de seu corpo. Medite para ver o sol nas plantas, em cada pedaço nutritivo dos legumes e verduras que você ingere. Gradualmente, você verá “o corpo da realidade suprema” (Dharmakaya) e reconhecerá sua “verdadeira natureza”. Então o nascimento e a morte não mais poderão tocá-lo, e você terá alcançado o sucesso. Tuê Trung, um mestre vietnamita zen do séc. XIV, escreveu:
Nascimento e morte,
Vocês têm me esmagado.
Agora vocês não mais podem me tocar.
Por favor, medite profundamente sobre essas duas frases até conseguir ver Tuê Trung em cada célula do seu corpo.
Uma folha pode nos conduzir diretamente
À realidade não conceitual.
Do livro, O SOL MEU CORAÇÃO – Da atenção à contemplação intuitiva –
Thich Nhat Hanh