Sacrifício e vítimas



Sacrifício e vítimas

Texto de Charlotte Joko Beck, extraído do livro”Nada Especial

Ouvindo muitas pessoas falarem de suas vidas, fico impressionada pelo fato de a primeira camada encontrada, quando nos sentamos para a prática, ser nosso sentimento de sermos vítimas,nosso sentimento de que fomos sacrificados pelos outros. Fomos sacrificados à cobiça, à raiva e à ignorância dos outros, à sua falta de conhecimento de quem são. Muitas vezes essa vitimação é cometida por nossos pais. Ninguém tem um par de budas como pais. Em vez de budas, temos pais como pais: falhos, confusos, irados, autocentrados – como todos nós. Eu fui maltratada pelos meus pais e com certeza maltratei meus filhos algumas vezes. Até mesmo os melhores pais maltratam seus filhos às vezes, porque são humanos.

Com a prática tomamos consciência de termos sido sacrificados e nos aborrecemos muito com esse fato. Sentimo-nos
magoados, manipulados, como se alguém não nos tratasse do modo como devíamos ser tratados – e isso é verdade. Embora inevitável, ainda é verdade e dói, ou assim parece. O primeiro estágio é simplesmente tomar-se consciente de ter sido sacrificado. O segundo estágio consiste em trabalhar com o sentimento que decorre de tal conscientização: nossa raiva, nosso desejo de ficar quites, nosso desejo de magoar aqueles que nos magoaram. Esses desejos variam muito quanto à sua intensidade: alguns são moderados, outros poderosos e persistentes. Muitas terapias tratam de desenterrar nossas vivên
cias de vitimação; apresentam variadas abordagens a respeito do que fazer quanto a tais experiências. Na política parece que pensamos que devemos revidar. Podemos revidar, ou podemos fazer alguma outra coisa. Mas o que poderia ser?

Conforme praticamos, tomamos consciência de nossa raiva por causa das coisas, de nosso desejo de descontar, de nossa confusão, retraimento e indiferença. Se continuamos praticando (mantendo a atenção, rotulando nossos pensamentos), então algo lamento porque é autocentrado: torna-nos o centro do acontecimento. A viagem da culpa é uma atividade muito autocentrada.

ALUNO: E quanto a estar com pessoas a quem me habituei a estar perto e de quem não gosto mais? A raiva sobe como uma sombra. Quando penso nelas, minha sensação é que estou afundando.

JOKO: Fique apenas atento aos seus sentimentos; observe o que está pensando. Se houver um momento apropriado em que você precisa estar com essas pessoas, observe como é. E não evite as pessoas que mobilizam essa raiva. Não estou sugerindo que você necessariamente vá atrás delas, mas pelo menos não as evite.

ALUNO: Com freqüência sinto culpa por não estar usando com qualidade o tempo despendido junto aos meus pais. Tenho me observado fazendo isso várias vezes. No entanto, continuo na mesma.

JOKO: Você está se avaliando segundo uma idéia mental. Quando você estiver com seus pais, esteja simplesmente com eles e veja o que acontece. É o que basta. O resto é fantasia a respeito de como você deveria ser. Quem sabe como você deveria ser? Nós apenas fazemos o melhor, sempre. Com o tempo, perderemos todo o interesse em nosso passado.


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