Shobogenzo Zuimonki-Capítulo 4


Shobogenzo Zuimonki
Capítulo 4

de Eihei Dogen Zenji
Adaptado da tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão

[1] Numa palestra, disse meu Mestre:

“Nós praticantes do Caminho não devemos ficar tolhidos em um ponto de vista preconcebido. Mesmo que tenhamos compreendido algo, devemos tentar ver o que há ali que possa ser melhorado. Para este fim, devemos questionar e visitar pessoas capacitadas, próximas ou longínquas, ou buscar uma solução, nos casos dos velhos mestres. Mesmo então, não devemos nos apegar cegamente às suas palavras, pois não é impossível que estejam errados. Com este método altamente crítico e inquisitivo, aos poucos seguiremos qualquer ponto de vista mais adequado.”

[2] Prosseguindo, meu Mestre frisou:

“O mestre Nacional Hui-chung, de Nan-yang1, perguntou ao monge assistente do imperador:

“‘De onde vens?’

“Ele disse: ‘Do sul do país.’

“‘De que cor são os campos lá?’

“‘Verdes.’

“Então Hui-chung perguntou a uma criança a mesma coisa, obtendo uma resposta idêntica. Ao ouvir isto, Hui-chung disse que mesmo aquela criança poderia envergar o manto púrpura na presença do imperador e lhe ensinar buddhismo. Isto quer dizer que Hui-Chung considerava a resposta do monge banal, já que o menino dissera a mesma coisa.

“Mais tarde alguém discordou de Hui-Chung, dizendo: ‘Não, os dois disseram qual é a cor dos campos no sul do país. Não pode restar dúvidas de que este monge é um mestre autêntico.’

“Deduzimos do acima mencionado que nem sempre devemos seguir as palavras dos antigos. De fato, duvidar pode ser um erro, mas mais ainda é erro ficar apegado a coisas profundamente inverídicas, e também não criticar e analisar o que deveria ser analisado.”

[3] De outra feita, meu Mestre disse:

“Fundamental para quem pratica Zen é não ser auto-centrado. Isto quer dizer que não devemos ficar fixados em nossos egos, como se fossem a verdade. Mesmo que dominemos as historinhas Zen, façamos zazen e que nossa mente atinja o estado sólido e imutável das rochas, ainda assim não dominaremos o Caminho dos buddhas e ancestrais, em um período longuíssimo de tempo, enquanto estivermos atarraxados a nós mesmos. Isto é tanto mais verdade com aqueles muito espertos, e que dominaram muitos ensinamentos, esotéricos ou exotéricos2, teóricos ou práticos3, mas ainda gravitam ao redor de si mesmos. Estes, por assim dizer, não têm um só centavo de proveito, mas ficam tolamente contando o dinheiro alheio.

“Vocês, praticantes, devem fazer o zazen tranqüilamente e ponderar com cuidado de onde vem este corpo e para onde ele vai. Nosso corpo aparece com a união do óvulo e do sêmen de nossos progenitores, e perece com seu último arquejo. O cadáver vira pó finalmente e se espalha pelas pradarias sem fim. Então, a que eu, ou corpo, podemos nos apegar, finalmente? Além disto, na teoria buddhista, o ir e vir de nosso corpo depende dos seis órgãos dos sentidos etc.4 Qual destes pode ser considerado como sendo eu mesmo? O Zen buddhismo é bastante diferenciado de outras seitas buddhistas que se apóiam totalmente em Escrituras, mas ambos concordam em que o começo e o fim do que chamamos nós mesmos é incognoscível — disto devemos estar cientes na prática do Caminho. Ao nos familiarizarmos com isto, podemos entrar no Caminho facilmente.”

[4] Um dia, meu Mestre disse:

“Um velho mestre costumava dizer: ‘Estar associado a um homem nobre é como andar na neblina. Mesmo que nunca tentemos molhar nossas roupas, ainda assim freqüentemente as veremos úmidas.’ Isto significa que, quando vivemos junto com um nobre, logo nos tornaremos tal.

“Antigamente, nos tempos do Mestre Chu-chih5, um garotinho6 que era seu assistente se iluminou, depois de ter convivido anos com seu mestre, apesar dele mesmo não estar ciente do período com que treinou com Chu-chih.

“Se fizermos zazen por muito tempo, subitamente ganharemos o Caminho, e reconheceremos o zazen como o portão correto e único do mesmo.”

[5] Na noite de 30 de dezembro do segundo ano de Katei7, eu, Ejo, fui aceito como o primeiro monge shuso8 no monastério de Kosyoji9. Isto é, meu Mestre, Dogen, em seguida a seu próprio sermão, pediu que eu falasse à congregação. Assim, tornei-me o primeiro shuso deste monastério. Assim falou meu mestre no sermão que antecedeu o meu:

“Deixem agora que eu conte a vocês como tem sido realizada a transmissão no buddhismo Zen historicamente. Bodhidharma10 foi o primeiro ancestral vindo da Índia para a China, onde fixou residência no monastério de Shaoling11. Aguardou durante muito tempo, meditando, até tornar seu ensinamento conhecido. No fim do ano, Hui-k’o12 veio a ele inquirir sobre a verdade. Vendo que ali se encontrava alguém fora do comum, Bodhidharma treinou-o pessoalmente. A lei correta lhe foi outorgada, junto com seus símbolos, isto é, o manto de Buddha, a ser usado a partir desta data como símbolo da iluminação, e a tigela de mendigação. Estas duas coisas foram passadas adiante também aos discípulos de Hui-k’o. Assim se espalhou o buddhismo por toda a China, e o buddhismo transmissão correta é ali praticado em toda a parte hoje em dia.

“Neste monastério eu acabo de nomear Ejo como primeiro shuso, e hoje ele vai falar em meu lugar aos monges. Não importa se são poucos os monges, ou se a pessoa é principiante na prática. Feng-yang13 praticava junto com apenas seis ou sete monges, Yao-shan14 praticava com menos de dez, mas ambos eram mestres do Caminho dos buddhas e ancestrais. Por isto seus monastérios eram respeitados. É famosa a história do mestre Zen15 que alcançou a compreensão com o som de um bambu que foi golpeado por uma pedra chutada por sua vassoura, ou a história daquele outro monge16 que se iluminou ao fitar as flores de ameixa na floração da primavera. Mas estas figuras se iluminaram, não porque os bambus estivessem cheios de ‘iluminação ou ilusão’, nem porque as flores fossem particularmente ‘inteligentes ou não-inteligentes’. Todo ano as flores desabrocham, mas nem todos os que as vêem compreendem algo. É inteiramente devido ao longo e penoso treinamento que a pessoa possa ou não a captar o âmago da questão, não porque o bambu tenha emitido qualquer nota musical. O som do bambu não é a ele devido, mas sim à pedra que lhe foi de encontro. Belas flores não desabrocham com suas próprias forças, mas devido à primavera. O mesmo ocorre com o árduo estudo do Caminho. Todos possuímos o Caminho, mas para sua apreensão precisamos da força coletiva de todos os demais companheiros que praticam e se esforçam junto conosco. Por melhor que sejamos, necessitamos deles para a iluminação. Devemos pois estudar e praticar devotadamente o Caminho. Assim como uma jóia torna-se valiosa através do polimento, assim nos tornamos mestres pelo treinamento. Há alguma jóia translúcida, quando esteja ainda nas rochas das montanhas? Alguém já nasceu iluminado? Treinamos como polimos uma jóia — é a metáfora perfeita. Logo, não nos devemos diminuir, nem relaxar o treinamento.

“Um velho mestre17 nos exortou a não jogarmos o tempo fora. Eu pergunto a todos vocês: acaso o tempo se deterá por causa de seus amores pelo tempo perdido, ou se deterá contra suas vontades? Devemos aceitar que o tempo nunca passa inutilmente, mas que o homem o desperdiça. Logo, devemos estudar o buddhismo sem perder mais tempo.

“Praticantes Zen devem ser de dedicação exclusiva. Para mim não é fácil ficar aqui falando sozinho do Caminho o tempo todo; assim, eu indiquei um novo shuso para compartilhar minhas responsabilidades. Muitos alcançaram a iluminação seguindo os ensinamentos do Tathagata, enquanto outros se iluminaram ouvindo Ananda18. Você, novo shuso, não ache que não tenha méritos, mas conte a seus colegas monges sobre o kôan dos ‘três quilos de linho19 de T’ung-shan20‘.”

Assim falando, meu mestre desceu do assento, o tambor foi batido, e eu, novo shuso, falei aos demais em nome de meu mestre. Este foi o meu primeiro pronunciamento no monastério de Kosyoji. Na ocasião, tinha eu trinta e nove anos de idade.”

[6] Um dia meu Mestre disse:

“Um leigo relatou: ‘Quem não gosta de se vestir bem? Quem não aprecia um estilo de vida de bom gosto?’ Mas aquele que é filho da verdade sobe a montanha, e suporta a fome e o frio, dormindo nas nuvens. Antigamente os praticantes não eram livres do sofrimento, mas o agüentavam em prol da verdade. Sabendo disto, devemos respeitar seus exemplos e suas virtudes.

“Mesmo em se tratando de homens e mulheres no mundo, os superiores em força agem todos desta forma, estranhamente. O mesmo se passa também com praticantes Zen. Nenhum dos velhos mestres era dotado de ossos de ouro; no tempo de Buddha, nem todos eram bem resolvidos e irrepreensíveis. Lendo o Sutra dos preceitos Hinayana e Mahayana, vemos que certos monges eram completamente desnorteados, mas mais tarde todos alcançaram a iluminação, e se tornaram Arhats21. Não importa se somos humildes ou extremamente limitados; o que precisamos compreender é que, se treinarmos, tendo despertado a mente que busca o Caminho, nós nos iluminaremos. Antigamente todos treinavam suportando o sofrimento, o frio e a amargura. Agora, praticantes Zen devem se esforçar ao máximo no Caminho, não importa quão doloroso isto possa vir a ser.”

[7] Meu Mestre disse:

“Se existe uma razão mais forte por que praticantes não se tornem iluminados, é devido a seus apegos a idéias preconcebidas, seus primeiros conhecimentos. Apesar de não saberem de onde vieram estas idéias, crêem piamente que a palavra ‘mentÉ quer dizer ‘faculdade discriminatória que nos diferencia dos animais’, e se recusam a aceitar que mente são as pradarias e as árvores. E crêem que ‘Buddha’ quer dizer uma pessoa que possui 32 sinais de superioridade e mais outras 80 características secundárias, e que esta pessoa fica emitindo uma luz brilhante. Logo, quedam-se estupefatos ao ouvirem de seus mestres frases como ‘Buddha é uma lajota, ou uma pedra’. Tais pontos de vista errôneos nunca lhes foram transmitidos por ninguém, mas longamente cridos, como resultado de cegamente seguir opiniões alheias. Contudo, as palavras dos buddhas e ancestrais estão eterna e infalivelmente afirmadas; logo, será de nosso interesse urgente desistirmos de nossas idéias preconcebidas e de nosso primeiro conhecimento, crendo ser, de fato, a mente pradarias e árvores, e ser o Buddha uma lajota ou uma pedra. Então realizaremos o objetivo de nossa prática, isto é, nós nos iluminaremos.

“Houve alguém que afirmou: ‘O sol e a lua possuem brilho próprio, mas às vezes ficam obscurecidos por nuvens passageiras que os encobrem. As orquídeas querem ficar eretas, mas o vento forte do outono pode dobrá-las.’ Estes ditos podemos encontrá-los no Livro de Cheng-kuan Cheng-yao22: são uma parábola de um rei benevolente e sábio e seus súditos maliciosos. Mas o significado desta parábola pode ser alterado: eu digo agora que as nuvens vadias não cobrem jamais o sol ou a lua, mas com o tempo vão embora; e mesmo que o vento chegue a vergar as orquídeas, flores fragrantes finalmente desabrocharão. De forma similar, súditos maliciosos não enganarão o rei, se este último tiver sabedoria. Tudo isto vale para os praticantes Zen de hoje em dia, ou seja, não importa quantas vezes surja o mal em nossas vidas contra nossas vontades, este se deterá se praticarmos incessantemente durante um vasto período de tempo. Assim como as nuvens vadias se esvaem e o vento do outono cessa.”

[8] Um dia, meu Mestre disse:

“Praticantes Zen, para firmarem solidamente os pés no Caminho, podem no começo se familiarizar com sutras e shastras, e outros ensinamentos. Eu primeiro despertei para o Caminho quando, com a morte prematura de meus pais, percebi que tudo é impermanente. Deixei o monastério de Hoei e procurei, pelo país inteiro, um mestre autêntico que me esclarecesse as dúvidas. Antes de achar o monastério de Kennin-ji, não havia nunca me deparado com um mestre excelente ou com grandes monges praticantes, e devido a isto muito me equivocava sobre o sentido da prática.

“Buddhistas famosos insistiam comigo a que galgasse os degraus do poder eclesiástico, através do estudo e da erudição. Assim, no começo eu procurei ser como as pessoas de destaque no Japão daquele tempo, ou como as grandes figuras cujos títulos póstumos eram daishi — grande santo23. Contudo — e aí vem o acaso — caiu-me nas mãos naquela época a ‘Biografia dos Grandes Mestres’24, e também a ‘Continuação’25 desta obra; e qual não foi a minha surpresa ao perceber que todos os ensinamentos dos Grandes Mestres eram diametralmente opostos aos dos famosos buddhistas japoneses. E constatei que tudo aquilo que eu almejava ganhar era denunciado nos Sutras como aberração ou perversão. Então repensei o direcionamento de minha prática e cheguei à conclusão seguinte: mesmo que estejamos apegados ao ganho material e à reputação mundana, devemos nos preocupar como pessoas boas e sábias, no passado bem como no futuro, viessem a nos julgar, em vez de estarmos hipnotizados pelo julgamento dos nossos contemporâneos. Mesmo se tentarmos emular pessoas destacadas, que sejam neste caso as da China e da Índia, em lugar das deste país de periferia. Ou então, aos buddhas e bodhisattvas, às entidades celestes e do mundo invisível. Desde aquela época, todos neste país que tinham obtido o título de daishi, ou grande santo, pareceram-me dignos de risada, tendo ocorrido uma verdadeira revolução em meus pontos de vista.

“Observando como Buddha viveu, vendo-o deixar seu trono e família, e entrar nas montanhas ou nas florestas, e praticar a mendicância mesmo após ganhar a iluminação, vemos a verdade do que dizia a Vinaya: ‘Quando percebemos que esta casa não é nossa, deixamo-la para trás e a ela renunciamos.’

“Um velho mestre nos aconselhou a não querermos nos equiparar a sábios do passado, nem muito menos nos humilhar, achando, que nada valemos. Humildade demais é orgulho. Logo, sejamos modestos ao estarmos numa posição de destaque, e lembremo-nos de que há perigo mesmo na situação mais estabilizada e segura. Hoje estamos aqui, amanhã poderemos não mais estar. Estamos sempre próximos à morte imperiosa e inevitável.”

[9] Meu Mestre disse:

“Tolos são aqueles que freqüentemente dizem e pensam coisas sem utilidade. Aqui morava de certa feita uma monja, que era assistente social. Envergonhada das tarefas humildes que lhe foram confiadas, ela passava o tempo todo contando aos outros sobre sua nobre ascendência. Podia até ser verdade sua história, mas de nada valia. Era de uma inutilidade total. Mas a maioria das pessoas, temo, atribui capital importância a estas futilidades. Inferimos disto a enorme distância que os separa do Caminho.

“Eu conheço um leigo que pratica o Caminho, mas não possui o espírito do Caminho. Sou seu melhor amigo, então gostaria que ele pedisse aos deuses ou ao Buddha que ele despertasse para a prática autêntica. Talvez isto o magoe e faça com que se afaste de mim. Mas enquanto não tiver sua mente desperta para o Caminho, que valor poderia ter sua amizade?”

[10] Meu Mestre disse:

“Um velho ditado popular ensina: ‘Antes de falar, pese três vezes o que vais dizer’ Significa que, antes de abrirmos a boca, devemos calcular três vezes o alcance de nossas palavras. Os confucionistas ortodoxos interpretam isto como pensar três vezes antes de falar ou fazer algo. Mas com ‘três vezes’ sábios da Dinastia Sung queriam dizer ‘freqüentemente’. Aconselhavam-nos a pesar freqüentemente nossas ações antes de as levarmos a cabo. Isto é o que deve acontecer com praticantes Zen. As vezes podemos nos equivocar no julgamento de palavras ou ações. Então devemos ponderar profundamente se o que vamos fazer é identificado ou não com o Caminho, e em segundo lugar se é benéfico para nós mesmos e para os demais. Se cada vez que o julgarmos for bom, devemos fazê-lo ou dizê-lo. Se nós praticantes do Caminho formos sempre cuidadosos assim, não iremos contra a vontade de Buddha, por todo o decorrer de nossas vidas.

“Da primeira vez em que pratiquei no monastério de Kennin-ji, cada monge respondia por seu comportamento e por suas ações, e não queria fazer ou dizer o que não fosse coincidente com o Caminho. Isto enquanto durou a influência do Mestre Eisai. Mas agora estas boas formas se foram.

“Praticantes Zen devem dizer ou fazer o que for útil a si e aos outros, mesmo ao custo de suas vidas; por outro lado, devem evitar o que for inútil. Quando monges veteranos tiverem algo a dizer, os principiantes devem ouvir respeitosamente, sem interromper, o que está sendo dito. Este é o ensinamento de Buddha. Consideremos isto com cuidado.

“Mesmo leigos trilham o duro Caminho ao custo das próprias vidas. Nos tempos de outrora, um homem de berço humilde, Lin-Siang-Ju26, foi sábio o bastante para governar toda a China da Dinastia Chao, sob o Imperador Hui-wen.

“Um dia este Imperador o enviou ao país de Chin, como portador de uma valiosíssima jóia, conhecida como ‘a jóia de Chao’. O Imperador de Chin27 havia garantido, verbalmente, que trocaria a jóia por quinze cidades fortificadas. Ao se inteirarem de tal, os demais ministros, colegas de Lin-Siang-Ju, ficaram com ciúmes e assim conspiraram entre si:

“‘Se deixarmos este camponês levar este supra-sumo de jóia, nosso país parecerá uma terra habitada por plebeus. A humilhação será nossa paga. Seremos a chacota de todos, e nossa descendência também. Matemo-lo a caminho do país vizinho e surripiemos-lhe a jóia.’ Mas um dos membros da cúpula conspiradora delatou secretamente a Lin-Siang-Ju a trama, e o aconselhou a desistir da missão, para seu próprio bem.

“Lin contudo disse: ‘De jeito nenhum. Gostaria muito que a história me tivesse em conta de um homem honrado, morto por traidores ao levar a cabo minha missão Imperial! Meu corpo pode morrer com isto, mas meu espírito viverá para sempre no mundo da honra.’

“Assim dizendo, tomou as devidas providências e encetou viagem. Os ministros conspiradores, ao ouvirem suas palavras cheias de espírito, acharam bem-avisado desistirem de seus planos.

“Finalmente Lin chegou ao país de Chin e foi recebido em audiência pelo Imperador, e entregou a jóia. Então, contrariamente às suas expectativas, o Imperador hesitou na hora de ceder as quinze cidades fortificadas. Lin pensou num estratagema e disse: ‘Esta jóia tem uma jaça, que eu mostrarei ao Imperador, se ele, Imperador, assim desejar.’ Ao se apoderar da jóia, disse: ‘O Senhor Imperador parece relutar em realizar a sua parte do trato. Se não cumprir sua parte, farei a jóia em estilhaços com esta barra de ferro.’ Com um olhar zangado ele pegou a barra de ferro, e se diria que renegava até a majestade do Imperador. Vendo a tragédia iminente, o Imperador bradou: ‘Não destrua a jóia: aqui estão as tais cidades fortificadas, segundo foi tratado. Enquanto firmo as assinaturas devidas, guarde você mesmo a jóia.’ Porém Lin-Siang-Ju secretamente a enviou de volta.

“Noutra ocasião, o Imperador de Chao fez convocou uma reunião de cúpula com o Imperador de Chin, em Sheng-ch’ih28. Então este último solicitou ao Imperador de Chao que tocasse o alaúde, já que era conhecido como excelente alaudista. Lin, furibundo com a estúpida e cega subserviência de seu Imperador, dirigiu-se ao Imperador de Chin, na frente das cortes, e mandou que ele tocasse o órgão, dizendo: ‘Ouvi dizer que és formidável no órgão. Que tal tocares para nós aqui reunidos?’ Mas o Imperador de Chin declinou o pedido. Lin disse: ‘Se não tocares, eu te mato.’ Neste momento, um dos generais de Chin levou a mão à espada. Lin lhe desferiu uma olhada tão irada que suas sobrancelhas se partiram e o sangue jorrou. O General, espantado com a fúria de Lin, desistiu de qualquer ação, e o Imperador de Chin teve que tocar o órgão.

“Mais tarde Lin foi promovido a ministro e assumiu o controle político do governo. Isto causou espécie entre os ministros, e um deles resolveu assassiná-lo. Lin, sabendo do fato, esquivava-se daqui para ali, não comparecendo ao Palácio Imperial, nem mesmo às suas funções, a menos que fosse inevitável. Dir-se-ia temer aquele ministro. Então seu secretário lhe confidenciou: ‘Eliminar este elemento que causa empecilho é mister. Por que o evitas?”

“Lin falou: ‘Dele não tenho o menor receio. Uma vez assustei até um general de Chin só com um olhar, e não perdi a jóia de Chao que o Imperador de Chin tencionava surripiar. Facílimo seria então tirar este ministro de circulação. Mas o exército está organizado e os guerreiros treinados, para se lançarem contra possíveis inimigos do país. Nós dois, eu e este Ministro, estamos encarregados de gerir as forças de defesa de nosso país. Se brigarmos, um de nós vai morrer, e nossas forças ficarão debilitadas. Do que se aproveitará um país vizinho para nos esmagar. Por isto eu não brigo com este ministro.’ Ao se inteirar do que Lin havia dito, através de terceiros, o ministro, muito envergonhado, de seu egoísmo e falta de compreensão, veio a Lin e, inclinando-se, pediu desculpas humildemente. Assim, após a reconciliação, administraram o país com as forças reunidas. Era desta forma que Lin procurava sempre fazer o que fosse melhor para todos, mesmo arriscando a própria vida. O mesmo deve se passar conosco, praticantes Zen. Dizem que é melhor morrer pelo Caminho do que viver longe dele.”

[11] Meu Mestre disse:

“Não há uma definição clara sobre o que é bom e o que é mau. No mundo, dizem que belas estamparias, brocado e seda fina são excelentes, e que roupas pobres são evidência de falta de respeito próprio. Mas no buddhismo o que é pobre é bom e puro, e os tecidos confeccionados com fios de ouro e prata, o brocado e a seda são nocivos e impuros. No buddhismo é tudo assim, diametralmente oposto ao mundo.

“Quanto a mim, sei que tenho talento para poesia e literatura, e que escrevo razoavelmente bem. Alguns leigos crêem que isto vem a ser um dom muito especial; enquanto outros me criticam por tal, achando que isto não é próprio de um autêntico monge. O que estará definitivamente certo ou errado, o que é bom ou mal?

“Há uma passagem num certo Sutra: ‘Daquilo que é bem falado e considerado , resulta o bem; e daquilo mal falado resulta a infelicidade’, ou: ‘O que vai acarretar sofrimentos é ruim e o que traz felicidade é excelente.'”

“Desta maneira devemos discriminar cuidadosamente, praticando o verdadeiro bem e desistindo do verdadeiro mal. Monges provêm do mundo puro, assim consideramos algo simples e humilde como bom e puro.”

[12] Meu Mestre disse:

“Há uma tendência natural para se achar que, como dizem por aí, ‘Embora eu sinta vontade de praticar o Caminho, estamos pesarosamente atravessando a fase da decadência buddhista. Somos incapazes de levar a cabo nossa prática, como insta o buddhismo. Então coloquemos nossa meta buddhista para uma existência futura, enquanto nos limitamos no presente a laços meramente formais com o ensinamento e os regulamentos buddhistas.’

“Este é o começo mesmo do pensamento errado que tanto nos impede de nos realizar nesta vida. É um pensamento lamentavelmente equivocado. É apenas um expediente, de se expressar em três épocas29: buddhismo correto, buddhismo formal e buddhismo decadente. Nem todos os praticantes da época do Buddha eram admiráveis. Alguns eram de todo incuráveis e irrecuperáveis. Foi para este tipo de pessoa que o Buddha Shakyamuni estabeleceu aquela infinidade de mandamentos e preceitos. Todos temos plena e total capacidade de ganhar o Caminho buddhista; então evitemos este pensamento de que não estejamos à altura da prática buddhista. Praticando segundo nos aconselham os buddhas e ancestrais, podemos alcançar nossa meta, a iluminação, imediatamente. Possuímos já a discriminação, podendo distinguir o certo do errado. Fomos dotados de pés e mãos, podemos então avançar Caminho afora. Logo a prática buddhista está aberta ante a todos, sejam estultos ou argutos — para aqueles que são seres humanos, não para aqueles nascidos com outras formas, como os animais. Nós praticantes Zen não devemos jamais aguardar o amanhã. Devemos treinar o buddhismo hoje mesmo, neste minuto, agora.”

[13] Meu Mestre disse:

“Um ditado popular diz: ‘A decadência e queda de um império nasce da quebra da moral interna’, ou: ‘Quando há briga dentro de casa, não dá para comprar nem uma agulha30; mas quando há união entre todos, até o ouro não está fora de nosso alcance.’ Mesmo leigos dizem que um clã desunido perece. Mais ainda devem os praticantes Zen treinar o buddhismo, sob a direção do mestre, em uma harmonia tão perfeita quanto a do leite misturado na água. Existem também seis Caminhos de Harmonia e Respeito31, que monges devem rigorosamente seguir. Nós monges não podemos treinar conforme quisermos, separando-nos dos demais com nossos quartos particulares. Assim como se estivéssemos singrando os quatro mares numa belonave, devemos praticar o Caminho unidos em mente e em comportamento, corrigindo os erros que acaso cometamos, e observando e emulando os méritos alheios. Assim tem sido a prática desde os tempos de Buddha.”

[14] Meu mestre disse:

“Quando Mestre Fang-Hui32 assumiu o monastério de Tang-Chi, as construções estavam precárias e depredadas e caindo aos pedaços. Era um fim de mundo, e duro de praticar ali, agüentando aquelas condições. Um dia o monge-chiji33, encarregado dos prédios, disse: ‘Seria possível, por obséquio, mandar reparar o monastério?’

“O mestre replicou: ‘Bem verdade; mas apesar de as condições estarem sofríveis, é melhor do que praticar a céu aberto. Quando cair uma parte do telhado, faça zazen debaixo da parte que não caiu ainda. Se obter a iluminação — o assunto crucial de nossa vida — fosse questão de monastérios requintados, eu faria construir um de jade e ouro. A iluminação espiritual reside nos efeitos do zazen, não nos efeitos do monastério.’

“No dia seguinte, ele ascendeu à cadeira de aulas buddhistas e falou assim aos praticantes: ‘Venho de me tornar mestre deste monastério, mas o telhado e as paredes estão em pandarecos. O chão está atolado de neve. Os monges que aqui se encontram tremem de frio e se lastimam.’ Depois de uma breve pausa, ele prosseguiu:

“‘Isto me traz recordações daqueles velhos mestres que praticavam zazen debaixo das árvores, nas florestas.’

“O mesmo vale tanto na administração dos bens e tesouros Nacionais quanto no dia a dia da prática do Caminho. O Imperador Tai-Tsung, da Dinastia T’ang, não mandou construir um novo palácio: continuou a conservar o velho, em ruínas.

“O Mestre Sung-Ya34 nos aconselha a, antes de tudo, estudarmos a pobreza; e que só podemos nos unificar ao Caminho após estarmos na pobreza absoluta. Desde o tempo do Buddha Shakyamuni até os dias de hoje, eu nunca ouvi falar de praticantes legítimos ligados a posses.”

[15] Um dia, um monge itinerante exclamou: ‘É praxe hoje em dia começarmos uma prática espiritual apenas após garantirmos nossas bases de sustentação, isto é, depois de termos garantias reais de que não vamos morrer de fome e à míngua. Isto pode parecer de somenos importância, mas é uma garantia, pois, se nos faltar o essencial, para onde irá nossa prática? Entretanto, de acordo com teu ensinamento, confia-se o destino a Buddha, sem qualquer precaução em bases realistas. Porém, e se passarmos mais tarde por tais graves privações? Que dizes a respeito?’

Meu mestre disse:

“Esta opinião, como dizes, não é de minha própria autoria, mas tem sido transmitida na história do buddhismo, na Índia bem como na China. Um facho de luz proveniente da testa de Buddha é inexaurível em termos práticos. Para que acumular bens e comida? Mesmo que o façamos, o amanhã não está nunca garantido com isto. Não fui eu que inventei esta teoria a partir do nada. Quando sentirmos necessidade de algo, devemos procurar obter os meios de sobrevivência, jamais antes de sentirmos esta necessidade.”

[16] Meu mestre disse:

“Sobre Jimyoin Motoie35, recentemente falecido, contava-se uma história, não sei se é fato ou não. Aconteceu certa ocasião que sua espada de estimação foi furtada. Investigando o assunto, alguns guerreiros descobriram o ladrão no meio deles mesmos. Quando devolveram a espada ao dono, ele a entregou ao ladrão, dizendo que na certa aquela pessoa incidira em erro, pois nunca havia visto aquela espada em sua vida.

“Claro que era aquela mesma a espada surripiada, mas ele a rejeitou, com pena da criatura, e desmentiu qualquer conhecimento do objeto. Todos compreenderam perfeitamente o que havia se passado e deixaram que o incidente serenasse sem maiores comoções. Assim, a família de Jimyoin até hoje é próspera e poderosa. Mesmo em se tratando de leigos, um sábio tinha uma tal atitude. Mais ainda tal deve se passar com monges. Nós monges nada temos em termos de posse ou propriedade, desde a origem mesmo. O que vale como um tesouro para nós é a sabedoria. Ao nos depararmos com pessoas ignorantes não devemos criticá-las, traindo tudo que compreendemos imediatamente, e sem uma visão das circunstâncias. Através de um meio habilidoso, devemos procurar alertá-las sobre seus possíveis deslizes, de uma forma que não guardem ressentimentos. Dizem que, se nossa persuasão for direta e violenta, seus efeitos não serão duradouros. Isto vale também para palavras ásperas e ferinas ao criticarmos os outros, mesmo que estejamos certos. Quem é limitado e de espírito estreito, fica zangado ao lhe dizerem que esteja possivelmente equivocado, e se sente desgraçado, o que pode vir a ser perigoso devido à sua estreiteza de visão. O mesmo não ocorre com uma pessoa que tenha grandeza de alma. Mesmo que lhe batamos, ela nem sequer virará a cabeça para considerar vingança. Em nosso país nós temos muitos exemplares destas pessoas pequenas e estreitas, logo cuidemos para não usarmos palavras duras e críticas contundentes , resultando que estas pessoas se ofendam e queiram se vingar.”

Notas

1. Nan-Yang Hui-Chung (?-775) — herdeiro buddhista de Hui-neng Ta-Chien, dito ter vivido no Vale de Tan-Tsu do Monte Pai-ai durante mais de quarenta anos.
2. Ensinamentos — não-verdadeiros e verdadeiros: os verdadeiros, de acordo com a seita Tendai, são o Saddharmapundarika SSutra e o Nirvana Sutra; não-verdadeiros são os demais.
3. Esotéricos — conforme nota 36 do capítulo 1 .
4. Seis órgãos dos sentidos, 18 dhatus que consistem dos órgãos dos sentidos, seus objetos e sensações.
5. Chu-Chih — praticando com o Mestre T’ien-Lung, iluminou-se ao ver seu mestre levantar um dedo. Dali em diante, sobre qualquer assunto de buddhismo, ele apenas levantaria um dedo.
6. A história do menino que se iluminou é a seguinte: “Uma vez uma pessoa perguntou ao garoto: ‘O que ensina teu mestre?’ O menino levantou o dedo como o mestre fazia. Inteirando-se disto, o mestre decepou o dedo do garoto com uma facada. O menino saiu gritando da sala com dor. Seu mestre chamou-o por trás; e quando ele se voltou, o mestre levantou seu dedo. O garoto se iluminou.
7. O segundo ano de Katei — 1236.
8. Shuso — o monge principal.
9. O templo de Kosyoji — localizado no lado oposto de Byodoin, em Uji.
10. Bodhidharma — conforme nota 16 do capítulo 1.
11. O templo de Shao-Lin — situado aos pés do Monte Sung-Shan, na Província de Honan. Ali dizem que Bodhidharma praticou zazen durante nove anos.
12. Shen-Kuang Hui-k’o (487-593) — Visitou Bodhidharma no templo de Shao-ling com a idade de 40 anos e se iluminou depois de treinar durante seis anos com Bodhidharma.
13. Feng-Yang Shan-Chao (947-1024) — herdeiro buddhista de Shou-Shan (926-993).
14. Yao-Shan Wei-Yen (751-834) — Nascido na Província de Shan-shih, praticou com Ma-Tsu e foi herdeiro de Dharma de Shih-t’ou.
15. Um mestre Zen que se iluminou com o som de uma pedra batendo num pedaço de bambu: Hsiang-Yen, discípulo de Kuei-Shan.
16. Ling-Yun — discípulo de Kuei-Shan, que se iluminou ao observar as ameixeiras em flor.
17. Um velho mestre. Mestre Shih-T’ou — Esta afirmação se encontra no Sandokai.
18. Ananda— um dos dez discípulos do Buddha Shakyamuni, primo do Buddha Shakyamuni. Assistiu Shakyamuni durante 10 anos e aprendeu todos os seus ensinamentos de cor.
19. Chin — unidade de peso.
20. T’ung-shan Shou-chu — discípulo de Yun-men Wen-Yen (?-966). O koan dos ‘três quilos de linho’ de T’ung-shan se encontra no décimo-segundo capítulo do Hekiganroku..
21. Arhat— Aquele que compreendeu o último estágio do shravaka.
22. O livro de Cheng-Kuau Cheng-yao, 10 volumes — compilado por Wu-Ching, tratando de assuntos políticos na época de Cheng-Kuan (627-648).
23. Daishi — Grande Santo, por exemplo, Dengyo, Jikaku, Kobo, Chisho, etc.
24. “Biografias dos Mestres”, 14 volumes — compilado por Hui-Chiao, relata a vida de 257 mestres, num período de 453 anos, desde a época do Imperador Ming-Ti da Dinastia Hang Tardia.
25. “Continuação das Biografias dos Mestres”, conforme nota 1 do capítulo 1.
26. Lin-Siang-Ju. Conhecido por ter dissuadido o Rei de Chin de tentar surripiar o Rei de Chou de sua jóia preciosa.
27. O Imperador de Chin — Chao Wang.
28. Sheng-Ch’ih — localizado na Província de Honan.
29. Época do buddhismo decadente — conforme nota 42 do volume 1.
30. Uma coisa sem importância.
31. Seis Caminhos de Harmonia e Respeito — Rokuwakyo:

  1. Comportar-se mutuamente com harmonia e respeito.
  2. Falar mutuamente com harmonia e respeito.
  3. Considerar-se mutuamente com harmonia e respeito.
  4. Observar os preceitos mutuamente com harmonia e respeito.
  5. Pensar mutuamente com harmonia e respeito.
  6. Conviver com harmonia e respeito.

32. Yang-ch’i Fang-Hui (992-1049) — herdeiro buddhista de Tzu-ming, fundador da Escola Yan-ch’i.
33. Monge chefe — conforme nota 11 do capítulo 2.
34. Lung-Ya Chu-Tun (835-923) — herdeiro buddhista de T’ung-Shan Liang-Chieh.
35. Jimyoin, seu outro nome era Motoie Ichijo, filho de Michimoto Ichijo: Chunagon foi o Segundo Conselheiro do Estado.

Extraído do site www.dharmanet.com.br


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