Capítulo 6
Adaptado da tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão
[1] Meu Mestre disse:
“Se a pessoa estiver preocupada com a crítica alheia, que seja a crítica de um homem que ganhou a verdade. Quando eu morava na China, Jü-tsung Zenji1 do monastério T’ien-T’ung ia me indicar como seu assistente. Ele me disse: ‘É verdade, Dogen, és um monge estrangeiro, mas excelente em capacidade.’ Prontamente eu recusei este convite. Pois, embora isto pudesse ser divulgado no Japão e muito contribuir com minha prática ulterior no Caminho, algum amigo meu iluminado, temia eu, poderia me criticar, para o meu pesar, dizendo: ‘A China Sung parece não ter ninguém à altura desta posição, se ele, um estrangeiro, é indicado para este cargo, neste monastério tão importante.’
“Assim, escrevi ao Mestre para este efeito. Finalmente, vendo meu profundo respeito pela China Sung, e como eu estava preocupado com a crítica de outros monges excelentes, ele acatou minha recusa e não mais reiterou o convite para este cargo.”
[2] Meu mestre disse:
“Uma certa pessoa comentou: ‘Meu corpo e mente não estão à altura da prática do Caminho. Eu vou passar o resto da vida ouvindo o ensinamento buddhista e morando sozinho, cuidando de minha frágil saúde.’
“Isto está completamente errado. Os velhos Mestres não tinham todos uma saúde de ferro; nem todos os antigos praticantes tinham uma capacidade superior. Alguns eram bons, outros não. Alguns monges cometiam erros extremamente grosseiros e outros eram de capacidade muito limitada. Mas nenhum deles se humilhava o bastante para desistir de ganhar o Caminho por causa de suas limitações. Se não praticarmos o Caminho nesta vida, em que outra vida poderemos esperar praticá-lo como homens capazes e sadios? O mais importante na prática buddhista é que despertemos para a mente que busca o Caminho, e que pratiquemos isto mesmo ao custo de nossa própria vida.”
[3] Meu mestre disse:
“Praticantes Zen não devem ambicionar comida ou roupas. Cada homem já nasce agraciado com comida e roupa. Mesmo que queiramos obter mais do que o nosso quinhão, veremos que isto é impossível. Além disto, praticantes Zen não têm falta de comida por que esta lhes é oferecida por doadores, ou eles a obtém através de suas mendicâncias. O monastério tem propriedade própria. Isto não é operado como uma empresa lucrativa. Há três tipos de alimentos — frutas e framboesas, o alimento obtido pela mendigação, e aquele alimento recebido de doadores bondosos. Todos estes alimentos são puros. Qualquer outra comida consumida por pessoas das classes militar, agrícola, industrial e mercantil — não é pura e não deve ser comida por monges.
“Uma vez, havia um monge. Quando morreu, foi para o inferno. O Rei Yama2 disse: ‘Sua vida ainda não terminou. Que volte para o mundo humano.’ Então um funcionário do inferno disse: ‘ É, a linha da vida dele não acabou ainda, mas a linha da comida esgotou-se.’ O Rei Yama disse: ‘Então que ele se alimente de folhas de lótus.’ Retornando à força ao mundo humano, ele passou o resto de sua vida comendo folhas de lótus apenas, incapaz de comer comida humana.
“Disto se deduz que os monges Zen não precisam buscar por comida devido às suas práticas severas. Por causa da luz de longo alcance emitida da testa do Buddha, ou da herança deixada pelo Tathagata, não esgotaremos nosso estoque de comida e roupa, mesmo em um longo período de tempo. Devemos nos dedicar de todo o coração ao Caminho, em vez de buscar necessidades básicas.
“‘Uma mente sã está num corpo são’, assim dizem os livros médicos. Se praticantes Zen levarem vidas puras de acordo com os preceitos de Buddha, ou as ações dos buddhas e ancestrais, suas mentes melhorarão proporcionalmente.
“Quando praticantes buddhistas disserem algo, devem pensar três vezes se estas palavras são úteis ou não, para si mesmos, ou para outros. Se úteis, devem ser ditas. Se não, não devem ser ditas. É impossível dominar isto de uma vez, melhor lembrá-lo e começar a praticá-lo aos poucos.”
[4] Numa palestra requisitada, meu Mestre disse:
“Praticantes Zen não devem jamais se preocupar com comida e roupa. Pequeno e distante da Índia, como é nosso país, há muitos mestres que se destacaram, tanto nos ensinamentos exotéricos quanto nos esotéricos, e que se tornaram conhecidos de gerações posteriores, ou que nasceram de famílias famosas pela música ou pela poesia, ou que brilharam na literatura ou nas artes militares, ou no conhecimento e na arte. Contudo, eu nunca ouvi dizer que eles fossem ricos ou tivessem bens materiais em abundância. Para adquirirem uma tal proeminência em seus respectivos campos de conhecimento, dependeram de suas concentrações em suas áreas específicas de saber, agüentando a pobreza e esquecendo tudo o mais. Inútil mencionar que praticantes Zen deixam o mundo e jamais almejam reputação mundana ou lucro. Como poderiam se tornar ricos?
“Nos monastérios Zen da China Sung, apesar de estarmos na época do buddhismo decadente, vinham muitos monges de distritos distantes, ou de suas terras natais. A maioria deles era pobre. Mas nenhum deles se preocupava com isto. O único medo que tinham era de deixar de se iluminar. Onde podiam, eles sentavam em meditação, treinando o buddhismo de todo o coração, como se estivessem de luto por seus pais falecidos.
“Agora deixem-me contar-lhes um exemplo excelente, visto com meus próprios olhos na China. Veio uma vez um monge da longínqua província de Shi-Chwan. Nada trazia consigo, exceto dois ou três bastões de tinta da Índia. Estes bastões custavam 200 ou 300 mon3, o equivalente a 20 ou 30 mon na moeda japonesa. Com estes poucos bastões de tinta da Índia ele comprou algumas tiras de papel barato e com isto fez uma calça — hakama4 e um casaco. Toda vez que ele se sentava ou se levantava nesta tosca vestimenta, fazia um barulhão de papel amassado. Mas ele estava completamente desligado de sua aparência maltrapilha. Um certo monge lhe disse: ‘É melhor ires para casa, para adquirires roupas.’
“Ele replicou: ‘Minha casa fica muito longe. A caminho de casa eu estaria desperdiçando tempo precioso na prática do Caminho.’ Com estas palavras, ele treinava tanto mais severamente, sem se importar com o frio. Por isto, na China Sung pode-se encontrar monges excelentes.”
[5] Meu mestre disse:
“Diz-se que, quando Hsueh-Feng5 fundou seu templo, praticava numa pobreza tão extrema, que por vezes abstinha-se de comer, ou às vezes comia apenas arroz cozido e ervilhas. Mas mais tarde moravam com ele sempre, pelo menos, 1500 monges em residência. Assim era com os monges de outrora. Assim também deve ser com os de hoje em dia.
“É principalmente devido à riqueza e à busca de reputação pública que monges fracassam no buddhismo. Foi porque o Buddha Shakyamuni tinha 500 carroças de doações todos os dias que Devadatta6 ficou com inveja dele naquele tempo. Riquezas e reputações não somente nos estragam, mas conduzem os outros ao mal. Como seria possível a verdadeiros praticantes buddhistas serem ricos? Quando devotos piedosos nos oferecem coisas, naturalmente lhes seremos agradecidos por suas benevolências.
“Como acontece com freqüência em nosso país, as pessoas fazem oferendas espontaneamente e de boa fé. Freqüentemente damos presentes a bajuladores. É assim o mundo. Será um obstáculo à prática do Caminho se o fizermos apenas para explorarmos os demais. Devemos apenas praticar o Caminho, arrostando a fome e o frio.”
[6] Um dia meu Mestre disse:
“Um velho mestre disse: ‘Devemos ouvi-lo, vê-lo e experimentá-lo.’ Ou alguns dizem: ‘Se não pudermos experimentá-lo, devemos vê-lo’; ou ‘Se não pudermos vê-lo, devemos ouvi-lo.’
“Isto mostra que é melhor ver que ouvir; melhor experimentar que ver; e que devemos ver a menos que o tenhamos experimentado, e devemos ouvir a menos que o tenhamos visto.”
[7] Novamente disse meu Mestre:
“Na prática do Caminho devemos nos livrar do apego inato. Em primeiro lugar devemos melhorar nossas ações, e logo nossa mente ficará muito mais tranqüila. Para tal, devemos observar os preceitos buddhistas, e nossa mente melhorará de acordo. Leigos na China juntam-se diante do mausoléu da família para cumprirem seus deveres filiais para com pais falecidos, e fingem chorar até que, de repente, choram de verdade. Assim, praticantes Zen finalmente despertarão para o espírito do Caminho, se energicamente tentarem amar e estudar o Caminho, apesar de no começo não possuírem uma mente que busca o Caminho.
“Principiantes no Caminho devem praticar o Caminho apenas seguindo outros monges, e não tentando às pressas se inteirarem dos meios costumeiros da prática. É necessário conhecê-los exatamente apenas quando praticamos desapercebidos nas montanhas ou numa cidade. Nós nos iluminaremos se praticarmos seguindo nossos amigos monges. É como quando se vai num barco: chegamos à outra margem apenas confiando os destinos do barco a um piloto perito, mesmo que não saibamos conduzir o barco. Se seguirmos um líder excelente, e não-egoistamente praticarmos o Caminho junto com outros amigos, naturalmente nos iluminaremos.
“Praticantes Zen, mesmo que tenham alcançado a iluminação, não devem cessar de praticar o Caminho, julgando não haver nada nele além daquilo. O Caminho não tem fim, e portanto deve haver prática após a iluminação. Devemos nos lembrar da história7 do conferencista Liang-Chu, que praticou e ganhou a iluminação sob o Mestre Ma-ku.”
[8] Meu mestre disse:
“Praticantes Zen não devem postergar ao futuro suas práticas, mas fazê-las apenas no presente — o que digo, neste momento mesmo — não desperdiçando o seu tempo.
“Perto daqui morava um leigo. Estava há muito tempo doente de cama. Na primavera passada fez uma promessa que, quando melhorasse de sua moléstia, não deixaria de abandonar a família, construir uma cabana perto de um templo, juntar-se ao encontro de arrependimento8 que acontece duas vezes por mês, dedicar-se à prática diária, ouvir os ensinamentos, e levar o resto de sua vida observando os preceitos buddhistas, de acordo com sua capacidade. Mais tarde, devido ao tratamento médico rigoroso, sua saúde melhorou consideravelmente. Mas aí ele desperdiçou tempo, e começou a piorar de novo. No dia primeiro de janeiro sua doença entrou numa fase crítica. Perturbado por dores cada vez mais intensas, não teve tempo de terminar sua cabana e para lá levar a mobília que havia anteriormente preparado. Assim, alugou uma cabana e ali morreu dentro de dois meses. Na noite anterior à sua morte, recebeu os preceitos do bodhisattva e dedicou-se aos Três Tesouros. A julgar por estas boas ações à beira da morte, seu mérito estava acima daquele dos leigos que morreram ainda apegados a suas famílias e com as mentes agitadas. Mas ele deveria ter deixado sua casa e se juntado à comunidade monástica quando teve a intenção no ano anterior. Então poderia se familiarizar com a vida de monge, e ter praticado o Caminho durante um ano. Disto devemos concluir que não devemos adiar a prática do Caminho para o futuro.
“Podemos querer começar uma prática buddhista apenas depois da recuperação de uma doença, mas este tipo de resolução adiadora provém de uma falta da mente que busca o Caminho. Nosso corpo é composto dos quatro elementos9. Quem possivelmente estaria livre de doenças? Nem todos os velhos mestres tinham uma saúde de ferro. Mas uma vez tendo aparecido a sincera aspiração pelo Caminho, eles o praticavam esquecidos de tudo o mais. Quando nos ocorre uma coisa importante, as coisas triviais perdem o sentido. Claro, o Caminho é vital para nós; então devemos procurar ganhá-lo em vida e não desperdiçar nosso tempo.
“Um velho mestre disse: ‘Nunca desperdicem tempo.’ Ao tentarmos curar a doença, podemos piorar, e sentir cada vez mais dor. Devemos praticar enquanto há apenas uma pequena dor, antes que pioremos mais ainda. Na pior das hipóteses, devemos resolver praticar o Caminho antes de nossa morte. Com tratamento médico alguns melhoram, outros pioram; sem tratamento médicos uns pioram, outros melhoram. Este fato deve ser compreendido cuidadosamente.
“Praticantes Zen não devem pensar em praticar somente depois de acharem uma residência, três mantos e uma tigela, e tudo o mais. Aqueles que são pobres e não podem ter mantos, tigelas etc, aproximam-se da morte dia a dia, enquanto esperam obter estas necessidades. Como esta pessoa pode resolver seu problema? Se a pessoa quiser praticar apenas após obter uma residência, mantos e tigelas, estará desperdiçando sua vida. Compreendendo que, mesmo sem mantos e tigelas, podemos praticar o Caminho, devemos ser maximamente esforçados na prática. Mantos e tigelas são apenas decorações para monges. O verdadeiro monge nunca depende delas. Não faz diferença se as possui ou não. Não há necessidade de se esforçar para obter estas coisas. Mas não devemos simplesmente descuidar daquilo que temos. É uma idéia não-buddhista deixar a doença sem tratamento propositadamente, se houver chance de recuperação. Devemos estar dispostos a tudo para obter o Caminho; mas não devemos desperdiçar nossa vida em vão. Fazendo tratamento médico, podemos talvez cauterizar a parte afetada com moxa ou tomar os outros remédios apropriados. Não nos deve deter, contudo, de buscar o Caminho. É um erro colocar o tratamento de doença acima da prática do Caminho.”
[9] Meu mestre disse:
“No oceano há um lugar chamado Lung-men, caracterizado pela existência de enormes vagalhões. Logo que os mais variados peixes passam por tais ondas, nunca deixam de virar dragões. Daí o nome Lung-men — Portão do Dragão. Na minha opinião, as ondas existentes ali não são diferentes daquelas achadas em outras localidades, quer sejam em altura ou em salinidade. Mas, fato estranho, tão logo peixes por ali passem, nunca deixam de virar dragões, sendo que suas escamas e seus corpos não sofrem quaisquer alterações.
“O mesmo vale para monges. Vivem no mesmo tipo de lugar que leigos, mas ao entrarem num monastério Zen nunca deixar de se tornarem buddhas e ancestrais. Consomem a mesma comida e usam o mesmo tipo de roupa que leigos, para se livrarem do frio; mas com o simples fato de rasparem suas cabeças, usarem mantos de formato quadrado e comerem apenas duas refeições, ou seja, desjejum e almoço, logo se tornam monges. A melhor maneira de se tornar um Buddha ou ancestral não está distanciada de nós, mas é acessível — no fato de entrarmos no monastério Zen. Da mesma forma que peixes viram dragões ao passarem pelo portão do dragão.
“Mercadores dizem sempre que não acham compradores para seu ouro, apesar do seu desejo sincero de vendê-lo. O mesmo ocorre com os buddhas e ancestrais. O Caminho está escancarado ante nós, mas nós não o procuramos; a apreensão do buddhismo não depende de nós. Todos podem se iluminar. Deve-se exclusivamente à intensidade de nossos esforços se levamos muito ou pouco tempo para nos iluminarmos. O abismo entre o esforço e a preguiça atribui-se à existência ou não da mente que busca o Caminho. A falta deste tipo de compreensão mental se deve principalmente a nossa ignorância de quão impermanente nossa vida é na realidade. A todo instante nosso corpo está se transformando, e não fica estacionário ou fixo nem por um momento sequer. Logo, nesta vida transiente não devemos desperdiçar nosso tempo precioso.
“Diz um velho ditado: ‘Um rato morando no silo, morre à míngua a um metro do milho; um boi arando o pasto morre de fome perto do mato.’ Isto ilustra que o ratinho perto da comida pode passar fome, e um boi deseja pastar capim estando no meio dele. O mesmo ocorre com o homem. Embora já esteja no Caminho, não está consciente disto. Enquanto estivermos apegados à reputação mundana e à fome de lucro, não podemos viver nossas vidas na tranqüilidade e com conforto.”
[10] Meu mestre ensinou:
“Ao fazerem o bem e o mal, todos os iluminados consideram os fatos tão profundamente, que pessoas comuns não podem sondar tais pensamentos.
“Quando vivia o Mestre Sufragan Esshin10, este ordenou a seu assistente que enxotasse um veado que pastava ali no seu jardim. Então um dos presentes contestou: ‘Porque és tão sem compaixão? Porque não deixaste o pobre animal pastar da tua grama?’ O outro respondeu: ‘Se eu não fizer com que o enxotem, o veado se acostumará à presença humana, ocasião em que alguém o poderá matar. Foi por isto que o enxotei.’
“De fato, enxotar um pobre veado pode parecer duro, mas foi feito por uma compaixão muito profunda por ele.”
[11] Um dia meu Mestre disse:
“Quando indagados sobre buddhismo, monges devem dizer a verdade, nem mais nem menos. Não devem nunca dizer o que não for verdade, julgando o interlocutor inferior a si mesmos, ou achando que ele é principiante no buddhismo. Os preceitos do bodhisattva nos dizem que, se um homem do calibre Hinayana11 nos perguntar sobre o caminho Hinayana, devemos responder-lhe de acordo com o Mahayana12. Foi isto o que aconteceu com os sermões13 que o Tathagata pregou antes de deslanchar os verdadeiros ensinamentos14. Realmente proveitosos são os seus últimos sermões, pregados pouco antes de sua morte. Logo, digamos tão somente a verdade, quer nossos interlocutores possam compreender ou não. Ao nos depararmos com um homem de verdade, não devemos julgá-lo por sua aparência externa ou virtude aparente, mas pelo que ele vale na realidade.
“Nos tempos de Confúcio, uma certa pessoa se aproximou e pediu para se tornar seu discípulo15. Confúcio lhe perguntou: ‘Porque queres ser meu discípulo?’ O homem replicou: ‘Achei o Senhor muito distinto e elegante, vendo-o caminhar para o Palácio Imperial.’ Confúcio mandou entregar todas as suas roupas, carruagem, ouro, prata e demais coisas ao homem, e lhe disse: ‘Nunca me foste fiel e devotado de fato. Estavas somente interessado nos meus apetrechos externos.'”
Meu mestre completou:
“Fujiwara Yorimichi16, o principal Conselheiro do Imperador, desceu um dia às salas térmicas do palácio17 e ficou olhando o fogaréu usado para aquecer a água. Um funcionário do local se deparou com ele inesperadamente e lhe interrogou: ‘Quem és, que aqui estás sem permissão?’ Então Yorimichi tirou sua coberta e apareceu novamente na sua roupa de corte. O funcionário, estupefato com sua imponência, fugiu espavorido. Então Yorimichi colocou sua bela vestimenta num cabide, e curvou-se profundamente ante ela. Alguém lhe perguntou porque fazia isto. Ele replicou: ‘Não é por minha causa que sou respeitado, mas por causa desta bela roupa.’
“É por esta razão que o tolo respeita os outros. O mesmo pode ser dito daqueles que atribuem muito valor às palavras de seitas e crenças religiosas.
“Um velho mestre disse: ‘Ele falou por todo o país e nunca disse uma só palavra que não fosse verdadeira. Reinou bem sobre o país e nunca fez um só inimigo entre o povo.’ Assim fala e assim age um homem que ganhou o mérito mais elevado e o âmago da verdade.
“Pessoas comuns com freqüência agem ou falam desde uma perspectiva egoísta. É provável que nada façam senão coisas desastrosas. Contudo, monges Zen falam e agem seguindo os modelos tradicionais, não com suas próprias opiniões. Assim é o Caminho que os buddhas e ancestrais seguiram sempre.
“Praticantes Zen devem refletir sobre como se comportar. Eles já são discípulos do Buddha Shakyamuni. Neste caso devem seguir o Caminho de Buddha. Devem se conduzir corretamente em palavras, mente e ações, assim como o fizeram os buddhas passados. Mesmo leigos nos dizem que as roupas devem ser usadas de acordo com um modelo estabelecido, e que as palavras devem ser faladas de acordo com um padrão. Mais ainda, devem os monges Zen estar livres de suas próprias opiniões.”
[12] Meu mestre disse:
“Hoje em dia a maioria dos praticantes Zen, ouvindo falar sobre buddhismo, logo quer demonstrar suas rápidas compreensões, e dar respostas afiadas a outros. Assim, tudo que seus mestres lhes disseram é ignorado. Em última análise, isto ocorre porque estão apegados demais a si mesmos, para despertarem para a mente que busca o Caminho. Devem abandonar este apego a si mesmos, ouvir o que dizem seus mestres, e refletir então calmamente sobre aquilo que foi dito. Se acharem algo obscuro, devem procurar esclarecimento ulterior. Se for compreendido, devem procurar expressar o que compreenderam a seus mestres. É porque não ouviram cuidadosamente a aula buddhista que imaginam ter tudo compreendido.”
[13] Meu mestre ensinou:
“No reino do Imperador Tai-Tsung da T’ang18, um cavalo puro sangue foi ofertado a este imperador, por um país estrangeiro. Podia cobrir 1000 ri por dia. Descontente com este presente, ele pensou assim; ‘É verdade, este animal é mesmo fantástico, pode percorrer 1000 ri num só dia, mas do que adianta se ninguém puder me acompanhar nele!’
“Então ele chamou Wei-Cheng19 e lhe disse: ‘Que pensas a respeito?’ Wei-Cheng disse: ‘Concordo plenamente.’ Então diz-se que o Imperador ordenou ao mensageiro que devolvesse o cavalo, não sem antes carregá-lo de ouro e prata.
“O Imperador, apesar de leigo, nunca mantinha uma coisa inútil, mas a enviava de volta. Mais ainda, devem os monges Zen ter mantos e tigelas apenas. Para que acumular coisas inúteis? Pessoas comuns, dedicadas a uma coisa, não necessitam de terra ou feudos. Mas vêem as pessoas do mundo todo como se fossem de seus próprios países e como seus parentes.
“Jiso Hokkyo20 deixou o seguinte testamento para seus filhos: ‘Deveis vos dedicar ao buddhismo.’ Mais ainda devem os praticantes Zen se dedicar a uma só coisa: ao buddhismo. Isto é assunto para monges tratarem. ‘
[14] Meu mestre disse:
“Quando praticantes Zen indagarem a seus mestres sobre buddhismo, que o façam exaustivamente, até que o assunto seja bem compreendido. Deixarem perguntas necessárias e palavras necessárias não ditas, e será desvantajoso.
“A resposta do mestre vem somente após a pergunta ser feita. Então devemos questionar nosso mestre repetidamente, até que a compreensão seja atingida, mesmo que crermos já dominar o assunto. O mestre por sua vez deve indagar a seus discípulos se tudo compreenderam do que foi dito.”
[15] Meu mestre ensinou:
“A perspectiva mental dos praticantes Zen é o contrário das pessoas comuns.
“Quando o mestre Eisai do monastério de Kennin-ji era ainda vivo, aconteceu que seus monges ficaram sem uma migalha sequer para comer. Então um amigo do mestre Eisai convidou-o para celebrar uma cerimônia fúnebre, e lhe deu um rolo de seda em agradecimento. Eufórico com isto, ele retornou ao monastério, não deixando nem que seus discípulos carregassem o rolo de seda, carregando-o pessoalmente. Então ele entregou a seda ao monge-tesoureiro, dizendo: ‘Vende isto amanhã, para podermos comer.’
“Entretanto, um leigo apareceu, e pediu a seda, dizendo: ‘Estou envergonhado de dizer que necessito de alguns rolos de seda. Se tiveres algum, por favor dá-mos.’ Sem um momento de hesitação, Mestre Eisai apanhou a seda com o monge-tesoureiro, e a deu ao leigo. Então o monge-tesoureiro e os outros tiveram dúvidas quanto à sua decisão.
“Mais tarde o Mestre disse: ‘Todos vocês acham que eu cometi um engano, mas eu acho que vocês estão aqui para praticar o Caminho. E se vocês ficassem sem comida um dia, e morressem de fome? É um grande mérito para vocês monges que eu tenha ajudado uma pessoa do mundo que necessitava disto para sobreviver.’ Tão profunda é a mente de uma pessoa que possui a mente que busca o Caminho.”
[16] Meu mestre disse:
“Todos os buddhas e ancestrais eram, no começo, pessoas comuns. Como tal, cometiam erros e enganos, eram obtusos ou tolos. Decidindo se superarem, contudo, praticaram seriamente, sob mestres de renome, até se tornarem buddhas e ancestrais. Exatamente a mesma coisa ocorre hoje. Somente por causa de nossas limitações ou tolices, não devemos nos depreciar. A menos que despertemos para a mente que busca o Caminho nesta vida, em que outra vida podemos fazê-lo? A prática enérgica trará certamente o fruto da iluminação.”
[17] Meu mestre disse:
“Há um velho provérbio sobre o Caminho do Imperador: ‘A menos que possua uma mente tão vasta quanto o céu vazio, não pode aceitar bons conselhos.’ Quer dizer que o imperador deve preferir o conselho de seu súdito leal ao seu próprio, e agir dentro do Caminho do Imperador, afinado com a verdade.
“O mesmo vale para a disciplina tradicional na prática do Caminho. O apego a nós mesmos não nos deixará ouvir as palavras de nosso mestre nem assimilar seus ensinamentos. Quando nos absorvemos completamente no que foi exposto, esquecidos de assuntos mundanos, ou da fome e do frio, tanto quanto de nossos pontos de vista pessoais sobre o buddhismo, podemos então compreender o que foi transmitido. Então podemos esclarecer nossa dúvida e ganhar a verdade buddhista. Para realizarmos o verdadeiro Caminho, é mister abandonarmos opiniões auto centradas e egoístas passadas, nosso primeiro conhecimento, e seguirmos nosso objetivo com todas as nossas forças. Então seremos tal qual estamos, pessoas autenticamente iluminadas. Este é o ponto chave da prática buddhista.”
Notas
1. Jü-tsung — conforme nota 29 do capítulo 1.
2. Rei Yama — o grande Rei do Hades, encarregado de ver quem cometeu pecados, e de expor a eles os maus efeitos de suas condutas errôneas.
3. Mon — uma unidade monetária na China e no Japão antigos.
4. Hakama — uma calça larga e dividida.
5. Hsueh-Feng (822-908), um herdeiro do Dharma de Te-Shan (792-865), e conhecido pelo seu treinamento severo.
6. Devaddatta — o primo de Shakyamuni, notório por suas maldades. Uma vez tentou em vão privar Shakyamuni de sua autoridade buddhista, e morreu em sua agonia.
7. A história do Conferencista Liang-Chu. A vigésima-primeira das 300 Histórias do Shobogenzo diz: “Primeiro, quando Liang-Chu veio a Ma-Ku, Ma-Ku estava cortando grama com uma foice. Ma-Ku não prestou atenção a Liang-Chu, mas voltou ao seu quarto e fechou a porta. No dia seguinte Liang-Chu apareceu de novo, mas Ma-Ku ainda manteve a porta fechada. Finalmente quando Liang-Chu bateu na porta, Ma-Ku perguntou quem era. Tão logo Liang-Chu disse seu próprio nome, iluminou-se.”
8. O encontro de arrependimento (upavasa, upavastha), celebrado duas vezes por mês, no dia 15 e no dia 29 ou 30. Então os monges fazem uma assembléia, lêem o sutra dos preceitos e confessam seus possíveis erros ante os demais.
9. Os quatro elementos. De acordo com o buddhismo, todas as coisas têm sua raiz nos quatro elementos — terra, água, fogo e vento.
10. Mestre Suffragan Eshin (942-1017) — seu nome leigo era Genshin. Foi ao Monte Hai com nove anos de idade e tomou os preceitos de monge aos 13 anos. Bem versado nas doutrinas de Kusha, Immuyo, Tendai e Jodo, foi o precursor da doutrina Jodo — doutrina da Terra Pura.
11. Hinayana — O veículo menor. Estudado por aqueles que dão ênfase em atingir suas próprias iluminações, não ajudar os outros. Aplica-se às doutrinas de Agon, Kusha, Jojitsu etc.
12. Mahayana — O veículo maior. Estudado por aqueles cujos propósitos é salvar outros antes de si mesmos. Aplica-se às doutrinas de Kegon, Tendai, Zen, Jodo etc.
13. Sermões expedientes. Ensinamentos Presumíveis — conforme nota 2 do capítulo 4.
14. O seu último sermão verdadeiro — o Saddharma-pundarika Sutra e o Nirvana Sutra.
15. Confúcio (552-479 a.C.) — Primeiro foi funcionário público, depois Grande Funcionário Judicial. Pediu apoio por todo o país para seus pontos de vista. Suas palavras e ações estão registradas nos “Compêndios de Confúcio”.
16. Fujiwara Yorimichi (992-1074) — o filho primogênito de Fujiwara-Michinaga. Tornou-se Kampaku — Conselheiro Principal do Imperador em 1019 e manteve a posição durante 50 longos anos. Construiu o templo Byo-doim em Uji.
17. O salão das caldeiras — onde é aquecida a água do banho na Corte Imperial e residência do Shogun.
18. Tai-Tsung — conforme nota 3 do capítulo 2.
19. Wei-Cheng — conforme nota 4 do capítulo 2.
20. Hokkyo — uma hierarquia de monges japoneses.
Extraído do site www.dharmanet.com.br