Shobogenzo Zuimonki – Prefácio


Shobogenzo Zuimonki
Prefácio por Ryotan Tokuda

de Eihei Dogen Zenji
Adaptado da tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão

O que podemos constatar no mundo de hoje em dia é que existe realmente muita confusão, seja no âmbito político, econômico, ou filosófico. E o modo das pessoas de dar valores às coisas também se encontra igualmente perdido.

Recentemente Mestre Dogen (1200-1253) tem despertado muito interesse para pessoas que buscam pela verdade mais elevada e última. Não somente como fundador da Escola Zen Soto no Japão, mas justamente como um dos maiores filósofos, senão o maior de todos eles, e pensadores religiosos que jamais passaram pela face da terra. E isto não somente entre Budistas, mas também entre cientistas, físicos, matemáticos, médicos, arquitetos, psicólogos.

Existem hoje em dia muitos tipos de traduções do Shobogenzo para língua japonesa moderna e também para línguas ocidentais tais como inglês, francês, alemão, espanhol. Esta presente tradução para o português foi feita pelo monge Ryokyu Marcos Beltrão.

Esta obra prima do Mestre Dogen tem sempre sido considerada, desde antigamente, como sendo de compreensão muito difícil, porque o “Shobogenzo” de Mestre Dogen fala sobre o “Mundo da Verdade” que por ele foi pessoalmente vivenciado.

Este livro, o
Shobogenzo Zuimonki é mais fácil de ser lido e compreendido. Aqui ele fala de maneira carinhosa e detalhada sobre a prática e o espírito para aquele que quer treinar o Caminho. 

É sobretudo aqui que o jovem Mestre Dogen fala sobre o Caminho em que ele confia com toda sua tremenda força de vontade. O que este Zuimonki nos transmite é esta força de um espírito fervoroso. Através deste livro, Mestre Dogen ele mesmo se aproxima muito de nós. 

Em 1228, Ejo visitou Mestre Dogen em Kennin-ji para se
inteirar daquilo que Mestre Dogen havia aprendido na China e que transmitiria ao Japão. 

Durante seus encontros, nos primeiros dois ou três dias, suas compreensões se harmonizaram completamente, mas depois destes primeiros dias, Mestre Dogen começou a mostrar aspectos do Dharma muito mais profundos, os quais Koun Ejo não podia alcançar, e com isto não mais podia responder a Mestre
Dogen, tornando-se assim um discípulo de Mestre Dogen.

Ejo Zenji era um grande professor do buddhismo, tanto em seu aspecto exotérico quanto esotérico. E ele era dois anos mais velho que Dogen Zenji. Mas ele entendeu o que era na verdade a transmissão do Dharma correto e o que era também um verdadeiro Mestre. 

Desde então, a partir desta data em que Ejo Zenji voltou para morar com Dogen Zenji, de 1234 até 1238, ele começou a escrever o que havia ouvido das conversas íntimas com Dogen Zenji. Nesta ocasião Dogen Zenji tinha 35 anos de idade, sendo que seu discípulo, Ejo tinha 37 anos de idade e todas estas anotações que mais tarde se constituiriam no Shobogenzo Zuimonki, ele as guardou dentro de sua caixa de correspondência, e tudo isto apareceu somente após o falecimento de Ejo Zenji, este manuscrito, hoje conhecido com o nome de Shobogenzo Zuimonki.

Em seu Jyundo Shiki (Regulamentos para o Salão da Nuvem), diz Mestre Dogen, que “apesar de agora durante algum tempo a pessoa ter a relação de hóspede (discípulo) e de anfitrião (Mestre), mais tarde seremos como herdeiros-de-buddhas, iguais durante todo o tempo. Portanto eis
porque não se deve jamais se esquecer o sentimento de gratidão. É muito difícil de se encontrar um com o outro e de praticar aquilo que é muito raro de ser praticado.”

Para nós seres humanos certo tipo de encontro com o outro é muito importante, principalmente esta relação de Mestre com discípulo, mas isto não inserido no tempo e sim na eternidade.

É desta forma que aquilo que realmente toca nosso coração é “aquela verdade que não muda para sempre, imutável,” além da história.

Ejo Zenji entregou sua mente e corpo
inteiramente sem nenhuma idéia egoísta que fosse para seu jovem mestre. E começando a anotar também suas palavras chegou assim a organizar a obra prima de seu Mestre, o Shobogenzo.

Mais tarde, Dogen Zenji sentiu que sua vida não iria se prolongar durante muito tempo mais, devido a sua saúde, que estava abalada. Com isto ele disse a Ejo Zenji: “Senhor, você precisa expandir
este Dharma de transmissão correta. Para tal fim estou contando muito com o Senhor.” E era desta forma que ele tratava seu discípulo, como se fosse seu próprio Mestre.

Quando Dogen Zenji faleceu com 54 anos de idade, Ejo Zenji desmaiou com tristeza durante quase uma hora. 

Desde então, tendo colocado o retrato de Dogen Zenji em seu quarto, fazia suas reverências
todos os dias com muito respeito, como se seu mestre ainda continuasse vivo.

No ano de 1280, Ejo Zenji faleceu com 83 anos de idade. Antes de falecer, ele requisitou a seus discípulos que colocassem os seus ossos ao lado da torre de seu Mestre, Dogen Zenji, exatamente como se estivesse num lugar de assistente e proibiu rigorosamente a construção de sua torre separadamente.

Assim, este relacionamento entre Dogen Zenji e Ejo Zenji não era simplesmente aquele de Mestre e discípulo, mas era como Buddha encontrando com Buddha, igualmente buscando a verdade na eternidade. Diante da verdade ou diante do Dharma de Buddha, cada um de nós tem que ser vazio. Não é precioso aquele que realizou a verdade, mas o precioso de fato é a verdade que é realizada através de si mesma.

Quando as pessoas de hoje em dia lêem este Zuimonki, com muitas coisas elas concordam, mas ao mesmo tempo muitas outras coisas sentem como estrangeiras a si mesmos. Por exemplo, um dos casos descritos neste livro discorre sobre a “quantidade de vida da pessoa,” e a “quantidade de comida” (Capítulo 6, Caso 3). Esta teoria diz: “A quantidade de comida que cabe a pessoa durante sua vida, ou a duração de sua vida, é algo que está já definido de acordo com cada pessoa.” 

Para nós, seres modernos, é extremamente difícil aceitar este tipo de idéia facilmente. Mas aquilo que está querendo ser demonstrado com esta história é que se nós estamos buscando o Caminho sinceramente, podemos ter fé que as coisas mínimas necessárias para nossa vida, tais como comida ou roupa, nos podem ser dadas, sem que as busquemos ansiosamente. 

A base para este tipo de confiança é que sentimos nossos limites de existência e que não necessitamos cobiçar cegamente aquilo que realmente não necessitamos. 

Podemos dizer que tanto para “parte de vida” quanto para a “parte de comida” uma quantidade já está calculada definitivamente. Só que disto não nos inteiramos ainda. Se disto tivéssemos nos inteirado, teríamos chegado ao fim da vida.

Então o que isto significa é basicamente a idéia de nossas limitações, de querer conhecer através de nossos cálculos ou de nossos conhecimentos. 

Exatamente o que nós perdemos na nossa sociedade moderna é esta idéia de nossas limitações ou de termos sensibilidades para com nossas limitações. A sociedade moderna fala muito em “Liberdade” para os seres humanos, dentro deste mundo profano e na busca de nossos desejos sem limites.

Mas originalmente “Liberdade” significa liberdade de nossas motivações emocionais, de nossas limitações emocionais e não liberdade no sentido de podermos fazer aquilo que bem desejarmos livremente, mas sim reconhecendo o valor e preciosidades nossas como seres humanos que somos. É a este tipo de liberdade racional que se refere Mestre Dogen.

O fato é que nós seres humanos temos a natureza de buscar o conforto e queremos evitar e colocar de lado todo tipo de sofrimentos. Queremos em resumo buscar aquilo que mais agradável for e o que for menos dolorido possível. Segue-se em decorrência disto que toda nossa motivação para a ação só pode ser a mais egocêntrica possível. Mas exatamente por isto, o fundamental que temos que fazer é realizar a felicidade do maior número de pessoas possível.

Para buscarmos a maior felicidade para o maior número possível de pessoas, então cada um de nós precisa controlar a si mesmo. 

Vê-se pois que “Liberdade” tem um significado totalmente oposto à ação egoísta, de acordo com nossas motivações sensíveis.

O que ocorre hoje em dia é que nós confundimos esta idéia de que temos todo o direito de agir naquilo e no tanto que quisermos com a natureza e com os seres humanos. E com isto nos esquecemos totalmente de nossas limitações. Então isto que entendemos como “Liberdade” não é a verdadeira “Liberdade”, mas tão somente e apenas nossas idéias de egoísmo auto-centradas.

Hoje em dia nós perdemos a harmonia que deveria existir entre a natureza e o ser humano e também a perdemos no que diz respeito à harmonia entre as próprias pessoas entre si, e dentro de nós mesmos a perdemos entre as emoções e razões que nos regem a todos.

Nós perdemos algo de muito importante através do qual viver esta vida. E o fato é que ainda sequer reconhecemos aquilo que perdemos.

Este Zuimonki mostra uma parte deste mundo de valores e valorização de si mesmo e da natureza que a sociedade de hoje em dia abandonou e esqueceu.

Recuperando estes valores, através disto podemos reorganizar a técnica e a ciência. E podemos nos desenvolver de uma maneira saudável com uma sabedoria que confere uma visão correta para dar a direção correta bem como os objetivos corretos.

Onde as pessoas de hoje em dia fracassam, podemos descobrir um caminho para um mundo de valores que esquecemos e aos quais demos nossas costas. Este é o caminho que pode nos tornar mais uma vez corretos, através do retorno à origem mesma de onde viemos, à origem de nosso ser.

14/6/1994
Durante o Angô de verão em Hozan Dojô
no Templo Shogoji,
Kyushu, Japão
Ryotan Tokuda

Extraído do site www.dharmanet.com.br


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