Sísifo e o fardo da vida



Sísifo e o fardo da vida

Texto de Charlotte Joko Beck, extraído do livro”Nada Especial

A mitologia grega fala de Sísifo, rei de Corinto, condenado pelos deuses ao Hades em punição eterna. Para sempre ele tem que empurrar um rochedo imenso, colina acima, e, quando chega ao alto, o rochedo rola para baixo. Ele se esforça para empurrar a pedra imensa colina acima apenas para vê-la descer tudo de novo, interminavelmente, eternidade afora.
Como todos os mitos, essa história contém um ensinamento. Como vocês vêem esse mito? Do que ele trata? Como um koan, tem muitos aspectos.
ALUNO: O mito sugere para mim que a vida é um ciclo. Existe um começo, um meio e um fim e então começa tudo de novo.
ALUNO: Isso me faz pensar na prática de ficar limpando e limpando o espelho. Temos de fazê-lo até desistir e viver o momento presente.
ALUNO: O castigo de Sísifo é horrível só se ele espera que um dia termine.
ALUNO: Esse mito me recorda a ação obsessiva, quando estou preso num ciclo repetitivo de comportamentos e pensamentos.
ALUNO: Sísifo parece uma pessoa que está lutando com a vida e seus fardos, tentando livrar-se deles.
ALUNO: Essa história parece a nossa prática. Se vivermos cada momento, sem o pensamento de alguma meta, ou de chegar a algum lugar ou de finalmente obter alguma coisa, então nós apenas vivemos. Fazemos o que há em seguida: empurrar á rocha, ela rolar, e então empurrar de novo.
ALUNO: Penso que a história de Sísifo representa a idéia de que não existe esperança.
ALUNO: A natureza de minha mente é não ficar satisfeito com meus próprios feitos e ter mais interesse no desafio de chegar em algum lugar. Assim que consigo algo, ele não me diz mais muita coisa.
ALUNO: Sísifo é quem eu sou. Somos todos Sísifos, tentando fazer alguma coisa com nossas vidas e dizendo “Não posso”. O próprio rochedo é o “Não posso”.
JOKO: A questão que eu gostaria de colocar é o que quer dizer fazer o mal? É interessante que alguém tenha julgado Sísifo por ele ter feito o mal e que tenha sido condenado a um local especial chamado Hades. Deixando, porém essas questões de lado, se pudermos ver que só existe este momento, então empurrar a pedra colina acima ou vê-la rolar para baixo são, em certo sentido, a mesma coisa. Nossa interpretação comum é que a tarefa de Sísifo é difícil e desagradável. Contudo só o que acontece é empurrar a pedra e vê-la voltar, um momento depois do outro. Como Sísifo, estamos todos apenas fazendo o que estamos fazendo, de momento a momento. Acrescentamos julgamentos a essas atividades, contudo, acrescentamos-lhes idéias. O inferno não está em empurrar a pedra, mas em pensar nisso, em criar idéias de esperança e desapontamento, em indagar-se se um dia será possível finalmente fazer com que a pedra fique lá em cima. “Trabalhei tanto! Talvez desta vez a pedra fique.”
Nossos esforços de fato fazem com. que as coisas aconteçam e, fazendo com que elas aconteçam, chegamos ao segundo seguinte. Talvez a pedra fique no alto por certo tempo; talvez não. Nenhum dos dois acontecimentos é, em si, bom ou mau. O peso da pedra, o fardo, é o pensamento de que nossa vida é uma luta, de que deveria ser diferente do que é. Quando julgamos o fardo como algo desagradável, procuramos meios para escapar. Talvez uma pessoa se embebede para esquecer-se do que é empurrar a pedra. Outra manipula as pessoas para ajudá-la com isso. Muitas vezes tentamos empurrar essa carga para outra pessoa, para fugirmos do trabalho.
Qual poderia ser o estado iluminado para o rei Sísifo? Se ele empurrar a pedra alguns milhares de anos, o que por fim irá compreender?
ALUNO: Ser uno com o ato de empurrar, a cada momento.
JOKO: Simplesmente empurrar a pedra e abandonar a esperança de que sua vida será outra coisa. A maioria de nós imagina que o estado iluminado será algo muito mais agradável do que empurrar pedras! Alguma vez você já acordou pela manhã resmungando: -Não quero nem pensar em todas as coisas que tenho pela frente hoje”? Mas a vida é como ela é. E nossa prática trata não de fazer a vida ser gostosa, mesmo que essa seja uma esperança muito humana. Todos gostamos das coisas que nos fazem sentir bem. Gostamos em especial dos companheiros que nos fazem sentir bem. Se isso não acontece, concluímos que as coisas precisam ser mudadas, que ele ou ela precisa mudar! Por sermos humanos, pensamos que nos sentir bem é o objetivo da vida. Mas, se apenas empurrarmos nossa pedra atual e praticarmos para tomar consciência do que acontece em nós enquanto a empurramos, lentamente iremos nos transformar. O que significa transformar?
ALUNO: Mais aceitação, menos julgamentos, mais descontração diante da vida, abertura para a vida.
JOKO: Abertura para a vida e aceitação estão um pouco fora do alvo, embora seja difícil encontrar palavras exatamente corretas.
ALUNO: A iluminação tem algo que ver com chegar ao zero, ao “não-lugar”.
JOKO: Mas o que significa para um ser humano o “não-lugar”? O que é esse “não-lugar”?
ALUNO: O agora, o já.
JOKO: Sim, mas como o vivemos? Vamos supor que acordo de manhã com uma forte dor de cabeça e que tenho uma agenda lotada. Todos temos dias assim. O que significa “estar no zero” diante disso?
ALUNO: Significa estar ali com todos os meus sentimentos e com todos os meus pensamentos – simplesmente estar ali, sem acrescentar mais nada extra.
JOKO: Sim, e mesmo que acrescentemos algo extra isso também faz parte do pacote, parte da vida como ela é neste momento. Parte do pacote é: “Eu simplesmente não quero fazer tudo deste dia”. Quando esse pensamento é o que reconheço como presente, então estou apenas empurrando a minha pedra. Passo por esse dia difícil e o que me resta para o dia seguinte? De alguma forma o rochedo deslizou de volta para baixo enquanto eu estava dormindo, de modo que lá vou eu de novo: empurrar, empurrar, empurrar. “Eu detesto isso… sim, eu sei que detesto. Gostaria que tivesse um jeito de sair, mas não tem ou pelo menos eu não enxergo nenhum agora.” Perfeito sendo como é.
Quando nós vivemos de verdade cada momento, o que acontece com o fardo da vida? O que acontece com nossa pedra? Se formos totalmente o que somos, a cada segundo, começamos a sentir a vida como algo feliz. Entre nós e uma vida feliz estão nossos pensamentos, nossas idéias, nossas expectativas, nossas esperanças e nossos receios. Não é que tenhamos que ter uma completa boa vontade com respeito a empurrar a pedra. Podemos ter má vontade desde que reconheçamos nossa má vontade e simplesmente a sintamos. Má vontade não é problema. Uma parte fundamental de toda prática séria é “Não quero fazer isso”. E não fazemos. Mas, quando nossa má vontade é carregada pelos esforços para escapar, a questão é outra. “Bom, vou comer outra fatia deste bolo de chocolate. Acho que sobrou uma”; “Vou telefonar para minhas amigas e falar de como tudo é terrível”; “Vou me enfiar num canto para poder realmente ficar me preocupando com minha vida horrível e com toda a pena que sinto de mim”. Que outras maneiras existem para se escapar?
ALUNO: Ficar muito ocupado até me esgotar.
ALUNO: Ficar adiando.
ALUNO: Fazer planos e então refazê-los sem parar.
ALUNO: Meu jeito é ficar doente algum tempo.
JOKO: É verdade, costumamos fazer isso: ficar resfriados, torcer o tornozelo, pegar gripe.
Quando rotulamos nossos pensamentos, ficamos conscientes de como escapamos. Começamos a ver as mil e uma formas pelas quais tentamos escapar de viver este momento, de empurrar a nossa pedra. Desde o momento em que nos levantamos pela manhã até a hora em que vamos dormir, estamos fazendo alguma coisa; empurramos a nossa pedra o dia inteiro. É o nosso julgamento a respeito do que estamos fazendo que causa a nossa infelicidade. “Podemos nos julgar vítimas: “Estou trabalhando com alguém que não é justo comigo”; ”Não consigo me defender”.
Nossa prática é ver o que estamos empurrando – chegar nesse fato básico. Ninguém se dá conta disso o tempo todo; eu com certeza não. Mas reparo que as pessoas que estão praticando já há algum tempo começam a ter certo senso de humor a respeito de sua carga. Afinal de contas, a idéia de que a vida é um fardo é só um conceito. Estamos simplesmente fazendo aquilo que estamos fazendo, segundo a segundo. A medida de uma prática frutífera é sentirmos que a vida é menos um fardo e mais um motivo de contentamento. Isso não significa que não existe tristeza, mas a vivência da tristeza é o que justamente traz contentamento. Se não percebermos essa mudança depois de algum tempo de prática, então ainda não teremos entendido o que é a prática; essa mudança é um barômetro muito confiável.
Os fardos sempre estão aparecendo em nossos caminhos. Por exemplo, vamos supor que preciso passar certo tempo com alguém de quem não gosto, e isso, me parece um fardo. Ou tenho uma semana difícil pela frente e fico desanimada com essa perspectiva. Ou as turmas que tenho neste semestre são de alunos despreparados. Criar filhos pode nos fazer sentir sobrecarregado. Doenças, acidentes, quaisquer obstáculos que nos venham pela frente podem ser sentidos como fardos. Não podemos viver como seres humanos sem encontrar dificuldades, que podemos resolver chamar de “fardos”. A vida então começa a ser tão pesada.
ALUNO: Acabei de me lembrar de um conceito da psicologia que fala da “querida carga-.
JOKO: Sim, embora a. “querida carga” não possa permanecer apenas em nossas cabeças; ela deve transformar-se em nós. Existem muitos conceitos e noções maravilhosos, mas se eles não se tornarem nós, como somos, podem tornar-se os fardos mais hostis de todos. Entender uma coisa intelectualmente não basta; às vezes é pior do que não entender nada.
ALUNO: Estou com dificuldade para compreendera idéia de que estamos sempre empurrando a pedra colina acima. Talvez porque neste momento as coisas todas parecem estar a meu favor.
JOKO: É possível. Às vezes as coisas realmente vão ao nosso encontro. Podemos estar vivendo o auge de um novo e maravilhoso relacionamento. O novo emprego continua excitante. Mas há uma diferença entre as coisas nos serem favoráveis e o verdadeiro contentamento. Vamos supor que estamos num desses belos períodos em que temos um bom relacionamento ou um bom emprego, e tudo está uma maravilha. Qual é a diferença entre essa sensação boa, que se baseia em circunstâncias, e o contentamento? Como saber?
ALUNO: Tememos que possa acabar.
JOKO: E como esse medo se manifestaria?
ALUNO: Em alguma tensão corporal.
JOKO: A tensão corporal sempre estará presente se nossa sensação boa for apenas aquela felicidade comum, centrada em si mesma. O contentamento não tem tensão, porque aceita tudo que é como é. Às vezes, empurrando a pedra colina acima, teremos mesmo assim uma fase boa. Como é que o contentamento aceita essa sensação boa?
ALUNO: Simplesmente como é.
JOKO: Sim. Sem sombra de dúvida, se estivermos num bom período de nossas vidas, vamos desfrutá-lo, mas sem nos apegarmos a isso. Nossa tendência é preocuparmo-nos com seu fim e então tentaremos nos agarrar a ele.
ALUNO: É, eu percebo que, enquanto estou simplesmente vivendo e desfrutando isso, estou bem. É quando eu paro e penso “Isso está ótimo” que eu começo a me preocupar com “Quanto tempo isso ainda vai durar?”.
JOKO: Nenhum de nós escolheria ser Sísifo, mas, em certo sentido, todos somos.
ALUNO: Todos temos pedras na cabeça.
JOKO: Sim. Quando nos entretemos com a pedra que está sobre nossa cabeça, o rochedo da vida parece pesado. Mas, por outro lado, nossas vidas são apenas aquilo que estamos fazendo. O modo de ficarmos mais contentes em só viver nossa vida como ela é, em só tornar mais leve o fardo de cada dia, é ser essa vivência de constante aliviar. Essa é a forma de conhecimento que vem da experiência, e o entendimento intelectual pode decorrer dela.
ALUNO: Se eu soubesse que a pedra ia descer todas as vezes eu poderia pensar: “Bom, vamos ver com que rapidez consigo levá-la até o alto desta vez. Talvez eu possa melhorar meu tempo”. Eu transformaria isso num jogo ou criaria alguma espécie de significado em minha mente.
JOKO: Mas se estamos fazendo isso desde sempre, ou mesmo durante uma vida inteira, o que acontecerá com o significado que criarmos? Essa será uma criação puramente intelectual; mais cedo ou mais tarde, cairá por terra. Esse é o problema do “pensamento positivo” e das afirmações: não podemos mantê-las funcionando para sempre. Esses esforços nunca são o caminho da liberdade. Na realidade, nós já somos livres. Sísifo não era prisioneiro no Hades, vivendo em eterno castigo. Ele sempre estava livre porque estava fazendo o que estava fazendo.


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