Qual foi a Linhagem do Buda Sakiamuni?


Qual foi a Linhagem do Buda Sakiamuni?

Lama Padma Samten
transcrito por Eliane Steingruber





Introdução

O tema da linhagem é um dos mais discutidos entre os praticantes. Muitas vezes, a importância da linhagem é sobrevalorizada. Sob a condição de lama, esse problema não me afeta mais, minha linhagem está definida. No entanto, eu mesmo já enfrentei essa questão diversas vezes na condição de praticante e de professor. O que me pacificava era quando eu me perguntava: “Qual é a linhagem do Buda Sakiamuni ?” Nesse momento, descobrimos que ele não tem linhagem. Logo, a noção de linhagem não surgiu com o Buda, mas com o próprio movimento posterior a ele.

Se o Buda não criou as linhagens, não temos nenhum problema que provenha de sua época. As pessoas ouviram seus ensinamentos, foram propagando e as linhagens foram surgindo. Se nos perguntarmos qual foi a linhagem do Buda Sakiamuni, todos vão se considerar pertencentes da mesma linhagem do Buda. Mesmo assim, todos se consideram diferentes uns dos outros. Por que?

Quando começamos a observar como as linhagens se formaram, vemos que Buda teve 500 grandes discípulos, que atingiram a liberação e, assim, se tornaram grandes professores do Darma. Esses discípulos já davam ensinamentos na época do Buda. Eles viajavam e retornavam diversas vezes. Eles costumavam se reunir todos os anos no período de chuvas, por cerca de três meses. No ZEN (1) ainda existe essa tradição, eles chamam de Angô (2), se reúnem e praticam juntos. Eles respondem perguntas, estudam e, depois, vai cada um para o seu lugar, para o mundo ensinar o Darma. No ano seguinte eles voltam, trazendo mais pessoas consigo.

Podemos imaginar que alguns praticantes, chegando em algum lugar, começam a criar, fazer girar a Roda do Darma (3). Eles começam a resolver os problemas daquele lugar e as linhagens vão surgindo. Se eles falassem exatamente o que o Buda falou, eles não conseguiriam ajudar os seres de forma perfeita.

As palavras não têm o poder de guardar o Darma. O Darma é mais sutil do que a expressão dele e, por esse motivo encontra várias expressões. Como essas expressões surgem? Elas surgem como um remédio surge – com o fim de beneficiar uma doença específica. Existem, portanto, várias expressões, vários métodos de cura, de acordo com cada tipo de doença. Logo, podemos perceber que o Darma precisa se manifestar de forma diferente em diferentes lugares.

No meio de tudo isso existe, porém, uma unidade. O Darma se adapta ao sofrimento dos seres e produz respostas. Sendo assim, essa diversidade aponta a uma característica comum, que é o fato do Darma se adaptar às diferentes formas das enfermidades, das dificuldades. Quando vemos o Darma nos diferentes países se manifestando de formas diferentes, podemos nos alegrar, porque é a diversidade natural do Darma que tem o poder de oferecer isso.

No Tibete, a primeira manifestação foi do rei Songsen Gampo (4), que teve duas esposas – uma chinesa e outra nepalesa, ambas praticantes budistas. O Darma ainda não havia surgido no Tibete. Esse rei era considerado uma emanação de Cherenzig (5).

Mais tarde, surgiu Padmasambava (6). Em uma vida anterior Padmasambava, Khenpo Shantirakshita (7) e o rei Thrisong Deutsen (8), tinham sido irmãos. Eles tinham feito os votos de introduzir o Darma efetivamente no Tibete, na época, considerado uma região muito inóspita, uma das piores regiões para o Darma florescer. Uma região onde os seres estavam em situações enormemente degradadas, não existia outro lugar mais difícil para introduzir o Darma do que no Tibete. Esse foi o motivo pelo qual eles fizeram esse voto.

110 anos mais tarde, após ter introduzido o Darma, Padmasambava deixou o Tibete. Nessa data, Chiampo Chanti Ratshita e o rei Thrisong Deutsen já haviam morrido e o filho de Trison Deutsen estava no poder. Depois da partida de Padmasambava, o Darma entrou em declínio no Tibete.


O Surgimento da Linhagem Nyingma (9)

Quando o rei LangDarma (10) – um demônio em uma vida anterior, que havia feito o voto de eliminar o Darma no Tibete – assumiu o poder, não só proibiu o Darma, como também, matou todas as pessoas que o praticavam, ou mesmo, que fossem suspeitas de tanto. Surgiu, então uma época de silêncio. As pessoas começaram a praticar o Darma de uma forma oculta, em suas casas. Da linhagem monástica, surge, então uma linhagem de chefes de familias. O Darma passa a viver nas casas das pessoas. Ven. Chagdud Tulku Rinpoche é um herdeiro dessa tradição.
Entre os praticantes Nyingmas existem os monges e os que não os são. Chagdud Rinpoche não é monge, mas a linhagem não proíbe a castidade. Existe, porém, essa tradição das pessoas casarem, terem filhos e viverem as suas vidas centradas no Darma.


O Surgimento das Linhages Sakya (11) e Kagyu (12)

Depois desse período surgiu uma outra manifestação no Tibete. Assim surgem a linhagem Sakya, que surge a partir de Sakya Pandita(13), e a linhagem Kagyu, que surge através de um Mahasiddha (14).

Mahasiddha era como um Buda indiano chamado Tilopa (16), que vivia como um mendigo de rua e tinha um discípulo, Naropa (16), que, por sua vez, já era um grande mestre quando os dois se encontaram. Naropa tinha grande habilidade de argumentação, tinha um grandíssimo conhecimento do Darma, sabia tudo de cor, mas ele sabia que ainda não tinha atingido a realização. Por essa razão, Naropa rezou, meditou e reconheceu Tilopa em um sonho como sendo seu mestre. Ele foi, então a procura de seu mestre e o encontrou.

Naropa – um grande erudito – teve um outro grande erudito como discípulo, Marpa (17). Pode-se dizer que Marpa fundiu os dois lados, o de Tilopa e o de Naropa. O Marpa era um mestre irado, poderosíssimo, terrível. Foi essa característica irada de Marpa que o possibilitou ser mestre de Milarepa (18), que, por sua vez, era um ser terrível, também. Milarepa tinha uma mente muito poderosa. Ele tinha uma mente muito luminosa mas muito indisciplinada.

Milarepa teve um grande discípulo, Gampopa (19), que já se vestia como monje, já estava iniciando a tradição monástica. Foi Gampopa que efetivamente de origem à linhagem Kagyu. Tanto Tilopa, quanto Naropa, quanto Milarepa eram ioges. Os três viviam nas montanhas quase em isolamento.

Gampopa teve um discípulo, Karmapa (20). Agora, estamos no 17o Karmapa. Karmapa é como um Buda vivo. A linhagem Kagyo é uma linhagem de grandes meditantes. O centro da atividade e da prática é esse voto de praticar três, seis, doze, ou mesmo, o resto da vida em retiro. Eles praticam as iogas e as meditações. Eles têm o foco na meditação sentada. Eles começam ensinando a estabilisação meditativa e a introspecção. Seu foco é a sabedoria que vem da meditação.


O Surgimento da Linhagem Gelugpa (21)

O Darma tem períodos de degradação. Todas as linhagens passam por períodos de degradação. Em um dos períodos de grande confusão, surgiu a linhagem Gelugpa, quando um grande praticante, Tsongkhapa (22), não permitiu que o Darma se degradasse. Tsonkapa resolveu reinstalar a linhagem dos Kadampas (23), praticantes perfeitos, estritos, de grande moralidade. Assim, surgiu a linhagem Gelugpa.

Essa linhagem tem uma característa muito importante, que é a erudição. Os praticantes estudam e decoram todos os textos, todos os ensinamentos do Buda. Eles debatem os ensinamentos, fazem um exame público e se tornam Geshes (24). Eles são doutores no budismo, o estudam com profundidade. O Dalai Lama é um Geshe Larampa (25). Ele surgiu dentro dessa linhagem e teve esse treinamento. Ele conhece todos os ensinamentos de cor.

Após estudarem profundamente o budismo eles fazem períodos de retiros e vão tornando os ensinamentos práticos.


Qual é o Mais Importante: o Caminho ou o Resultado?

A linhagem Sakya tem uma proximidade com a linhagem Gelupga. Já a linhagem Kagyo tem uma semelhança com linhagem Nyingma. Vocês vão observar a Prece de Sete Linhas (26) nas duas linhagens. Já na linhagem Geluga, vocês vão encontrar oposições, complicações com relação à linhagem Nyingma e vice-versa.

Novamente só precisamos nos perguntar qual foi a linhagem do Buda. Esta é a única forma de não tomar partido, de dissolver qualquer questão sobre qual é a melhor linhagem. Nenhuma é melhor nem pior. Não queremos seguir uma Roda da Vida com a aparência do Darma.

Como nos filiamos a uma linhagem? Nos filiamos através do lama. Eu não pensei “eu quero ser Nyingma”. Eu fiz um contato com Chagdud Rinpoche. A minha conexão com Chagdud Rinpoche me trouxe para dentro dessa linhagem. A partir dele eu recebo os ensinamentos. Devo confessar que eu tenho uma sensibilidade para esse fato. Reconheço que as linhagens são, por um lado, o caminho pelo qual os ensinamentos chegam para nós e, por outro lado, são obstáculos. Existem obstáculos políticos no meio disso. Mesmo que não queiramos efetivamente nos envolver com os obstáculos e querer dar prosseguimento à prática, é quase impossível evitar esse processo.

Quando começamos a nos perguntar pelas linhagens, estamos nos perguntando pelo caminho e o caminho não é o resultado. É bom que nos perguntemos se estamos mais ou menos próximos da liberação. Essas são as perguntas que valem à pena. As perguntas de caminho nunca vão se resolver. De um modo geral, os praticantes terminam por receber iniciações ou ensinamentos de várias linhagens. No ZEN, eu recebi ensinamentos de três grandes mestres; no budismo tibetano, das quatro linhagens tibetanas e mais o Bön, que é a religião anterior do Tibete. A fidelidade seria um problema seríssimo para mim!

O ponto principal é a pessoa praticar e ver como os ensinamentos operam dentro dela. Se for bom, a pessoa examina e tenta ajudar os outros. Têm duas forças produzindo resultados. A força da preservação da própria tradição original, que é uma força importante. Depois tem a força de produzir benefícios na forma em que os seres que estão precisando.

Com o passar do tempo, a força da tradição original vai cessando aos poucos, vai sendo substituída pela energia que se manifesta na forma como os seres precisam. Assim surgiu o budismo japonês, tibetano, chinês, etc. A feição indiana desapareceu. Eles não se vestem como o Buda se vestia, não recitam no idioma que o Buda recitava nem vivem como o Buda vivia. Tudo vai se alterando com o tempo. Os ensinamentos vão se adaptando com o passar do tempo.

O foco do Chagdud Rinpoche é o de trazer benefício aos seres e ele está diretamente ligado à preservação da tradição. Ele tem essa habilidade, ele pode fazer isso. Ele implanta exatamente o Darma como no Tibete e isso tem um grande mérito. Ele tem as roupas, usa os instrumentos, produz os sons, o idioma, as sadanas, todos os aspectos são como o Darma no Tibete.

Vocês vão encontrar linhagens que estão em períodos melhores ou piores. Aspectos que estão melhores, outros piores. Crises de um tipo, crises de outro tipo… Esse é um aspecto da própria característica budista. Não existe uma manifestação piramidal do budismo no próprio budismo. Não existe um topo de pirâmide de onde tudo se irradia. Isso permite o Darma se sustentar, ele vive de forma anárquica. Se alguma coisa é suprimida, não é um grande problema, porque têm as outras todas que não são afetadas. Aquela parte desaparece mas as outras vão seguindo.


O Papel de Dalai Lama

Nós temos o Dalai Lama como uma grande figura nas linhagens tibetanas, mas ele não tem um caráter executivo sobre as linhagens. É só uma questão de respeito. Não precisamos fazer relatório, nem mandar dinheiro para ele. A fragilidade do Dalai Lama é comovente, ele é um monge. Não existe um aparato de estado ao seu redor. O ponto positivo é que, se o Dalai Lama morre, tudo segue. Não há uma grande complicação. O budismo é como um movimento mundial que vai seguindo sem nenhum planejamento, apenas com o objetivo de trazer benefício, é tudo. Ele vai crescendo dessa forma.

Por outro lado, exatamente por esses motivos, vão surgindo as diferentes tradições, o que também é muito belo. Isso, porém, são só nas palavras. Quando nos juntamos e fazemos uma certa prática, estamos fazendo a prática e pronto. Todos se entendem, porque todos têm o mesmo objetivo, o de trazer benefícios.

O budismo é como um hospital, tem diversos tratamentos para diversos tipos de doenças. Isto não quer dizer que este seja o único hospital no mundo, existem outros hospitais. Quando estamos em um hospital, não estamos em outro. Também, não telefonamos para o outro e pedimos um outro diagnóstico para a mesma doença. Se fizermos isso, nunca faremos o tratamento.

Ele ainda continua: “Você não precisa se filiar a coisa nenhuma, mude o seu coração! Aplique isso na sua vida. Isso basta!”

Conforme vamos seguindo, começamos a tentar encontrar um método, através do qual podemos acelerar o processo. Por esse motivo, buscamos um centro de prática, uma linhagem. Buscamos uma prática que possamos fazer para acelerar a velocidade de todo o processo.

Antes de ser ordenado como lama, eu já era um professor do Darma. O meu objetivo original e, também, o que me levou a ensinar, a transmitir o Darma, foi o de falar do solo sobre o qual as coisas vão se colocando. O centro que eu atualmente dirijo foi fundado 10 anos antes de eu ter sido ordenado. Quando o Rinpoche me ordenou ele disse que estava levando em consideração o meu trabalho anterior.

Eu vejo essa tendência clara em mim de falar além do ensinamento das linhagens. Eu sempre me refugio, dizendo que pertenço à linhagem do Buda. O cerne dos ensinamentos que eu transmito, eu ouvi do Rinpoche e de vários outros lamas. Eu os expresso através da feição dos sutras e dos primeiros ensinamentos do Buda, que são as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo. Eu me expresso dentro desse contexto.

Apesar de eu ser aluno do Chagdud Rinpoche e de pertencer ao Chagdud Gompa, o meu objetivo não é convencer as pessoas a pertencer a esse grupo ou a um outro. Fazemos a prática de Tara – essa prática pertence à linhagem do Chagdud Rinpoche – porque essa é a minha prática. No entanto não é o meu objetivo influenciar ninguém a seguir essa linhagem. Se vocês seguirem pela linhagem Gelugpa, está perfeito. O mesmo acontece se vocês seguirem pela linhagem Sakya, Kagyu ou pelo ZEN. Seja qual for a linhagem que vocês sigam, está perfeito. Vocês também podem continuar sendo cristãos, protestantes, o que acharem melhor, não vejo nenhum problema nisso. Se eu puder seguir ajudando, excelente! Caso contrário, o período em que eu pude ajudar está perfeito, também. Não gostaria de trazer como efeito colateral dos meus ensinamentos a filiação de alguém a alguma linhagem.

O nosso grande inimigo é o materialismo espiritual. Corremos o perigo de gerarmos uma nova identidade quando nos tornamos praticantes. Já usei roupa branca, roupa preta e cinza e, agora, uso roupa vermelha.

Pergunta: O que é um lama?

Lama: Um lama é um professor do Darma. É alguém que ouviu os ensinamentos, meditou sobre eles e, tendo comprovado aquilo, ensina.

Pergunta: Quais são os votos de um lama?

Lama: São os votos de um bodisattva. Um lama faz os votos de trazer incessantemente benefícios aos seres. Eu posso dizer qual é o meu refúgio pessoal, como é o centro do meu refúgio. Considero essa a melhor explicação para definir o que é um lama, explicando onde está o centro de força.

Quando tudo aperta, para onde nós vamos? O meu refúgio é Darmakaya (27), Sambogakaya (27) e Nirmanakaia (27). Como isso se dá? Vamos supor que tudo desabe. Então, eu olho em volta e digo: “Essa é uma experiência de desabar. A experiência de desabar é uma delusão. A delusão é luminosidade. Luminosidade é inseparável de vacuidade. Isso é Darmakaya e Sambogakaya juntos.” Nesse momento, posso sorrir novamente. No meio disso há um silêncio cognitivo e a construção de todas as faces. Posso, então olhar para a face que estou usando, o que está desabando é só a face. Essa face definivamente não é o gerador das faces, porque o gerador não desaba. O gerador é o aspecto Darmakaya e Sambogakaia inseparáveis. Quanto mais claro isso estiver para nós, melhor.

Todos os atropelamentos da vida são boas chances de praticar isso. Quanto maior o atropelamento, melhor, maior será a experiência de luminosidade. Sempre procuro manter isto nítido, dia e noite. Em períodos de dificuldades, tomo refúgio formal a cada quatro horas. O voto incessante de refúgio é a única prática que existe. Todas as outras práticas são vestimentas dessa prática, não importa qual a linhagem. O refúgio é tomado incessantemente e o refúgio é no Buda.


O Refúgio

No voto de Nirmanakaia existe um desdobramento interno. Nós paramos e nos lembramos do quinto passo do Nobre Caminho. Neste momento pensamos:

Neste momento, nós nos sentimos vivendo através de uma energia que brota da inseparatividade da relação com os seres. Quando pensamos nos seres, nos perguntamos se é possível trazer benefício a alguém e podemos responder com um “sim”, neste momento, há um calor que sobe. Essa energia é o Nirmanakaia. Essa energia é o Buda se manifestando dentro de nós como compaixão, como interesse, como inseparatividade em relação aos seres. Essa energia é o refúgio!

A alegria que brota dessa energia, de Nirmanakaia, é uma alegria conjunta. Ela produz um brilho, produz vida. Se nos perguntarmos se ela nos pertence, a resposta é não. Ela não vem da nossa família, não é hereditária. Percebemos, então, maravilhados que essa energia não é nossa possessão. Nós podemos manifestá-las mas ela não está em nós. Ela surge exatamente quando transbordamos além de nós, está na inseparatividade.

Todos nós podemos fazer isso, porque quando transbordamos de nós mesmos, isto é a manifestação. É a própria manifestação de liberdade de Darmakaya, luminosidade. É a própria manifestação do Buda. O Buda fez isso, Cristo fez isso. Hoje em dia têm muitos santos que fazem isso. De onde vem essa energia? Ela não vem, ela está. Ela está por todos os lados, é só uma questão de acessar ou não. Essa energia é o Buda incessantemente presente, ao alcance de todos.

Quando morremos, essa energia não morre, porque ela não pertence ao corpo. Quando sentimos dores, certamente não estamos conectados a esse nível. Estamos conectados à outras coisas, à impermanência. Dizemos: “Eu não quero morrer, eu não quero ficar velho, eu não quero ficar com cabelos brancos”. Quando pensamos desta forma, cada cabelo branco se torna uma dor.

Na verdade, são cinco refúgios. Quando as situações estão difíceis os refúgios se tornam mais fortes, mais nítidos. O menor desvio do refúgio significa dor. Só quando estamos no refúgio não existe dor. Só nesse momento tudo está funcionando.

O quarto refúgio está na compreensão de que todos os seres têm a natureza incessante, maravilhosa de Buda. Essa natureza não se limita aos seres humanos. Qualquer ser que é capaz de particularizar alguma coisa, ele particulariza porque tem essa mente infinita. É extraordinário! Ele está usando a liberdade de particularizar. Até os mosquitos têm a aparência infinita. Porque eles são finitos, por isto mesmo são infinitos. Nós não vamos encontrar o infinito na negação do finito, pelo contrário. O finito manifesta o infinito e isto é extraordinário. Isto é reconhecer a natureza de Buda presente em todos os seres.

Essa é a forma pela qual reconhecemos a natureza de Buda em todas as dimensões. Essa é a razão pela qual algumas tradições dizem que deus está em todas as manifestações. Ele não está nesse sentido comum que eventualmente podemos atribuir. Não precisamos dizer: Aquele vaso é deu, não é assim. Se compreendemos a vacuidade, sabemos que aquele vaso é uma experiência de vaso, que é uma delusão…, por isto mesmo é ilimitado.

No quinto aspecto reconhecemos todas as manifestações como ilimitadas. Nesse momento, olhamos com os olhos que reconhecem Darmata (28), ou seja, a perfeição em todas as direções, o finito manifestando o infinito em todas as dimensões, em tudo o que possa aparecer.

Qual é o refúgio que o lama toma? Ele toma refúgio enquanto manifestação incessante que vem da inseparatividade com os outros seres. Se não somos professores, podemos tomar refúgio na aparência do lama, mas é melhor tomarmos refúgio na inseparatividade com o lama. Qual é o refúgio na inseparatividade com o lama? É fazer o que o lama faz. Olhar todos os seres com esse olho. Se fazemos isto, qual é a diferença entre nós e o lama?

Quando tomamos refúgio no lama externo, fazemos prostrações para o lama como um ser que está na nossa frente. Melhor do que esse refúgio é o reconhecimento do lama absoluto, ou seja, a inseparatividade com relação ao guru. Neste momento, o guru já não é um guru de carne e osso, porque ele mesmo, em carne e osso também faz prostrações com relação ao seu guru. Qual guru? O guru absoluto. Se quisermos chamar o guru absoluto de Buda Sakiamuni ou de Padmasambava, tudo bem, mas não está completamente perfeito, porque o Buda Sakiamuni ou Padmasambava são expressões do guru absoluto, por isso eles são Padmasambava e Buda Sakiamuni.

O guru absoluto é essa dimensão de luminosidade, liberdade, Nirmanakaia é a compaixão que sustenta e energiza todos os seres. Essa compaixão está viva e intacta. Ela é independente da cultura, do nome, de tudo. Ela se manifesta viva. Ela é a energia além da energia. Ela não vem do arroz e do feijão.

Essa energia se manifesta e ela é visível. Isso significa tomar o refúgio no aspecto Nirmanakaia, no lama absoluto e é maravilhoso, além de ser uma boa prática. Se tomarmos o refúgio no lama relativo junto com o lama absoluto, também está perfeito. Isso possibilita a criação de estruturas. Porém, precisamos tomar cuidado quando criamos estruturas, ou seja, afinidades no espaço e no tempo e nos aproximamos, pois existem venenos dentro também. Isso pode ser atacado e derrubado. O Buda não criou nenhuma estrutura, ele apenas caminhou pelas estradas produzindo benefícios, só isso.

O refúgio deve ser constante. Se a compreensão pára, inevitavelmente Maharaja assinala. Primeiro ele aparece, se manifesta como um sorriso de alguém ou como coisas atrativas mas dificilmente notamos sua presença, muito menos, sua mensagem. Então, ele ressurge com uma aparência menos agradável.

Sempre que sustentarmos uma posição na Roda da Vida, inevitavelmente aquilo produz uma dor e ela não é o problema mas o alerta. Quando a dor surge, se somos praticantes, refazemos o refúgio. Quando o refazemos constantemente, o processo não necessita ser ativado, porque ele está sempre funcionando. Desta forma, tudo o que vier, não tem propriamente um sentido da necessidade de um alerta, porque tem uma incessante compreensão.

Quando refazemos o refúgio, olhamos tudo novamente e nos damos conta que nos enganamos. Reconhecemos tudo como uma construção que se desfaz. Quando ela se desfaz, ocorre a superação do sofrimento, da complicação. A liberdade ressurge. Nossa capacidade de criar confusão é tão grande quanto a de dissolvê-la. As construções são o produto da própria mente ilimitada, são um dos atributos naturais da mente que é criar as dualidades. Quando criamos essas dualidades, podemos ter clareza quanto a isto ou não, se a mantemos, isto é sustentar a lucidez da mente. Quando mantemos a lucidez, não há nenhum problema, a prática do refúgio segue perfeita.

A lucidez frente ao sofrimento é melhor do que a cessação do sofrimento. Curiosamente, quando o sofrimento se oferece junto com a lucidez, ele não tem a aparência usual de sofrimento. Ele até se torna desejável pois nos leva adiante das fixações. Quando estamos em sofrimento e brota uma compreensão correspondente, é bom que aproveitemos essa oportunidade para liberarmos sua origem pois, pode que a lucidez não retorne facilmente. No momento em que estamos no meio da confusão e a lucidez surge, a espreitamos e devemos focá-la muitas vezes e mesmo que escrevamos sobre a experiência para guardá-la da forma mais nítida e lúcida possível. Assim, tendo isto muito nítido, mais adiante poderemos utilizá-la para ajudar alguém. O problema grave da dor não é a dor em si, mas estar, sem lucidez, preso ao quadro mental que produz e sustenta a dor.


Glossário

1. Zen (jap.; sânsc. Dhyana; chin. Ch’an) – meditação; uma das principais escolas do buddhismo Mahayana.
2. Angô – retiro de três meses no Zen.
3. Roda do Darma = Darmachakra (sânsc.; páli Dhammachakka) os ensinamentos do Buddha.
4. Songtsen Gampo (tib. Srong btsan sGam po, séc. VI) – primeiro rei tibetano a se converter ao budismo, antes de Trisong Deutsen
5. Cherenzig – Avalokiteschvara; chin. Kuan-Yin, Kuan-HsiI-Yin; jap. Kannon, Kanzeon, KanjizaiI; tib. Cherenzig/ Spyan Ras Gzigs) – no buddhismo Mahayana, o Bodhisattva da grande compaixão.
6. Padmasambhava (sânsc.; tib. Pemajungne/ Pad ma ‚byung nas) – também conhecido como o Guru Rinpoche (Mestre Precioso), um dos introdutores do buddhismo no Tibet (século VIII), considerado fundador da escola Nyingma.
7. Khenpo Shantirakshita – fundador do primeiro mosteiro budista do Tibete, Samye Vihara.
8. Trisong Deutsen (tib. Khri srong lDe brtsan) – rei Darma que teve êxito em introduzir efetivamente o budismo no Tibete, convidando e apoiando a ação de Padmasambava e do Khenpo Shantirakshita, foi também um aluno deles.
9. Nyingma[-pa] (tib. Rnying Ma [pa]) – Escola Antiga; escola Vajarayana tibetana surgida a partir dos ensinamentos Dzogchen dos indianos Padmasambhava, Vimalamitra e Vairochana (século VIII).
10. Langdarma – (tib. gLang dar ma) – o rei tibetano que dedicou-se a extingir o budismo dentro de seus domínios.
11. Sakya[-pa] (tib. Sa Skya [pa]) – escola Vajarayana tibetana responsável pela transmissão dos ensinamentos Lamdre.
12. Kagyü[-pa] (tib. Bka’ Rgyud [pa]) – Escola da Transmissão Oral, escola Vajarayana tibetana fundada pelo monge GAMPOPA (1079-1153), centralizada nos ensinamentos Mahamudrao.
13. Sakya Pandita- (1182-1251) Erudito da linhagem Sakya comparado a Longchempa (Nyingma) e Tsongkapa (Gelug)
14. Mahasidha (sânsc.) – grande Adepto; mestre dos ensinamentos Vajarayana, dotado de poderes sobrenaturais ou (Siddhis).
15. Tilopa (tib. Ti lo pa) – mahasiddha indiano (989-1069) que transmitiu os ensinamentos MAHAMUDRA ao seu discípulo Naropa; sua linhagem deu origem à escola tibetana Kagyü.
16. Naropa (tib. Na ro pa) – mahasiddha indiano (1016-1100), discípulo de TILOPA e mestre do tradutor MARPA.
17. Marpa Lotsawa (tib. Mar pa lo tsa ba) – tradutor tibetano (1012-1097), discípulo NAROPA e mestre do poeta Milarepa; seus ensinamentos Mahamudra foram passaram a ser transmitidos pela escola tibetana Kagyü.
18. Milarepa (tib. Mi la ras pa) – poeta tibetano (1025-1035), recebeu os ensinamentos Mahamudra do tradutor Marpa e foi mestre do monge Gampopa, fundados da escola tibetana Kagyü.
19. Gampopa (tib. Sgam po pa) – monge tibetano (1079-1153), fundador da escola Kagyü.
20. Karmapa (tib. Ka rma pa) – líder da escola tibetana Karma Kagyü.
21. Gelug[-pa] (tib. Dge lugs [pa]) – escola Vajayana fundada pelo monge tibetano Tsongkhapa (1357-1419), centralizada nos ensinamentos do Lamrim.
22. Tsongkhapa (tib. Tsong kha pa) – monge tibetano (1357-1419), também conhecido como Je Rinpoche, fundador da escola Gelug e criador dos ensinamentos Lamrim.
23. Kadam[-pa] (tib. Bka’ gdams [pa]) – Escola da Instrução Oral, escola Vajrayana tibetana fundada pelo monge indiano Atisha (980/90-1055), precursora da escola Gelug.
24. Geshes – Doutor em budismo, principalmente na linhagem Gelug
25. Gesche Larampa – alguém realmente realizado que detém erudição inigualável
26. Prece de Sete Linhas – Prece a Padmasambava recitada antes das práticas pelas linhagens Nyingma e Kagyü
27. Trikaya (sânsc.) – no buddhismo Mahayana, os três corpos do buddha; corpo do Darma (Darmakaya), corpo do êxtase completo (Sambhogakaya) e corpo da emanação (Nirmanakaia)
28. Darmata – O espaço básico experimentado pelos budas, realidade última.