Cara monja Tenzin Namdrol, tua mensagem me conduziu a algumas reflexões apoiadas em D.T.Suzuki e Fritjof Capra.Não sei se servem para algo, mas aí vão. Se não servirem simplesmente esqueça-as …
“A contradição que se mostra tão enigmática em face do pensamento usual provém do fato de termos de utilizar a linguagem para comunicar nossas experiências mais íntimas, as quais, em sua própria natureza, transcendem a lingüística”.
Temos consciência do fato de que todas as descrições verbais da realidade são imprecisas e incompletas. A experiência direta da realidade transcende o reino do pensamento e da linguagem e, uma vez que o “ver” espiritual se baseia nessa experiência direta, tudo aquilo que se diz acerca dessa experiência só é verdadeiro em parte.
O importante é a experiência da realidade e não a descrição dessa experiência, mas quando se deseja comunicar a experiência, depara-se com as limitações da linguagem. Vários meios diferentes foram desenvolvidos para tratar desse problema.
O misticismo indiano e tibetano revestem suas afirmativas sob a forma de mitos, através do uso de metáforas e símbolos, de imagens poéticas, de comparações e alegorias. A linguagem mítica acha-se muito menos acorrentada à lógica e ao senso comum; ao contrário, apresenta-se repleta de situações mágicas e paradoxais, ricas em imagens sugestivas e jamais precisas, o que lhe permite expressar a maneira pela qual os mestres experimentam a realidade de forma muito melhor que a linguagem factual. O mito incorpora a abordagem mais próxima da verdade absoluta capaz de ser expressa em palavras.
A rica imaginação indiana e tibetana criaram um vasto número de deuses e deusas cujas encarnações e proezas constituem o tema de lendas fantásticas, reunidas em épicos de grandes dimensões. Os praticantes sabem, em sua profunda percepção, que todos esses deuses são criações da mente, imagens míticas que representam as inúmeras facetas da realidade. Por outro lado, sabem igualmente que todos esses deuses não foram simplesmente criados com o fito de tornar mais atraentes essas histórias, pois elas constituem, em verdade, veículos essenciais para a transmissão das experiências mesmas.
Os chineses e japoneses encontraram uma forma diversa de lidar com o problema da linguagem. Em vez de tornarem mais agradáveis e de mais fácil entendimento a natureza paradoxal da realidade pelo uso de símbolos e de imagens do mito, preferem, com muita freqüência, acentuá-la, lançando mão da linguagem factual. Assim, os taoistas fizeram uso constante dos paradoxos a fim de expor as inconsistências que derivam da comunicação verbal, e de exibir os limites dessa comunicação. Essa técnica foi passada para os budistas chineses e japoneses que, por sua vez, desenvolveram-na ainda mais. Sua forma extrema pode ser encontrada no Zen com seus koans, enigmas absurdos utilizados pelos mestres Zen na transmissão de seus ensinamentos.
Os mestres Zen possuem um talento especial para lidar com as inconsistências geradas pela comunicação verbal; e, com o sistema koan, desenvolveram uma modalidade única, inteiramente não-verbal, de transmissão de seus ensinamentos. Os koans são enigmas paradoxais, cuidadosamente preparados com o fito de fazer com que o praticante do Zen se aperceba, de modo mais dramático, das limitações da lógica e do raciocínio lógico, O palavreado irracional e o conteúdo paradoxal desses enigmas torna impossível sua resolução através do pensamento lógico. Os koans são elaborados precisamente para parar o processo do pensamento conceitual e, dessa forma, preparar o praticante para a experiência não-verbal da realidade.
“Apontar diretamente” constitui o sabor especial do Zen. É na verdade típico da mente chinesa e japonesa, que prefere anunciar fatos como fatos, sem muitos comentários e que é mais intuitiva do que intelectual. Os mestres Zen não eram dados à verbosidade e desprezavam toda a teorização e especulação. Desenvolveram, assim, métodos de apontar diretamente para a verdade, com ações ou palavras repentinas e espontâneas que expõem os paradoxos do pensamento conceitual e, à semelhança dos koans anteriormente referidos, têm por objetivo deter o processo de pensamento de modo a preparar o discípulo para a experiência mística. Essa técnica acha-se bem ilustrada em exemplos, que representam diálogos entre mestre e discípulo. Nestas conversações, que constituem quase toda a literatura Zen, os mestres falam o menos possível e utilizam suas palavras com a finalidade de deslocar a atenção dos discípulos dos pensamentos abstratos para a realidade concreta.
Esses diálogos trazem à luz outro aspecto característico do Zen. A iluminação, no Zen, não significa retirar-se do mundo, mas sim tomar parte ativa nas questões cotidianas. Esse ponto de vista deve muito à mentalidade chinesa, que conferia grande importância a uma vida prática e produtiva e à idéia de perpetuação da família, não podendo dessa forma aceitar o caráter monástico do Budismo indiano. Os mestres chineses sempre destacaram o fato de que o Ch’an, e depois o Zen, é nossa própria experiência cotidiana, a “mente cotidiana” de que falava Matsu. A ênfase estava no despertar em meio às questões de todos os dias. Dessa forma, os mestres Zen deixavam bem claro que, a seu ver, a vida diária não era apenas um caminho para a iluminação, mas a própria iluminação.
No Zen, o satori equivale à experiência imediata da natureza de Buda de todas as coisas. Acima de tudo, entre essas coisas estão os objetos, os fatos e os indivíduos envolvidos na vida cotidiana de modo que, embora enfatize o lado prático da vida, o Zen é, contudo, profundamente místico. Vivendo inteiramente no presente e concedendo atenção integral às coisas do cotidiano, aquele que alcançou o satori experimenta a maravilha e o mistério da vida em todos os atos. A perfeição do Zen reside precisamente em viver-se a vida diária com naturalidade e espontaneidade. “Quando tiver fome, coma; quando tiver sono, durma”.
De todas as formas uma das grandes preocupações dos mestres Zen sempre foi a de que as palavras, os koans e todas as formas de comunicações das experiências são meros dedos apontando. O praticante deve estar permanentemente alertado deste fato para que não se apegue ao dedo e possa viver sua própria experiência. Da mesma forma em todas as outras formas de comunicação, sejam deidades, mandalas, mantras, o praticante deve estar alerta de que são todas meras criações mentais e que devem apenas servir como meios, sendo abandonadas sempre que seja possível vivenciar-se as experiências diretamente.
Carinhosamente,
Ronaldo.