Desde o momento em que a teoria da relatividade postulou o tempo como a quarta dimensão do espaço, filósofos, assim como físicos teóricos, começaram a ocupar-se novamente com este fenômeno que nós chamamos de “tempo”.
Motivados pela mesma razão, japanólogos passaram a traduzir o tratado “UJI” do filósofo japonês e Mestre Zen Eihei Dogen (linhagem Soto Zen), que trata sobre a questão do tempo. No entanto, a maioria das traduções do texto japonês apareceu em língua inglesa. Com a exceção de algumas traduções particulares, ainda não existe um original em língua portuguesa deste texto, que esteja acompanhado de comentários voltados a facilitar a compreensão deste tema difícil. A presente tradução para a língua portuguesa foi feita por Gehrard Kahner e Alfredo Aveline, em maio de 1988. O leitor, formado sob a cultura greco-romana, talvez ache uma certa “falta de lógica” neste tratado de Dogen, mas o leitor mais cuidadoso se achará confrontado com a questão de se a lógica aristotélica é a única lógica válida, ou se existem também outras formas de lógica igualmente válidas, mas baseadas na intuição. |
O texto original foi escrito pelo Mestre Dogen. Visto que nem o japonês e nem o chinês são línguas do grupo indo-europeu, uma tradução literal, ou seja, símbolo por símbolo, seria incompreensível. Depois de uma longa pesquisa entre as traduções acessíveis, existentes em língua inglesa, foi escolhida a versão de N.A.Waddell, a qual foi publicada na revista “New Series” em maio de 1979. Existem também outras traduções, algumas de alto valor lingüístico, mas de interesse mais específico para pessoas com conhecimento da língua japonesa. Waddell mesmo não pode evitar o uso de símbolos chineses como recurso para fundamentar sua versão da tradução do texto japonês em língua japonesa e não, como foi costume nesta época, no estilo clássico chinês. O presente tratado não servia somente como base para uma apresentação oral aos monges, mas especialmente para um estudo mais profundo pelos monges que viviam no mosteiro de Dogen.
O título UJI consiste de dois caracteres chineses: U (japonês) ou Yu (chinês), significando “ter, existir, haver, ser, a Existência, o Ser”; e Ji (japonês) ou Shih (chinês), significando “tempo”.
A expressão UJI tem um sentido ambíguo. Usado na conversação pode significar “em algum tempo” ou “num certo tempo”, ou ainda “às vezes”. Dogen Zenji, no entanto, usa esta expressão como dois substantivos geminados, o que resulta no sentido “Ser-Tempo”, sentido este já confirmado na primeira frase do próprio texto.
No decorrer de sete séculos formou-se no Japão uma considerável literatura de comentários sobre este tratado. Para facilitar a compreensão, foram intercalados comentários entre os diversos parágrafos do texto.
O tratado começa com oito versos, atribuídos a um antigo mestre chinês, mas provavelmente foram compostos por Dogen Zenji mesmo.
“Um velho mestre falou:
O Ser-Tempo se ergue nos mais altos picos das montanhas;
O Ser-Tempo se move no mais profundo leito dos oceanos;
O Ser-Tempo tem três cabeças e oito braços;
O Ser-Tempo tem a altura de oito ou dezesseis pés;
O Ser-Tempo é um bastão de mestre (Hossu);
O Ser-Tempo é um pilar ou uma lanterna de pedra;
O Ser-Tempo é José ou João (ou tu ou eu);
O Ser-Tempo é a grande terra e os céus acima.”
O “Ser-Tempo” significa tempo; sendo tempo, é ser Existência, e ser é totalmente tempo. A forma de uma estátua dourada de Buda com dezesseis pés de altura é tempo; porquê ela é tempo, ela tem a gloriosa radiância dourada do tempo. Vocês devem aprender a ver esta gloriosa radiância nas vinte e quatro horas de seu dia. O demônio Asura {guardiães da entrada do templo}, com três cabeças e oito braços, é tempo; e por ser tempo, não pode, de modo algum, ser diferente das vinte e quatro horas de seu dia. Apesar de vocês nunca terem avaliado a extensão ou brevidade das vinte e quatro horas, sua rapidez ou lentidão, vocês mesmo assim as chamam “as vinte e quatro horas”. Como as evidências de suas idas e vindas são óbvias, vocês não chegam a duvidar delas. Mas mesmo que vocês não venham a ter dúvidas sobre elas, isto não quer dizer que vocês realmente as conheçam. Visto que as dúvidas de um ser sensorial à respeito das muitas e variadas coisas desconhecidas à ele, são naturalmente vagas e indefinidas, o curso que suas dúvidas tomam provavelmente não coincidirá com estas presentes dúvidas. E ainda, as próprias dúvidas, ao final de tudo, são nada mais do que tempo.
Nós colocamos o eu em uma estrutura Uma matriz de elementos independentes e fazemos dela o mundo inteiro. Vocês devem ver todas as várias coisas de todo o mundo como muitos vários tempos. Estas coisas não perturbam umas às outras mais do que os vários tempos perturbam uns aos outros.
Um bambú é um bambú ou um “bambú-tempo”, e não impede que um pinheiro seja “pinheiro-tempo”. Noite é noite e não impede o dia de ser dia.
Por isto, há o surgimento da mente ao mesmo tempo, e isto é o surgimento do tempo da mesma mente. Assim se dá também com a prática e etapas do caminho. Nós colocamos nosso eu em uma estrutura e o vemos. Tal é a razão fundamental do Caminho: que nosso eu é tempo.
Vocês deveriam estudar e aprender que por causa desta razão intrínseca, existem miríades de fenômenos e inumeráveis pequenas coisas que aparecem e desaparecem por todo o planeta, e cada uma das coisas e cada uma das formas existe por si mesma em toda a terra. A compreensão desta dinâmica é o início da prática budista. Quando vocês atingem o nível de “ver as coisas como elas são”, Tathata, até mesmo um pequeno objeto individual é uma forma única. As formas são entendidas e não entendidas. As coisas são discriminadas e não discriminadas.
Como o tempo neste exato momento é tudo o que sempre é, cada ser-tempo é, sem exceção, o tempo inteiro. Um ser-coisa e um ser-forma, ambos são tempos.
Existe somente o presente imediato, no qual todo o tempo e todo o ser está englobado.
Isto é verdadeiro para mim e para todas as outras coisas também.
Toda a existência, o mundo inteiro, existe no seu tempo próprio e em cada momento presente. Reflitam: neste momento existe algum ser ou algo do mundo faltando em seu tempo presente, ou não?
Naturalmente nada falta em qualquer momento presente. Dogen chama a atenção dos estudantes para que realizem a verdade de ser-tempo como sua própria experiência. Sem esta, a expressão ser-tempo seria uma frase oca com o estudante distinguindo-se de todo o mundo e de todo o tempo.
Apesar disto, uma pessoa sustenta várias opiniões enquanto não está iluminada e precisa ainda aprender a doutrina do Buda. Ouvindo as palavras “ser-tempo” (Uji) E entendendo como “às vezes”, ele pensa que em um momento o velho Buda torna-se um ser de três cabeças, ou uma criatura de oito braços e em um outro momento torna-se um Buda de dezesseis pés de altura. Ele imagina que isto é igual a cruzar um rio ou uma montanha: ainda que o rio e a montanha possam ainda existir, “eu” agora já os cruzei, e “eu” neste momento presente resido em um bonito palácio. Para ele o rio, a montanha e “eu”, são tão distantes quanto o céu da terra.
Mas não é apenas nesta direção que se encontra a face verdadeira das coisas. Na época em que a montanha foi escalada e o rio foi cruzado, eu estava lá Em tempo. O tempo tem que estar em mim. Visto que eu estou lá, não pode ser que o tempo passe.
Tempo não apenas passa – ainda que mesmo então ele não seja separado do eu – mas ao mesmo tempo está contido em cada instante presente, mesmo aqui e agora em mim, e em cada um daqueles pontos do meu ser-tempo os outros tempos estão incluídos. Ainda que meu instante presente seja sempre um ponto na passagem do tempo, este ponto único inclui os outros pontos passados e futuros.
Quando o tempo não é considerado como uma modalidade de ir-e-vir, então este tempo na montanha é o presente, agora mesmo, do ser-tempo. E ainda, quando o tempo assume a modalidade de ir e vir sobre si mesmo, o ser em mim do imediato agora do “ser-tempo” é ser-tempo. Sendo assim, não é que o tempo de subir a montanha ou de cruzar o rio engole o tempo do palácio bonito? Não é que aquele tempo segrega este tempo?
Nestes três últimos parágrafos Doguen compara a visão comum (não-iluminada) do tempo com outros aspectos do tempo. A visão comum mostra uma compreensão dualística do eu e das coisas como entidades permanentes e independentes. O tempo não apenas passa. O tempo não está separado do eu, mas ao mesmo tempo está contido em cada instante presente, aqui e agora em mim. E em cada um daqueles pontos do meu Ser-Tempo todos os outros tempos estão contidos. Ainda que meu instante presente seja sempre um ponto na passagem do tempo, este ponto inclui sempre todos os outros pontos do passado e do futuro. Realmente, Ser-Tempo apresenta os dois aspectos, vir-e-ir bem como não-vir e não-ir. Assim, o tempo não passa, pois o tempo passado (nas montanhas), o que foi meu tempo, bem como o tempo presente o qual é também meu tempo; sendo que nunca estou separado do tempo, estão ambos aquí e agora em mim.
Qualquer tempo (ser) sempre contém um princípio de auto-afirmação, no qual todos os outros são negados, e um princípio de auto-negação no qual todos os outros tempos são afirmados. O tempo na montanha engole (nega) o tempo no palácio bonito e manifesta-o (afirma-o). A auto-identidade desta contradição está sempre presente no Ser-Tempo do agora. O tempo presente engole todo o tempo do ser passado bem como o tempo do ser futuro e manifesta-os. Assim existe uma constante confluência do passado e futuro no presente.
A criatura com três cabeças e oito braços é tempo de ontem. O buddha de dezesseis pés de altura é tempo de hoje. Não menos correto, a natureza da verdade deste ontem e hoje se baseia no mesmo tempo no qual vocês vão diretamente para as montanhas e olham em torno para a miríade de picos – desta forma não existe qualquer transcorrer. Assim, mesmo aquela criatura com três cabeças e oito braços faz uma passagem como meu ser-tempo. Embora pareça que isto é lá fora longe daqui, é o tempo agora mesmo.
Por isto, pinheiros são tempo. O mesmo com os bambús. Vocês não deveriam entender que “escoar” é a única peculiaridade inerente ao tempo. Se tempo fosse somente este “fluir”, deveriam ocorrer falhas (intervalos). Vocês deixam de ter a experiência da passagem do ser-tempo e de ouvir a voz de sua verdade porque vocês aprendem somente que tempo é alguma coisa que flui. O ponto essencial é: cada ser inteiro no mundo inteiro é, à cada instante, um tempo independente, até mesmo quando formam uma série contínua. Portanto, como eles são ser-tempo, eles são meu ser-tempo.
Ser-tempo tem a característica de uma passagem de momentos em série: passa de hoje para amanhã, passa de hoje para ontem, passa de ontem para hoje, passa de hoje para hoje, passa de amanhã para amanhã. Isto é porque a passagem em momentos é uma característica do tempo. Tempo passado e tempo presente não se superpõem ou se amontoam em uma fila, porém Ching-yuan é tempo, Huang-po é tempo. Ma-tsu e Shih-t’ou são também tempos. Como o eu e o outro, ambos são tempo, prática e compreensão são tempos, entrar na lama e entrar na água.
Participar da vida cotidiana, é igualmente tempo. O mundo com todos seus tempos e seres (existência), presentes e futuros, passa em mim como o ser-tempo de meu agora imediato. Todos os seres no universo existem como tempo; tempo é o verdadeiro rosto deles. Para mim e para cada um destes inumeráveis ser-tempos pode-se dizer “meu” ser-tempo.
O movimento do tempo no seu sentido autêntico como ser-tempo ocorre nunca deixando o instante presente. Isto é uma ocorrência de “agoras”, manifestando-se “descontinuamente” como estágios independentes. Esta passagem em série, entendida do ponto de vista do ser-tempo, é assim uma continuidade descontínua destes estágios, cada um separado do “antes” e do “depois” e cada um independente de outros “ser-tempos”, mas incluindo todos eles em si-mesmo. Na passagem em série o ser-tempo se move completamente livre e irrestrito. Cada um dos mestres Zen mencionados acima, é ser-tempo, separado porém idêntico.
Apesar de que as opiniões que o homem comum e não-iluminado sustenta assim como as causas para estas opiniões sejam o que o homem comum realmente pode ver, isto não é a Lei do homem não-iluminado; isto é apenas a Lei que temporariamente o faz ver assim. Uma vez que ele considera que este tempo, este “ser” não é a Lei, ele considera que o corpo dourado do Buda de 16 pés de altura não é ele mesmo. Sua tentativas de escapar, dizendo: “Eu não sou o buda dourado de 16 pés de altura”, são elas mesmas como tal partes do ser-tempo também. Isto é o “Olha! Olha!” para aqueles que ainda não perceberam isto.
A exclamação “Olha! Olha!” é uma alusão ao antigo mestre Rinzai que costumava pressionar seus discípulos a ver a realidade diretamente em lugar de usar deduções teóricas.
O fato que cavalos e carneiros são estruturados como o são agora em todo o mundo é também devido ao estágio de cada coisa como elas são no seu próprio momento de passagem, ascendendo e descendo. Ratos são ratos e tigres são tigres. Seres sensoriais são tempo e Budas também. Este tempo realiza o mundo inteiro como sendo o asura com três cabeças e oito braços, e realiza o mundo inteiro como sendo o Buda dourado de 16 pés de altura. Assim, identificar o mundo inteiro com o mundo inteiro chama-se “penetrar exaustivamente”.
O manifestar da corporificação do Buda dourado com o corpo do grande Buda dourado, assim como o surgimento da mente, como a prática, como a iluminação e como o nirvana, isto é tempo, isto é ser. Nós nada mais fazemos do que “penetrar exaustivamente” o tempo inteiro como ser inteiro. Assim não resta mais coisa alguma. Isto é: Tempo (ser) manifesta o mundo inteiro como si mesmo e nada fica de fora nesta interpenetração exaustiva de todas as coisas.
Mesmo a forma de compreensão que aparece como erro crasso, é ser. Num plano mais abrangente, os tempos antes e depois de quando se manifesta o erro crasso, são, ambos, juntamente com ele, momentos na passagem do ser-tempo. A própria manifestação vital das coisas como pontos momentâneos de uma continuidade descontínua, é ser-tempo. Vocês não devem, por suas próprias manobras, fazer disto um “nada”, nem fazer disto forçosamente um “algo”.
Vocês somente entendem o tempo como algo que apenas escoa e vocês não o entendem como algo ainda não discriminado. Apesar de nossas compreensões serem tempo, não existe qualquer possibilidade de elas serem descritas por meio do tempo. Nunca houve alguém que, entendendo o tempo como “vir e ir”, penetrou a ponto de ver o tempo como um Ser-Tempo elemento de uma série descontínua. Que possibilidade têm então vocês de, em um tempo, romper a barreira à emancipação total? Mesmo se houvesse alguém que conhecesse isto, quem seria realmente capaz de dar uma descrição que preservasse sua experiência? E mesmo sendo alguém capaz de constantemente compreender tal descrição, ainda assim externá-la seria impossível para ele que ficaria tateando ao tentar revelar sua face original.
Suponhamos que alguém julgasse ser capaz de descrever seu satori fundamental, a ele faltaria ainda a emancipação total, na qual sua atividade inteira, ela mesma manifesta “seu ser-tempo” como o mundo e todo o tempo. Se alguém tenta descrever suas intuições, logo compreende que sua descrição nunca poderá reproduzir sua experiência original. Quem fala não sabe, quem sabe não fala porque sabe que isto não é possível.
Deixados inteiramente ao ser-tempo dos não-iluminados, ambos, satori e nirvana, seriam ser-tempo em seu mero aspecto de “ir-e-vir”. Mas nem redes nem jaulas permanecem muito tempo. Restrições criadas pelas ilusões da mente humana. Tudo é a imediata manifestação no presente, aqui e agora, do ser-tempo. Os reis e multidões de devas, realmente presentes à direita e à esquerda, são, mesmo agora, ser-tempo que apresenta meus esforços. E em todos os outros lugares do universo os inumeráveis ser-tempos na água e na terra estão agora manifestando-se pelo esforço de minha força. Seres de toda forma e espécie, sendo tempo nas regiões da escuridão e da luz, são todos a imediata manifestação do meu pleno esforço, modos passageiros de meu pleno esforço. Vocês devem aprender na prática que sem o esforço do próprio eu, agora mesmo, nenhum ser ou coisa poderia imediatamente manifestar-se ou fazer uma passagem momentânea.
Vocês não devem interpretar esta passagem como um pé de vento e um aguaceiro que se move de lugar para lugar. O mundo inteiro não é imutável e imóvel, nem sem progresso e sem regresso – o mundo inteiro está passando de momento a momento. A passagem descontínua é por exemplo como a primavera com todos seus muitos e variados sinais. Isto é passar de momento a momento. Vocês devem aprender na prática que esta passagem descontínua acontece sem qualquer causa externa. Por exemplo, a passagem do tempo da primavera acontece invariavelmente durante a primavera. A passagem não é a primavera, mas uma vez que é a passagem do tempo da primavera, a passagem atinge o Caminho agora no tempo da primavera. Tudo isto vocês devem submeter a cuidadosos e repetidos exames.
A passagem de momento a momento de todo o mundo não é um movimento de um lugar ou tempo para outro, porém o mundo não é isento de movimento. A passagem do ser-tempo (o “eu” como o mundo inteiro e o tempo inteiro) é como o “curso” do tempo da primavera passando pelo mundo. “Primavera” é o nome circunstancialmente dado aos muitos e diversos sinais (como pássaros cantando, flores brotando, etc), os quais manifestam-se neste tempo e não em outro tempo. Quando a primavera passa, nada existe que deixe de ser a primavera.