Derretendo os cubos de gelo


Derretendo os cubos de gelo

Texto de Charlotte Joko Beck, extraído do livro”Nada Especial

E útil compreender o aspecto técnico da prática, a base teórica do sentar para praticar. Mas os alunos costumam ter aversão pelas explicações técnicas e querem analogias concretas. Às vezes, o melhor meio de explicar é usando metáforas simples e até tolas. Assim, gostaria de falar da prática zen como “o caminho do cubo de gelo”.

Vamos imaginar, por um instante, que os seres humanos são grandes cubos de gelo com mais ou menos 60 cm em cada lado, dotados de cabecinhas e pés pendurados. Nossa vida humana é assim quase que o tempo todo, correndo de um lado para o outro como cubos de gelo, dando poderosas trombadas entre si. É freqüente atingirmo-nos uns aos outros com força suficiente para quebrar nossas arestas. Para nos proteger, congelamos o máximo que nos for possível e esperamos que, quando entrar-mos em colisão com os outros, eles quebrem antes de nós. Congelamo-nos porque sentimos medo. Nosso medo nos faz ficar rígidos, fixos e duros e criamos grandes confusões quando damos um encontrão em alguém. Qualquer obstáculo ou dificuldade inesperada tem a probabilidade de nos despedaçar.

Cubos de gelo doem. Cubos de gelo passam grandes ,apuros. Quando somos duros e rígidos, independentemente do quanto possamos ser cuidadosos, nossa tendência é escorregar e sair de controle. Temos arestas pontiagudas que causam danos, e ferimos não só os outros como nós mesmos também.

Uma vez que estamos congelados, não temos água para beber e com isso sentimos sede o tempo todo. Nos coquetéis, costumamos nos suavizar um pouco e bebemos, mas essas bebidas em geral não são de fato satisfatórias porque há o nosso medo latejando e mantendo-nos congelados e ressecados. Esse abrandamento é só temporário e superficial; por baixo, ainda sentimos sede e ansiamos por alguma satisfação Alguns cubos de gelo mais inteligentes buscam outras ma-neiras de sair de suas vidas miseráveis. Quando percebem suas arestas agudas e suas dificuldades no trato com os outros, tentam ser agradáveis e colaborar. Essa atitude ajuda um pouco; no entanto, um cubo de gelo é um cubo de gelo e permanece intacta a existência de arestas pontiagudas.
Uns sortudos, no entanto, acabam encontrando um cubo de gelo que realmente tenha derretido e se tornado uma poça. O que acontece se um cubo de gelo encontra uma poça? A água mais quente da poça começa a derreter o cubo de gelo. A sede é cada vez menos um problema. O cubo de gelo começa a perceber que não tem de ser duro, rígido e frio, que existe outro modo de se estar no mundo. O cubo de gelo aprende como criar seu próprio calor pelo simples processo da observação. O fogo da atenção começa a derreter sua dureza. Ao observar de maneira tromba com os outros e fere, ao ver suas próprias arestas pontiagudas, o cubo de gelo começa a se dar conta de como foi frio e duro até aí. Começa então a acontecer algo estranho. Quando os cubos de gelo começam a perceber suas próprias atividades, a observar sua “natureza legada em cubos”, tornam-se mais suaves e macios e sua compreensão aumenta, simplesmente observando o que são.

Os resultados são contagiosos. Vamos supor que dois cubos de gelo tenham se casado. Cada um está protegendo a si mesmo e tentando mudar o outro. Contudo nenhum deles consegue realmente mudar ou “consertar” o outro, uma vez que ambos são rígidos e duros com arestas pontiagudas. Porém, se um deles começa a derreter, o outro cubo de gelo – se aproximar-se o mínimo que seja – tem também de começar a derreter. E também ele começa a ter um pouco mais de sabedoria e visão. Em vez de considerar o outro cubo de gelo como um problema, ele começa a tomar consciência de sua própria natureza gelada. Ambos então aprendem que a testemunha, a percepção consciente de sua própria atividade individual, é como o fogo. O fogo não pode ser aumentado com esforços; não nos é possível tentar nos derreter. Derreter é resultado da testemunha, que, em certo sentido, não é absolutamente nada e, em outro, é tudo – “Não eu, mas o Pai em ruim-, como disse Cristo. A percepção consciente, a testemunha é o “Pai” – que é a nossa verdadeira natureza. A fim de permitirmos que a testemunha efetue seu trabalho, devemos não nos permitir aprisionar no enrijecimento e no endurecimento de nós mesmos, jogando o nosso peso para todo lado, dando trombadas nos outros e tentando modificá-los. Se fazemos essas coisas, precisamos tomar consciência para que a testemunha possa fazer seu trabalho.

Alguns cubos de gelo começam a perceber a idéia e a fazer o trabalho necessário. Podem inclusive tornar-se um pouco mais macios. A primeira coisa que observo a respeito dos alunos zen que estão praticando é que sua expressão de rosto muda. Tornam-se mais suaves. Riem de um jeito diferente. Estão um pouco “macios”. Entretanto o trabalho é difícil e alguns cubos de gelo, até mesmo os que começam a amolecer, cansam-se do processo. Dizem: “Eu quero mesmo é voltar a ser um cubo de gelo confortável. É verdade que é uma vida solitária e fria, mas, pelo menos, não sinto tanto incômodo. Não quero mais simplesmente tomar consciência de nada”. A verdade, no entanto, é que depois de a pessoa ter começado a suavizar-se ela não consegue mais endurecer de novo. Você pode dizer que essa até é uma das “leis dos cubos de gelo” (com as devidas desculpas à física). Um cubo de gelo que tenha começado a ficar macio nunca mais consegue esquecer essa maciez. É por isso que digo às pessoas: “Não entre na prática enquanto você não estiver pronto para o próximo estágio”. Não há como retroceder. Uma vez iniciado o processo da prática, tão logo tenhamos amolecido um pouco, somos um pouco mais macios e é isso que existe. Podemos inclusive pensar que conseguiremos retornar à vida que tínhamos antes e até tentar fazê-lo, mas não temos condições de violar o processo, a “lei básica dos cubos de gelo”. Depois de termos nos tomado um pouco mais macios, seremos para sempre um pouco mais macios.

Alguns cubos de gelo, por fazerem uma prática apenas esporádica, mudam apenas um pouco ao longo de uma vida toda e se tornam só um pouco mais macios. Aqueles que realmente entendem o caminho e praticam com afinco, porém, se tomam de fato poças d’água. O engraçado a respeito dessas poças é que, quando os outros cubos de gelo as atravessam, começam a derreter e a tornar-se um pouco mais macios. Mesmo que derretamos só um pouco, os outros à nossa volta amolecem também. É um processo fascinante.

Muitos alunos meus são macios. Na maioria das vezes detestam passar pelo processo. Quando vamos até o fundo dele, no entanto, o trabalho de um cubo de gelo é enfim derreter. Enquanto estamos congelados e perfeitamente sólidos pensamos que o nosso trabalho é sair por aí batendo nos outros cubos de gelo ou sendo agredidos por eles. Numa vida como essa ninguém jamais consegue derreter o outro. Como para choques, batemos e ricocheteamos, afastando os ou00%, e depois vamos adiante. É um modo muito solitário e frio de viver. Aliás, o que de fato queremos é derreter. Queremos ser poças. Talvez tudo o que se possa dizer sobre a prática é que estamos aprendendo como derreter. A certos intervalos dizemos: “Me deixe em paz. Fique longe. “Quero apenas ser um cubo de gelo”. Mas assim que começamos a derreter um pouco que seja, não conseguimos mais esquecer. Com o tempo, aquilo que é em nós o cubo de gelo fica destruído. Mas, se o cubo de gelo tiver se tornado uma poça, ela é realmente destruída? Podemos dizer que não é mais um cubo de gelo, mas que sua natureza essencial está realizada.

A comparação de uma vida humana com um cubo de gelo é sem dúvida tolice. Porém, vejo as pessoas se batendo entre si na esperança de que com tantos ataques alguma coisa seja alcançada. Nunca acontece isso. Alguém tem de parar com os ataques e começar a sentar e praticar com sua natureza gelada e cúbica. Precisamos apenas sentar, observar e sentir como é ser o que somos – vivenciando isso de verdade. Não podemos fazer muito mais pelos outros cubos de gelo. Aliás, não é nem essa nossa incumbência. A única coisa que podemos fazer é convocar cada vez mais a presença da testemunha. Quando nos tornamos essa testemunha, começamos a derreter. Se derretemos, outros cubos de gelo também o fazem, pouco a pouco. Assim que tivermos começado a derreter é perfeitamente natural resistir ao derretimento e querer retomar o estado congelado, tentando controlar e manipular todas as outras criaturas congeladas que conhecemos. Nunca me preocupo com isso porque, para qualquer pessoa que venha praticando já há algum tempo, é muito o que há para se saber. Não podemos tornar-nos rígidos de novo porque bem no fundo sabemos de uma coisa que antes desconhecíamos. Não podemos retroceder.

Na próxima vez que falarmos com aspereza, que nos queixarmos, ou tentarmos consertar o outro, ou analisá-lo, estamos brincando inutilmente de ser cubo de gelo. Esse esforço não dá em nada. O que funciona é cultivar a atenção, que sempre está ali, embora não consigamos percebê-la se estamos muito ocupados dando pancadas nos outros cubos de gelo. Mesmo que não abramos espaço em nossas vidas para a testemunha, ela sempre está presente. É quem somos. Apesar de todos tentarmos evitá-la, não o conseguimos.

Ao nos tornarmos mais macios, descobrimos que ser uma poça atrai muitos outros cubos de gelo. Às vezes até a poça preferiria ser um cubo de gelo. Quanto mais poça nos tornarmos, maior o trabalho a ser feito. A poça atua como um ímã para os cubos de gelo que querem derreter. Assim, quanto mais pingamos, mais e mais atraímos trabalho para fazer – e é isso mesmo.

ALUNO: Gostei da analogia porque quando a poça estiver limpa conterá o todo em seu reflexo. Você poderia falar mais de como nasce a testemunha?

JOKO: A testemunha sempre está presente. Mas assim como um cubo de gelo não consegue ver nada exceto dar trombadas em outros cubos de gelo, ou evitá-los, é como se essa atenção da testemunha não pudesse funcionar. É preciso que haja uma mudança no cubo de gelo para permitir-lhe tomar consciência de sua própria atividade. Enquanto nossa capacidade de conscientização estiver totalmente voltada para o que os outros cubos de _gelo estão fazendo, a testemunha não pode aparecer, mesmo que esteja lá o tempo todo. Quando começamos a ver – “Oh, o problema não é com os outros cubos de gelo, acho que preciso olhar para mim mesmo” -, a testemunha aparece automaticamente. Começamos a perceber que o problema não está lá fora, mas sempre esteve e estará aqui dentro.

ALUNA: No estado de cubo de gelo, posso alimentar a ilusão de que nada pode entrar nem sair, e assim me sinto protegida. Quando o amaciamento começa, contudo, ocorre-me que tudo se interpenetra com tudo – incluindo a poluição, a guerra, o desamparo e assim por diante. Perceber claramente essa interpenetração pode ser assustador e desestimulante. Você poderia falar sobre o medo e os outros estados emocionais que aparecem quando a pessoa está entre ser um cubo de gelo e uma poça?

JOKO: É verdade, o estágio intermediário até a maciez implica muito medo e resistência. De certo modo, ser um cubo de gelo funciona ou parece que funciona. É só que o cubo de gelo se sente solitário e sedento. Quando somos macios, somos mais vulneráveis aos outros. Se não vemos o que está acontecendo, vivenciamos mais medo. Sendo assim, esse estado macio, que é o início do derretimento, é sempre acompanhado de resistência, de medo de que o mundo se abata sobre nós. Queremos nos enrijecer de novo porque estamos começando a receber um tipo de solicitação para o qual não estamos preparados. Essas solicitações podem não ser bem-vindas. Nossa resistência tentará se solidificar. Mesmo assim, a resistência não conseguirá durar.

Às vezes as pessoas me dizem: “Já estou praticando há seis meses e tudo em minha vida ficou pior”. Antes de praticar tinham a ilusão de saber o que eram. Agora, estão confusas e isso não é agradável – e pode ser horrível. Mas é absolutamente necessário. A menos que percebamos esse fato, podemos nos sentir totalmente desencorajados. A prática, às vezes, é muitíssimo desagradável. A idéia de que tudo só vai melhorar, sem recuos, apenas elevando-se e adiantando-se, é equivocada do começo ao fim.

ALUNA: Nas primeiras vezes em que sentei para praticar, era como estar morta do pescoço para baixo. Sinto-me exatamente como o cubo de gelo que você descreveu: uma cabeça em cima, pés embaixo e um computador morto e ambulante no meio. A prática liberou dentro de mim muito do sentimento; por exemplo, já chorei muito e parece que estou derretendo e me tornando uma poça.

J0KO: Muito bom. Tenho observado o derretimento na maioria dos meus alunos. Em geral não é agradável, mas de certo modo é maravilhoso também. Sentimos que estamos nos tornando mais aquilo que somos verdadeiramente. Sempre existe resistência também. Os dois aspectos andam sempre juntos. As pessoas acham que resistência é uma coisa terrível. A própria natureza da prática é resistir. Não é uma coisa extra.

ALUNA: Ser mãe faz a gente amaciar? Minha idéia é que as mães têm de se abrir para os seus filhos e isso tenderia a fazer o cubo de gelo derreter.

JOKO: Ser mãe pode ser um treino excelente. Mas conheci mães que eram uns grandes cubos de gelo – inclusive eu, numa certa época.