Experiências e vivências
A cada segundo, estamos numa encruzilhada entre a inconsciência e a percepção consciente, entre estar ausente e estar presente, ou entre as experiências e o vivenciar. A prática diz respeito a sair do âmbito das experiências e entrar no das vivências. O que queremos dizer com isso?
Nossa tendência é nos exceder com o termo experiência e, quando dizemos “Fique em sua experiência”, estamos falando de maneira descuidada. Pode não ser proveitoso seguir esse conselho. Em geral vemos nossas vidas como uma série de experiências. Por exemplo, tenho a experiência de uma ou outra pessoa, de meu almoço ou de meu escritório. Desse ponto de vista, minha vida nada mais é que ter uma experiência após a outra. Envolvendo cada experiência pode haver um discreto halo ou véu emocional neurótico. Em geral, esse véu assume a forma de memórias, fantasias, esperanças para o futuro – as associações que fazemos com a experiência, como resultado de nossos condicionamentos anteriores. Quando fazemos zazen, nossas experiências podem ser dominadas por nossas recordações, as quais podem ser arrebatadoras.
Algo errado com isso? Os seres humanos realmente têm recordações, fantasias, esperanças, isso é natural. Quando revestimos essas experiências com tais associações, no entanto, elas se tornam um objeto: um substantivo em lugar de um verbo. Sendo assim, nossa vida se torna encontrar um objeto depois do outro: pessoas, o almoço, o escritório. As recordações e as esperanças são algo parecido: a vida se torna uma série de “issos” e “aquilos”. Costumamos ver nossa vida como encontros com coisas que existem “lá fora”. A vida torna-se dualista: sujeitos e objetos, eu e as outras coisas.
Não há nada de errado com esse processo – a menos que acreditemos nele, pois, quando de fato acreditamos que estamos o dia inteiro encontrando objetos, tornamo-nos escravizados. Por quê? Porque qualquer objeto “lá fora” terá um discreto revestimento de tonalidade emocional. E então reagimos em termos de nossas associações emocionais. No ensino zen clássico, somos escravos da cobiça, da raiva e da ignorância. Ver o mundo exclusivamente por esse prisma é escravizados. Quando nosso mundo consiste em objetos, dirigimos nossa vida segundo aquilo que esperamos de cada objeto: “Será que ele gosta de mim?”; “Isso me beneficia de alguma forma?”; “Devo temê-la?”. Nossa história e nossas recordações assumem o comando, e dividimos o mundo em coisas a serem evitadas e coisas a serem alcançadas.
O problema com esse tipo de vida é que aquilo que me beneficia agora pode ferir-me depois e vice-versa. O mundo está em constante mudança e por isso nossas associações nos desorientam. Não há a menor segurança num mundo de objetos. Estamos sempre em estado de alerta e desconfiando até mesmo daquelas pessoas que dizemos amar e de quem nos mantemos próximos. Enquanto a outra pessoa for um objeto para nós, podemos estar certos de que não haverá amor ou compaixão genuínos entre nós.
Se ter experiências é o nosso cotidiano, qual é o outro mundo, o outro braço da encruzilhada? Qual é a diferença entre experiências e vivências? Qual é o ouvir, o tocar, o saborear, o ver etc. genuínos?
Quando ocorre a vivência, naquele momento não se dá algo num tempo e num espaço. Não pode ser assim, pois, quando ocorre tempo e espaço, foi criado um objeto da experiência. Quando tocamos, olhamos e ouvimos, estamos criando o mundo do tempo e do espaço, mas a vida em si – aquela que vivemos – não está no espaço e no tempo, ela é só vivências. O mundo do tempo e do espaço acontece quando o vivenciar se reduz a uma série de experiências. No preciso momento em que se escuta algo, por exemplo, existe só o ouvir, que cria o som do avião, ou do que seja. Tâp, tâp, tâp, tâp… existe espaço entre cada batida e cada uma delas é um ouvir absoluto. Essa é a nossa vida, e assim criamos o nosso mundo. Estamos criando-o com todos os nossos sentidos e com tanta rapidez que não nos é possível acompanhar o processo. O mundo de nossas experiências está sendo criado do nada, segundo a segundo.
a referência conhecida é aquela que nos serve para olhar. Se temos um problema, seguimos trajetos familiares de solução: pensar, remoer, analisar; manter a loucura de nossas vidas em ordem porque é isso que estamos acostumados a fazer. Não tem nenhuma importância que não dê certo.
Apenas ficamos ainda mais determinados a continuar procurando embaixo do poste de luz. Não estamos interessados naquela vida que está fora do espaço e do tempo, constantemente criando o mundo do espaço e do tempo. Não estamos interessados nisso; aliás, isso nos assusta.
O que nos impele a abandonar esse melodrama, a sentar com essa confusão em praticar? No fundo, trata-se enfim do incômodo com que temos de nos haver na maneira como levamos a nossa vida. Além da vida de experiências que se têm, existe a vida vivenciada, uma vida de compaixão e contentamento. Pois a verdadeira compaixão como o verdadeiro prazer não são coisas a serem experimentadas. Nosso verdadeiro instrutor é apenas este: mudar, mudar, mudar; vivenciar, vivenciar, vivenciar. O mestre não está no espaço e no tempo – e nada mais é que espaço e tempo. Nossa vivência da vida também é criar a própria vida. “Mudança incessante faz girar a roda da vida e assim a realidade é exibida em suas muitas formas.
Um poema de W. H. Auden capta a essência de quase tudo que constitui nosso estado habitual:
Preferiríamos nos arruinar a mudar, Preferiríamos morrer em nosso pavor A subir pela cruz do momento
E deixar nossas ilusões morrerem.
Preferiríamos antes nos arruinar a mudar* – mesmo que mudar seja a essência do que nós somos. Preferiríamos morrer em nossa ansiedade, em nosso medo, em nossa solidão a subir pela cruz do momento e deixar que ali nossas ilusões morressem. E a cruz é também a encruzilhada, a escolha. Estamos aqui para fazer essa escolha.
Nota: * W. H. Auden, extraído de “The Age of Anxiety”, in Collected Poems, ed. por Edward Mendelson, Nova York: Random House, 1976, p. 407.