Shobogenzo Zuimonki-Capítulo 3


Shobogenzo Zuimonki
Capítulo 3

de Eihei Dogen Zenji
Adaptado da tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão

[1] Meu Mestre disse:

“Quem pratica Zen deve se dedicar completamente ao Caminho.

“Um velho monge disse: ‘Como podemos dar um passo além de um poste de cem metros?’

“Quando chegamos em cima de um poste alto, tendemos a nos agarrar a ele, com medo de que, se largarmos, cairemos para nossa morte. Se corajosamente jogarmos fora nossas vidas então, com a idéia de que este avanço além não nos será prejudicial, da mesma forma devemos abandonar assuntos mundanos, e também nosso modo de viver. Enquanto estivermos apegados a estes, não podemos nos iluminar, não importa quanto nos esforcemos a dominar o Caminho. Ousemos apenas deixar cair corpo e mente!”

[2] “Um dia, certa monja disse: ‘Leigas ou outras pessoas podem se esforçar em seu estudo de buddhismo. Comparadas a estas, uma mulher que raspou a cabeça e se tornou monja, apesar de poder ter algum defeito, pode com certeza ser considerada iluminada.’ Que achas disto?”

Meu Mestre disse:

“Não creio. Na verdade, leigas ou outras pessoas que praticam o buddhismo podem se iluminar como leigas. Mas nós reclusos não podemos praticar o buddhismo sem uma mente fora do mundo. O buddhismo não discrimina contra ninguém, mas alguns se recusam a aceitar o buddhismo. A forma de pensar de monges é diferente daquela dos leigos. Leigos com mentalidade de monges podem se livrar da ilusão; monges com mentalidade de leigos cometem um duplo erro. Em sua aspiração pelo Caminho, os monges devem ser muito diferentes de leigos. O Caminho não é difícil de se praticar, mas é difícil fazê-lo bem. Todos que praticam o Caminho parecem se iluminar, mas poucos o fazem bem. A questão da vida e da morte é muito importante. Todas as coisas mudam rapidamente. Nunca devemos ser ociosos. Uma vez tendo renunciado ao mundo, devemos fazê-lo de fato. Não devemos de modo algum nos satisfazer com a renúncia pró-forma.”

[3] Em uma palestra realizada à noite, meu Mestre disse:

“Ao observar o mundo, vejo que aqueles que são prósperos, ou que recuperaram suas famílias arruinadas, são ,em geral, bondosos e honestos com os demais. Mantém bem suas famílias, e seus filhos e netos também gozam de prosperidade. Por outro lado, aqueles que são maus e insolentes, se tornarão afinal infelizes, embora momentaneamente pareçam felizes e que mantêm bem suas famílias. Mesmo que sendo afortunados durante suas vidas, seus descendentes e sua posteridade não gozarão necessariamente de prosperidade.

“Fazer o bem com a expectativa de fazer outra pessoa feliz é melhor do que fazer mal, mas não é realmente bom para a pessoa, pois é feito com uma idéia egoísta. Um homem realmente bom, faz o bem aos outros sem ser notado, sem se importar com pessoas específicas, no futuro, bem como no presente. Monges Zen devem ter uma mentalidade mais exaltada ainda. Quando pensam em alguém, não devem discriminar entre conhecido e não-conhecido: devem ter uma disposição de ajudá-los igualmente, livres da idéia de obterem benefícios, mundanos ou fora do mundo; devem tentar fazer o bem sinceramente a outros sem ligar que sejam notados ou não, tentando manter mesmo estas suas mentes oculta dos outros.”

“A chave para este tipo de vida é primeiramente renunciarmos ao mundo e ao nosso ego. Então não precisamos ficar preocupados com a reputação pública. Mas, a despeito disto, é também contra a vontade de Buddha que façamos o mal como bem entendamos, sem que liguemos para a opinião pública. A melhor maneira de abandonarmos o apego a nós mesmos, é fazermos o bem a outros, e agindo não-egoistamente, sem qualquer expectativa de recompensa, ou de ganho de reputação pública.

“Em fazendo isto, devemos antes de tudo despertar para o fato de que tudo é impermanente; a vida é como um sonho vazio; o tempo voa como uma flecha; nossa vida é transiente como uma gota de orvalho e fácil de se perder; o tempo e as circunstâncias não esperam por ninguém. Portanto devemos tentar agir de acordo com o Caminho, e fazer o bem, por menor que seja, a outros, mesmo que por um curto espaço de tempo.”

[4] Numa conversa à noite, meu Mestre disse:

“Praticantes Zen devem viver na pobreza completa. Observando o mundo, noto que os ricos não podem senão sofrer de vergonha e raiva. Se temos riquezas, outros tentam nos privar delas, e nós de nossa parte tentamos não sermos privados delas. Então nós e os outros ficamos logo zangados, chegando à discussão e ao confronto, até brigarmos de fato. Neste meio tempo, ficamos coléricos, e nos desgraçamos. Quando somos pobres e sem cobiça, estamos livres deste perigo, alegres e despreocupados. Disto podemos ver a prova bem debaixo de nossos olhos. Não precisamos consultar um sutra para isto. Além disto, velhos sábios e homens esclarecidos, repreendiam aqueles que procuravam acumular riquezas; e entidades celestes, buddhas e ancestrais, também o consideram vergonhoso. É realmente ridículo quando um tolo acumula riquezas e fica muito zangado quando delas é privado. Um desejo sincero pelo Caminho, na pobreza extrema, é respeitado pelos antigos sábios e admirado pelos buddhas e ancestrais.

“É um fato evidente que o buddhismo esteja agora em declínio. Constatei mudanças graduais, entre a primeira vez que entrei no monastério de Kennin-ji1, e a seguinte, sete ou oito anos depois: todo quarto do monastério estava equipado com moveis decorados; todo monge tinha sua própria mobília, gostava de boas roupas, acumulava tesouro, adorava contar piadinhas maliciosas, negligenciava as maneiras de saudação e de culto. Daí eu posso facilmente deduzir as condições dos outros monastérios. Aos praticantes do Caminho, não lhes é permitido ter nada, além de mantos e uma tigela como tesouros. Para que um tal móvel decorado? Não devemos possuir tanto tesouro que o tenhamos que ocultar de outros. Tentam fazê-lo com medo de que um ladrão o possa surripiar! Abandonemo-lo e nos veremos livres de dificuldades. Quando estamos com medo de sermos mortos por outros, ficamos cansados fisicamente, e preocupados mentalmente. Mas quando resolvemos não matar outros, mesmo que haja perigo de sermos mortos, estamos livres de preocupações. O mesmo pode ser dito do furto. Então podemos viver tranqüilos o tempo todo.”

[5] Um dia meu Mestre disse:

“Quando o Mestre Hai-men2 era o encarregado do monastério T’ien-T’ung na China, havia um monge muito graduado chamado Tuan, entre seus discípulos. Estava familiarizado com o buddhismo, e era também iluminado. Na prática do Caminho excedia seu Mestre Hai-men.

“Uma noite ele foi ao quarto de seu Mestre, queimou incenso, e humildemente prosternou-se, dizendo: ‘Eu te rogo, Reverendo, que me permitas ser promovido a Hon-Tang Shou-Tsu?3‘. Ouvindo isto, seu Mestre verteu lágrimas, e disse: ‘Há muito tempo não ouço um pedido para promoção, assim como o que fizeste. É um crasso erro que tu, um praticante de Zen, queiras ser monge chefe, ou Shou-Tsu. Tua iluminação está além da minha, e ainda assim pedes este posto tão fervorosamente. Queres ser promovido? Se assim é, eu te darei os dois postos, monge-chefe e Chien-T’ang4. Mas teu coração é verdadeiramente desprezível. Deste pedido, depreendo logo como vão as práticas dos outros monges iludidos e constato a decadência do buddhismo.’

“Envergonhado de sua própria conduta, Tuan abdicou dela. Contudo, foi por fim nomeado Hon-Tang Shou-Tsu. Mais tarde ele deitou por escrito as palavras de seu Mestre, desgraçando-se a si mesmo, e glorificando as excelentes palavras de seu Mestre. Quando considero esta história, vejo como desgracioso que monges queiram ser promovidos a cargos, como monge-chefe, ou veteranos influentes. Um monge nada deve almejar senão a apreensão do Caminho.”

[6] Uma noite, meu Mestre ensinou:

“O Imperador Tai-Tsung5, da dinastia T’ang, vivia num palácio velho, que estava caindo aos pedaços, depois que ascendeu ao trono. O velho palácio estava tão danificado, que o ar úmido, o vento frio e o nevoeiro penetravam em seu quarto, ameaçando abalar a saúde de Sua Majestade. Quando seus ministros lhe pediram que construísse um palácio novo, o Imperador retrucou assim: ‘Agora estamos na época da colheita. Se o fizermos será um grande transtorno para os lavradores. É melhor deixarmos para o outono. Se for atacado pela umidade, será porque estou contra a vontade das divindades terrestres, e se for fustigado pelo tempo, será porque estou contra a vontade das divindades celestes. Contra estas divindades não posso manter minha saúde. Se não causar transtornos ao povo, naturalmente serei um com estas divindades, e então não ficarei doente.’ Assim dizendo, o Imperador não permitiu que um novo palácio fosse construído, e continuou a morar no antigo.

“Assim, até um leigo amava mais seu povo que a si mesmo; mais ainda devemos nós Budistas amar a todas as criaturas como se fossem nosso próprio filho, seguindo o Caminho de Buddha. Não devemos desprezar quaisquer monges assistentes meramente por que sejam nossos discípulos. Mais ainda, devemos respeitar nossos iguais no Dharma, ou monges veteranos, como se fossem o Tathagata, como está explicado no Sutra dos preceitos. Logo, nós, praticantes Budistas, em nossos corações, não devemos fazer diferença entre ‘elevado e medíocre’, ou ‘íntimo e estranho’; devemos tentar fazer o bem a outros mesmo que estes estejam despercebidos de nossas ações. Não devemos nos intrometer na vida dos outros ao fazermos as coisas, sejam sérias ou triviais.

“No tempo do Tathagata, muitas pessoas falavam mal dele, ou o odiavam. Um de seus discípulos lhe disse: ‘Por natureza és dotado de compaixão e gentileza. Então todos deveriam te respeitar naturalmente. Por que te desobedecem tanto?’

“Buddha disse: ‘Em vidas anteriores, quando tive muitos discípulos, com freqüência os admoestava severamente, ou os obrigava a se confessarem, para se emendarem. Por isso é que hoje em dia tanto me resistem.’ Assim diz o Vinaya.

“Portanto, quando conduzirmos outros monges, como veteranos, não devemos repreendê-los com palavras ferinas por seus possíveis erros. Mesmo advertindo-os com palavras doces, nos obedecerão somente se estivermos certos. Mais ainda, os praticantes Zen devem se abster de usar palavras ásperas para ralhar com outrem, mesmo em se tratando de parentes ou irmãos. Devemos ter bastante cautela com isto.”

[7] Outro dia, meu Mestre disse:

“Os monges Zen devem tentar seguir as ações dos buddhas e ancestrais.

“Primeiramente, não devem desejar possuir riquezas. Pois o Tathagata tinha uma compaixão imensuravelmente profunda. Todas as suas ações, as praticava para os outros, e não para si. Em nada prejudicava aos demais. E isto pela seguinte razão:

“O Buddha Shakyamuni era o príncipe herdeiro do reino de chakravartin 6, e portanto, houvesse ele ascendido ao trono, poderia ter reinado como bem lhe aprouvesse, dando seus tesouros aos discípulos, ou os alimentando com suas possessões. Mas deixou o trono e praticou a mendicância. Por que? Renunciou às riquezas e praticou a mendicância desta forma porque achava isto bom para todas as criaturas na era do buddhismo decadente. Desde então, todos os excelentes Mestres na China e na Índia, têm praticado a mendicância na pobreza honesta.

“Mais ainda, têm todos os ancestrais nos advertido para não acumularmos riquezas, ou tesouros. Admirando a escola Zen, filósofos Budistas, nos elogiam por nossa pobreza e também a registram em seus livros tradicionais. Eu nunca ouvi falar de pessoas ricas que praticassem o buddhismo. Todos os Budistas que se sobressaíram, sempre usaram o manto quadrado7, e sempre foram pobres, praticando a mendicância. As pessoas costumam chamar o buddhismo Zen de uma seita excelente, e consideram os praticantes Zen diferentes de quaisquer outros. Isto se deve ao fato de que, quando em templos de monges de outras seitas, os monges Zen eram pobres e davam suas vidas pelo Caminho. Este é, devemos sabê-lo, o Caminho Zen de vida! Não precisamos depender de ensinamentos dos sutras sagrados. Quanto a mim, eu já fui rico, e tinha terrenos de plantação de arroz e também muito dinheiro. Mas comparado com aquele tempo, agora que tenho apenas três mantos e uma tigela, me sinto mais confortável. Não pode haver prova mais concreta do que esta.”

[8] Novamente meu Mestre falou:

“Um velho Mestre disse: ‘A menos que sejamos parecidos com um homem, não devemos comentar seu Caminho.’ Isto quer dizer que, enquanto permanecermos inconscientes de sua virtude, não podemos julgar um tal homem por suas ações. Devemos respeitá-lo por sua virtude, e não devemos ligar para suas faltas. Portanto, é dito que aquele que é virtuoso dá mais importância à virtude do que às faltas.”

[9] Um dia meu Mestre disse:

“Devemos fazer o bem às escondidas, e seremos seguramente recompensados por isto. Devemos respeitar até mesmo uma simples imagem de Buddha, feita de barro, madeira ou lama; respeitar os sutras, apesar de parecerem insignificantes; procurar refúgio em monges, por mais pecadores que sejam, enquanto estiverem na forma de monges. Se respeitosamente venerarmos todos estes, certamente seremos felizes. Se todavia os desrespeitarmos, porque alguns monges violaram os mandamentos, ou os sutras, ou porque as imagens de Buddha sejam toscas — nunca deixaremos de sofrer a punição. Todos estes nos são dados pela vontade de Buddha para nossa felicidade. Logo nosso respeito por eles necessariamente nos trará felicidade; nosso desrespeito, a infelicidade. Devemos respeitar os Três Tesouros, mesmo que pareçam extremamente indignos. Trata-se de um grave erro que monges Zen pratiquem o mal sob o pretexto de que não necessitam fazer o bem nem acumular ações virtuosas. Eu nunca ouvi falar de quaisquer velhos mandamentos que dissessem que monges devessem amar o mal.

“Tan-hsia T’ien Jan8 tocou fogo em uma imagem de madeira do Buddha para se aquecer do frio. Pode parecer errado, mas é na verdade uma excelente ilustração. Lendo sua biografia, vemos que ele era sempre respeitoso, ao sentar-se ou a andar, como se estivesse diante de pessoas veneráveis. Mesmo sentando pouco tempo, estava sempre de pernas cruzadas na posição de lótus; e quando ficava de pé, segurava suas mãos palma contra palma. Cuidava bem do monastério, nunca deixando de elogiar os monges por sua diligência no Caminho, e dando valor às coisas conquanto pequenas. Especialmente, era excelente na conduta de sua vida cotidiana. Assim, consideram-no um exemplo excelente, a ser seguido nos monastérios Zen.

“Além deste, todos os velhos Mestres Zen e ancestrais iluminados, dizem, observavam os preceitos e levavam vidas regradas, fazendo muito com um bem pequeno. Eu nunca ouvi falar de monges iluminados que negligenciassem as boas ações.

“Portanto, para seguir o Caminho dos ancestrais, os praticantes não devem negligenciar suas boas ações. O grande Caminho praticado pelos buddhas e ancestrais nunca deixará de trazer muitos tipos de bem. Agora que compreendemos que todas as coisas são uma manifestação do buddhismo, devemos perceber que o mal é definitivamente o mal e afastado do Caminho dos buddhas e ancestrais; e que o bem é decididamente o bem, e ligado a este. Se isto é assim, como seria possível, então, que os Três Tesouros não fossem respeitados?”

[10] Noutro dia meu Mestre disse:

“Se agora quiser, segui o Caminho dos velhos Mestres iluminados e as ações dos ancestrais, livre de idéias egoístas tais como ganho e perda. Mas se, com este pretexto de renunciarmos a nossa mente egoísta, sequer praticarmos o Caminho, dizendo que nada queremos obter na questão da iluminação espiritual, desta forma continuaremos nossas antigas más ações, e mais uma vez estaremos no velho atoleiro, ligados à nossa mente egoísta. Esperando apenas tornar todos os seres felizes, devemos tentar ajudar a todas as criaturas, fazendo muitos tipos de bem de todo o coração, renunciando aos males passados, e estando livres da idéia de fazermos o bem. Então estaremos libertos da ilusão. Isto pode ser comparado a quebrar o fundo do balde laqueado 9, no velho ditado. Assim eram as ações dos buddhas e ancestrais”

[11] Certo dia, um monge perguntou a meu Mestre sobre a atitude mental na prática do Caminho, e meu Mestre assim respondeu:

“Em primeiro lugar, praticantes devem ser pobres. Se tiverem dinheiro, certamente perderão seus desejos de praticar o Caminho. A maioria dos leigos praticantes será afetada também, enquanto estiverem ainda apegados ao dinheiro, a uma boa casa e a parentes. Nenhum dos leigos que até agora estudou o Caminho, é melhor do que monges, embora hajam alguns leigos excelentes. Os monges não têm tesouros, apenas três mantos e uma tigela. Livres de quaisquer apegos a comida, roupa ou teto, monges estudam o Caminho de todo o coração. Assim, todos obtém o resultado de seus treinamentos de acordo com seus esforços. São unos com o Caminho porque são pobres.

“P’ang-kung10 era leigo, mas tão excelente quanto qualquer monge. A razão pela qual podemos achar seu nome na história do Zen é a seguinte:

“Quando começou a praticar o Caminho, ele juntou tudo que tinha e decidiu jogar no mar. Vendo isto, alguém o aconselhou a dar aos pobres ou a utilizar para o buddhismo. Ele replicou, contudo: ‘Vou abandonar tudo achando que seja prejudicial para mim. Como posso dá-lo a outros? Riquezas nos são prejudiciais pela vida afora.’ Assim dizendo, afinal afundou seu tesouro no mar.

“Daí em diante, se sustentava fazendo e vendendo cestos de vime. Leigo que era, era no entanto considerado um excelente praticante Zen, tendo abandonado seu tesouro daquela forma. Mais ainda devemos nós monges simplesmente nos livrar de nossas possessões.”

[12] Um monge disse: ‘Os monastérios Zen na China possuem propriedades comuns e os monges têm como se manter. Isto os sustenta materialmente em seus treinamentos Budistas, e os livra da dificuldade de ganharem a vida. Mas aqui no Japão o contrário ocorre. Se nós simplesmente abandonarmos nossas possessões, isto causará uma confusão maior ainda. Então é melhor termos alguém que nos forneça comida e roupa. Que achas disto?’

Meu Mestre disse:

“Isto está errado. Mais do que o povo chinês, está o povo japonês apto a doar sem esperar nada em troca e a dar coisas além de suas possibilidades. Quanto a mim, eu me iluminei da seguinte maneira: sem nada que me sustentasse, e sem esperar receber donativos, eu passei mais de dez anos. Fatal é nosso desejo de manter um pequeno número de coisas. Temos o bastante para mantermos nossas vidas transientes, mesmo que não nos preocupemos em demasia com o futuro. Todos têm, como direito de nascimento, uma porção de comida e roupa, dados pelo Céu e pela Terra, quer o busquem ou não. Mais ainda os monges, praticantes Budistas, estão agraciados com a herança deixada pelo Tathagata. Se arrojarmos fora possessões mundanas e praticarmos o Caminho, naturalmente não sentiremos privação de dinheiro ou bens. A prova disto a tens bem diante de teus olhos.”

[13] Novamente meu Mestre disse:

“Os praticantes Budistas costumam dizer: ‘Se fizermos isto ou aquilo, poderão falar mal de nós.’ Isto é um equívoco. Por mais que de nós falem mal, devemos seguir o Caminho, se este for o Caminho dos buddhas e ancestrais, ou a verdade do buddhismo; enquanto que, por mais que nos encorajem ou nos instiguem, não devemos seguir o caminho em caso contrário. A razão é a seguinte:

“Suponde que sigamos as opiniões de pessoas mundanas, íntimas ou desconhecidas, meramente baseados em seus louvores ou críticas. Quando estivermos às portas da morte, ou quando formos cair nos mundos maus como resultados de nossas ações más, não há esperanças de que estes nos salvem.

“Se seguirmos o Caminho dos buddhas e ancestrais, sem ligarmos para louvores ou críticas de pessoas no mundo, seremos de fato protegidos pelas entidades celestes. Logo, a despeito da crítica alheia, não devemos em hipótese alguma deixar de praticar o Caminho.

“Aqueles que nos criticam ou admiram nem sempre estão familiarizados com as ações dos buddhas e ancestrais, e nem sempre são esclarecidos. Como podem julgar o Caminho dos buddhas e ancestrais, a partir do ponto de vista moral do mundo? Portanto não devemos aceder à opinião do vulgo, mas simplesmente seguir o Caminho, se tivermos boas razões para tal.”

[14] Um dia, certo monge disse: ‘Eu tenho uma mãe idosa agora. Sou seu filho único e ela depende de mim. Ela muito me ama e eu lhe sou muito dedicado. Para este fim, estou ligado a assuntos e a pessoas mundanas. Assim posso lhe fornecer comida e roupa. Se eu renunciar ao mundo e ingressar em um monastério, ela não poderia sobreviver por um só dia que fosse. Mas também me é penoso conviver com situações mundanas, não ousando entrar em um tipo de vida fora do mundo. Qual verdade haverá, se é que existe alguma, de que, apesar desta dificuldade, eu deva deixar o mundo e entrar no Caminho?’

Meu Mestre respondeu assim:

“Este é um problema deveras difícil. Mas não deve ser solucionado por outros. Tu mesmo é que deves resolvê-lo. E se realmente tens a decisão de te tornares um monge, deves tomar todas as medidas cabíveis que possibilitem tua mãe viver em conforto, para que em seguida entres na Ordem. Então será bom para tua mãe e para ti também. A simples concentração mental te possibilitará realizar aquilo que quiseres. Seja um inimigo forte, uma mulher de quem se está profundamente enamorado, ou uma grande soma de dinheiro, certamente aparecerá uma forma de obter isto, se realmente o quisermos. Então, com a ajuda invisível de entidades protetoras do Céu e da Terra11, podemos alcançar nosso objetivo. Hui-neng12 vivia no monastério Ts’ao-chi. Antes disto era um lenhador na província de Shin-chou e sustentava sua mãe vendendo lenha. Um dia, ao ouvir um monge lendo na rua um trecho do Sutra do Diamante, subitamente despertou para o Caminho. Quando foi praticar no monastério de Hung-yen13, deixou sua mãe, tendo recebido uma doação de dez moedas de prata14, que utilizou para o sustento dela, assim ouvi dizer. Devido ao seu desejo sincero pelo Caminho, este dinheiro lhe foi dado, creio eu, pelos Céus. Devemos pensar sobre isto cuidadosamente. Isto é perfeitamente razoável.

“De fato, pode parecer lógico que entres no monastério para praticar somente após a morte de tua mãe. Mas, como sabes, a morte chega tanto para os velhos como para os moços. Não é uma possibilidade a ser descartada, que tua idosa mãe viva mais do que tu, ao contrário do que suporias. Então lamentarias não ter praticado, enquanto que tua mãe teria cometido o crime de não ter permitido que seu filho se tornasse monge. Nenhum dos dois seria beneficiado, ambos teriam cometido erros. Que achas disto? Se entrares no Caminho, ela pode morrer de fome. Mas isto a ajudará a obter a iluminação em sua existência vindoura, com a força de ter permitido seu filho único tornar-se monge. Apesar de ser muito difícil seccionar os laços de afeição, mesmo durante repetidos nascimentos e mortes, agora tens um corpo humano, abençoado com uma boa oportunidade de travar contato com o buddhismo. Se agora renunciares à bondade e à afeição, serás uma pessoa realmente agradecida. Como pode isto então não ser uma só coisa com a vontade de Buddha? Se o filho da pessoa, diz-se, tornar-se monge, seus ancestrais em sete gerações anteriores alcançam a iluminação. Como podemos negligenciar a fonte da alegria eterna, apegados a este corpo transiente pela vida afora? Devemos pensar nisto.”

Notas

1. Com a idade de 15 anos, Dogen Zenji visitou o Mestre Eisai do templo de Kenin-ji, a conselho do Mestre Koin.
2. Hai-men — herdeiro budista de Fu-chao (?-1203), irmão do Dharma de Wu-chi.
3. Hou-tang Shou-tsu — supervisor da parte anterior do salão de meditação.
4. Chien-tang. Um supervisor da parte posterior do salão de meditação.
5. Tai-tsung — conforme nota 3 do capítulo 2
6. Chakravarti-raja — Dito ser o rei que, tendo as 32 características da grandeza em seu corpo, reinou sobre o mundo.
7. Funzoe — conforme nota 41 do capítulo 1
8. Tan-hsia T’ien-jan (739-834). Primeiramente aprendeu o Confucionismo; mais tarde ingressou no buddhismo e se tornou herdeiro Budista de Shih-t’ou (700-790). A história de sua queima da imagem do Buddha de madeira, é a seguinte: “Certa ocasião fazia muito frio no templo de Hui-ling. Tan-hsia pegou uma imagem de Buddha e queimou-a. Um monge o repreendeu por suas ações. Então ele disse: ‘Eu o fiz para colher as relíquias mortais do Buddha.’ O monge disse: ‘Como podes fazê-lo com uma imagem de madeira do Buddha?’ Ele disse: ‘Então porque me repreendes tão duramente?'”
9. Um balde de laca preta — tão escuro que não dá para perceber nada dentro dela. Assim, é com freqüência comparada com a ilusão.
10. P’ang-kung — pessoa da dinastia T’ang, herdeiro Budista de Ma-tsu e ligado a Shih-t’ou e Tan-hsia.
11. Entidades protetoras do Céu e da Terra: do Céu — Brama-deva e Shakra devanam Indra etc; da Terra — uma deidade local e os oito reis-dragões etc.
12. Hui-neng Ta-chian (638-713) — herdeiro Budista de Tan-men (602-675). Primeiro ele ganhava a vida vendendo lenha; mais tarde despertou para o espírito Bodhi ouvindo um monge cantar na rua uma passagem do Sutra do Diamante; e foi treinar com Ta-man-Zenji, iluminando-se depois de praticar oito meses.
13. Hung-yen — Ta-man
14. Ryo — unidade monetária.

Extraído do site www.dharmanet.com.br