Trechos do Sutra da Compreensão Completa



Trechos do Sutra da Compreensão Completa

de Eihei Dogen Zenji
Tradução do Monge Marcos Beltrão.

Trata-se de uma ilusão que possamos obter o Caminho através de nós mesmos. Mas ganhar o Caminho através dos fenômenos, isto é a compreensão completa. Compreender profundamente a ilusão é ser um Buda. Estar grandemente iludido com o assunto da compreensão é, por outro lado, típico de uma pessoa comum. Acrescente-se que alguns treinam já para além da compreensão completa, mas outros parecem se iludir mais e mais.

Quando Budas se tornam Budas, não têm consciência que sejam Budas. São, contudo, Budas com compreensão completa e constantemente se encontram neste estado de Budas. Somente através do corpo e mente podemos compreender a verdadeira forma de cada fato da vida. Corpo e mente funcionam juntos como uma só coisa. Isto, contudo não funciona como o reflexo da sombra no espelho, ou a lua que se acha refletida na água. Se a pessoa considerar as coisas de forma unilateral, perderá a totalidade da realidade.

Compreender o Caminho Budista é compreender a si mesmo. Compreender a si mesmo é esquecer a si mesmo. Esquecer a si mesmo é estar identificado com todas as coisas. Chegar a este lugar é jogar fora corpo e mente de si e outros. Neste estágio, até mesmo a compreensão estará abaixo de si, mas continuamente a estará praticando, inconscientemente.

Quando se começa a buscar o Dharma, este imediatamente se afasta. Ao recebermos o Dharma através da transmissão correta, prontamente compreenderemos as coisas como elas são.

Quando num barco, se observamos apenas a margem, chegaremos a achar que é a margem que está se movendo. Mas se observarmos o barco constataremos que nada mais é que o barco que se movia, na realidade. Da mesma maneira, é impossível compreender os fatos da vida tão somente através de nossa própria mente limitada e confusa. Desta forma chegaremos a pensar que nossa vida dura para sempre. Contudo, praticando corretamente e retomando aquele lugar do qual proviemos, veremos que tudo na verdade não tem uma identidade permanente, sendo vazio.

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Quando alguém chega a atingir a compreensão completa, isto é como a lua que se reflete na água. A luz reflete na água, mas o reflexo não fica molhado, nem a água sofre qualquer tipo de obstrução com o reflexo. Além disto, a luz da lua abraça a Terra toda, mas mesmo assim pode ser contida numa pequena pocilga de água, e até mesmo em uma muito minúscula gotícula de água.

Da mesma forma que a luz não causa nenhuma perturbação a água, não acredite nem por um momento que a compreensão completa cause qualquer problema que seja a quem a possui. A compreensão completa não deve ser considerada um obstáculo para ninguém. As profundidades da gotícula de orvalho são capazes de conter em si a vastidão do céu e da lua.

Quando ainda não possuímos a totalidade de uma compreensão da vida, temos a tendência estulta de crermos que tudo sabemos, e que nada mais haja a ser alcançado. Contudo, não é o que ocorre quando o Dharma se encontra totalmente presente. Então o que nitidamente fica evidenciado são nossas insuficiências, e o grande Caminho pela frente que ainda temos que percorrer.

Constatamos assim, que o mesmo pode ser dito de tudo o mais. Dependendo do ponto de vista que adotemos, veremos as coisas de maneiras diversas. Aquela compreensão que perfeitamente corresponde com a realidade, depende de quanto a pessoa praticou e se dedicou ao Caminho. Para chegarmos a uma compreensão justa de formas variadas de ver a realidade, devemos estudar os múltiplos aspectos e virtudes das montanhas e oceanos, em vez de somente nos apegarmos a nossa percepção simplória de círculos, O mesmo vale para aquelas coisas que dentro de nós se encontram, e não somente para as externas, mesmo em uma só gotícula de água.

Peixes no mar acham que a água do mar não tem fim, enquanto que pássaros crêem que o céu é sem limites. Porém, nem peixes nem pássaros foram separados do elemento no qual tem seu ser e vida. Quando suas necessidades são grandes, suas utilizações são grandes, e quando pequenas, suas utilizações são então pequenas. Cada aspecto de suas utilizações é utilizada até o máximo de possibilidades, livremente, sem limites. Porém pássaros perecem quando separados do elemento no qual têm seu ser e vida. Devemos saber que para os peixes a água é a vida, e para os pássaros, o céu é a vida. No céu são os pássaros a vida, enquanto que na água, são os peixes. Muitas coisas podem ser inferidas dai: Existe a prática e a compreensão completa. Mas, depois de termos esclarecido a água e o céu, podemos constatar que se pássaros e peixes tentarem andar fora de seus elementos próprios não encontram nem caminho nem lugar. Quando compreendemos este ponto, atingimos a compreensão completa em nossas vidas quotidianas. Se conseguirmos realizar este Caminho, todas nossas ações são compreensão completa. Este Caminho, este lugar, não é uma questão de ser grande ou pequeno, si mesmo ou outros, passado ou presente: Apenas existe da forma que é.

É desta maneira que se praticarmos e realizarmos o Caminho Budista, podemos dominar e praticar cada Dharma; e podemos encarar e dominar qualquer prática. Existe uma forma de constatarmos a extensão daquilo que é cognoscível. Isto acontece porque nosso conhecimento coexiste simultaneamente com a compreensão do Dharma de Buda.

Depois que esta forma de compreender se torna aquilo através do qual percebemos a realidade, não podemos necessariamente compreender esta nossa realização através de nosso intelecto. Apesar da compreensão poder aparecer instantaneamente, não encontra sempre manifestação completa, por causa de nossas limitações.

Um dia o Mestre Hotetsu do Monte Magoku se abanava calmamente, quando um monge se lhe aproximou e indagou: "O vento não muda nunca e está sempre soprando por todo canto, porque te utilizas pois de um abanador?"

O Mestre disse: "Bem verdade, o vento nunca muda, mas não sabes o que sopra por todo canto quer dizer", O monge perguntou: "Neste caso, o que quer dizer?" Hotetsu nada falou, somente continuou a se abanar. Por fim o monge compreendeu e o cumprimentou.

A experiência, realização e transmissão correta e viva do Dharma Budista é levada a cabo da forma indicada acima. Dizer que não é necessário usar um leque porque a natureza do vento não muda nunca e que mesmo sem um leque haverá sempre vento, significa que somos ignorantes quanto ao nunca muda", ou quanto à natureza do vento. Da mesma forma que a natureza do vento nunca muda, o vento do Budismo faz a terra brilhar com uma luz dourada, e é causa dos rios afluírem com um leite doce e fermentado.

Escrito no meio do outono de 1233 e presenteado ao discípulo leigo Yo-Ko-Shu de Kyushu


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