União Sujeito/Objeto

 

 Conta-se que um célebre mestre zen da dinastia T’ang, Nan Ch’üan, declarava, mostrando uma flor aberta no pátio: “As pessoas comuns vêm esta flor como se estivessem imersas em um sonho”. A flor, tal como a vemos efetivamente no jardim, deve assemelhar-se a uma flor vista durante um sonho, basta-nos sair do sonho para ver a flor tal como é em si mesma realmente. Isto quer dizer, simplesmente, que o sujeito deve realizar a todo custo uma transformação pessoal absoluta, se quiser contemplar a realidade das coisas. Porém, de que gênero de transformação se trata? E qual é a realidade das coisas, vistas por nós depois dessa transformação?

O que Nan Ch’üan quer dizer está claro: uma flor, tal como a vemos em condições normais, é um objeto que se encontra diante de um sujeito que o percebe. Esse é o sentido da expressão “uma flor vista em um sonho”. A flor está aqui representada como algo diferente do ser humano que a contempla. A flor, em sua realidade é, no entanto, para Nan Ch’üan, uma flor que não-é, uma flor que não pode distinguir-se do ser humano que a contempla: do sujeito. Trata-se aqui, pois, de um estado que não é nem objetivo nem subjetivo, porém que é ao mesmo tempo subjetivo e objetivo: um estado no qual o sujeito e o objeto, o ser humano e a flor, se fundem de modo indescritível em uma unidade absoluta. Ao menos, com a finalidade de compreender um pouco o cerne do problema, teremos que colocar em seu contexto o lugar exato das palavras de Nan Ch’üan no conhecido livro de budismo zen, o “Pi Yen Lu”. Ali podemos ler o seguinte:

Um dia, o grande governador Lu Kêng encontrava-se conversando com Nan Ch’üan, quando Lu fez a seguinte observação: “Seng Chao disse um dia: ‘O céu e a terra (quer dizer, o universo inteiro) têm a mesma raiz que minha própria mente e todas as coisas são uma só comigo’, para mim, isto é muito difícil de compreender”. Então, apontando uma flor com o dedo, Nan Ch’üan declarou: As pessoas comuns vêm esta flor como se estivessem imersas no meio de um sonho”.

 No contexto pode-se compreender a intenção de Nan Ch’üan. É o mesmo que houvesse dito: “Observa esta flor aberta no pátio. Pelo fato mesmo de sua existência, está atestado que todas as coisas formam uma só coisa com o ser que nós somos na Unidade Fundamental da Realidade Última”. A verdade está aí em toda a sua pureza, plenamente aparente. Desvela-se, a cada momento através de cada coisa particular, de modo claro e sem equívocos. Porém as pessoas comuns não possuem o olho em condições de ver a realidade desnuda. Todas as coisas são observadas como através de véus.

Como as pessoas comuns vêm tudo através dos véus do seu próprio ego relativo e determinado, tudo quanto vêem é percebido como em um sonho. Porém elas mesmas estão convencidas de que a flor, tal como efetivamente a contemplam enquanto “objeto” no mundo exterior, é a realidade. Para estar em condições de afirmar que tal visão da flor está absolutamente afastada da realidade até o ponto de ser quase um sonho, temos que transformar em outro o eu empírico. Somente então se poderá dizer, com o monge Chao, que o sujeito e o objeto se confundem de um modo infinitamente sutil e delicado em um só e, finalmente, se incorporam no fundo original do Vazio. […] 

Extraído do livro: EL KÔAN ZEN de Toshihiko Izutsu

Versão p/português: Flávio Capllonch Cardoso

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