Como árvores (Mario Benedetti)
Do livro “Inventário”
Tradução de Julio Luís Gehlen
Quem teria dito
que estes poemas de outros iriam ser
meus
depois de tudo há homens que eu não fui
e mesmo assim tentei ser
se não por uma vida ao menos por um instante
ou por um piscar d’olhos
porém há homens que fui
e já não sou nem posso ser
e isto nem sempre é uma vantagem
às vezes é uma tristeza
há desejos profundos e nonatos
que prolonguei como coordenadas
há fantasias que me prometi
e infelizmente não cumpri
e outras que cumpri sem me prometer
há rostos de verdade
que iluminaram minhas fábulas
rostos que nunca mais vi mas continuaram
a me vigiar a partir
da letra em que entraram
há fantasmas de carne outros de osso
há ainda os de lume e coração
ou seja corpos em pena almas em júbilo
que vi ou toquei ou simplesmente pus
para secar
para viver
para gozar
para morrer
mas há também os que percebi de longe
eu também escutei uma pomba
que era de outros dilúvios
eu também arrebentei um paraíso
que era de outras infâncias
eu também gemi um sonho
que era de outros amores
assim pois
desde este misterioso confim da existência
os outros me ampararam como árvores
com ninhos ou sem ninhos
pouco importa
não me deram inveja mas sim frutos
esses outros estão
aqui
seus poemas
são mentiras aos montes
são verdades piedosas
estão aqui
cercando-me
julgando-me
com as pobres palavras que lhes dei
homens que olham terra e céu
e através da névoa
ou sem seus óculos
também a mim me olham
com o pobre olhar que lhes dei
são outros que estão fora do meu reino
claro
mas também
estou neles
às vezes têm o que nunca tive
às vezes amam o que quis amar
às vezes odeiam o que estou odiando
de repente me parecem distantes
tão remotos
que me dão vertigem e melancolia
e os vejo minados por uma dor sem prantos
e outras vezes porém
os pressinto tão perto
que olho por seus olhos
e toco por suas mãos
e quando odeiam me junto a seu rancor
e quando amam me achego a sua alegria
quem teria dito
que estes poemas meus iriam ser
de outros.