Guerra dos lugares
Áreas inteiras do Brasil têm sido retiradas do controle do país
Publicado em 08/09/99 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.
Cada época tem suas verdades e cria os seus mitos. A época atual é, por definição, mitológica e dificulta o encontro da verdade.
O imperativo da exportação, sugerido a todos os países como uma espécie de solução salvadora, é uma verdade ou apenas um mito? Afirma-se, com muita força, que os países que não exportam não têm presente nem futuro, sem explicar cabalmente por quê. A doutrina é tão forte que, embora isso não seja sempre reconhecido, chega-se ao paroxismo de agir como se o próprio território devesse também ser exportado.
Comecemos pela definição de território, na verdade uma redefinição. Consideremos o território como o conjunto de sistemas naturais mais os acréscimos históricos materiais impostos pelo homem. Ele seria formado pelo conjunto indissociável do substrato físico, natural ou artificial, e mais o seu uso, ou, em outras palavras, a base técnica e mais as práticas sociais, isto é, uma combinação de técnica e de política. Os acréscimos são destinados a permitir, em cada época, uma nova modernização, que é sempre seletiva. Vejam-se os exemplos das ferrovias na segunda metade do século 19 e das infovias hoje.
A partir da constituição do Estado moderno, tudo isso era considerado como base da soberania nacional e da competição entre nações. O exemplo mais eloquente é o de Colbert, ministro de Luís 14, engenheiro, geógrafo, economista, estrategista e estadista, preocupado com o traçado das estradas e canais na velha França, base, ao mesmo tempo, do crescimento do país e da sua competição com os vizinhos e com a Inglaterra. O território, assim visto, constituía um dado essencial da regulação econômica e política, já que do seu manejo dependiam os volumes e os fluxos, os custos e os preços, a distribuição e o comércio, em uma palavra, a vida das empresas e o bem-estar das populações. Era por meio desses instrumentos incorporados ao território que o país criava sua unidade e funcionava como uma região do Estado. “Regio” tanto significa região quanto reger, governar.
Com a globalização, o território fica ainda mais importante, ainda que uma propaganda insidiosa teime em declarar que as fronteiras entre Estados já não funcionam e que tudo, ou quase, se desterritorializa. Na verdade, se o mundo tornou possível, com as técnicas contemporâneas, multiplicar a produtividade, somente o faz porque os lugares, conhecidos em sua realidade material e política, distinguem-se exatamente pela diferente capacidade de oferecer às empresas uma produtividade maior ou menor. É como se o chão, por meio das técnicas e das decisões políticas que incorpora, constituísse um verdadeiro depósito de fluxos de mais-valia, transferindo valor às firmas nele sediadas. A produtividade e a competitividade deixam de ser definidas devido apenas à estrutura interna de cada corporação e passam, também, a ser um atributo dos lugares. E cada lugar entra na contabilidade das empresas com diferente valor. A guerra fiscal é, na verdade, uma guerra global entre lugares.
Por isso, as maiores empresas elegem, em cada país, os pontos de seu interesse, exigindo, para que funcionem ainda melhor, o equipamento local e regional adequado e o aperfeiçoamento de suas ligações mediante elos materiais e informacionais modernos. Isso quanto às condições técnicas. Mas é também necessária uma adaptação política, mediante a adoção de normas e aportes financeiros, fiscais, trabalhistas etc. É a partir dessas alavancas que os lugares lutam entre si para atrair novos empreendimentos, os quais, entretanto, obedecem a lógicas globais que impõem aos lugares e países uma nova medida do valor, planetária e implacável. Tal uso preferencial do território por empresas globais acaba desvalorizando não apenas as áreas que ficam de fora do processo, mas também as demais empresas, excluídas das mesmas preferências.
Como as situações se alteram rápida, repetidamente e de forma inesperada, o território, sobretudo nas áreas mais afetadas pela modernidade globalizadora, torna-se instável, nervoso e, também, ingovernável. As crises territoriais revelam, brutalmente, as crises -nem sempre imediatamente percebidas- da economia, da sociedade e da política. O caso brasileiro ilustra de forma explícita essa entrega ao privado da regulação dos usos do território, sobretudo naquelas suas fatias, pontos e articulações essenciais. A privatização extrovertida das vias e meios de transporte e de comunicação agrava o conjunto de crises.
Importam-se empresas e exportam-se lugares. Impõe-se de fora do país o que deve ser a produção, a circulação e a distribuição dentro do país, anarquizando a divisão interna do trabalho com o reforço de uma divisão internacional do trabalho que determina como e o que produzir e exportar, de modo a manter desigualmente repartidos, na escala planetária, a produção, o emprego, a mais-valia, o poder econômico e político. Escolhem-se, também, pela mesma via, os lugares que devem ser objeto de ocupação privilegiada e de valorização, isto é, de exportação.
Não é simples metáfora dizer, a partir desse raciocínio, que está havendo uma entrega acelerada do território, já que o modelo econômico consagrado recusa ao país as ferramentas da sua regulação, pondo-as em mãos outras (geralmente estrangeiras), cujos projetos e objetivos podem ser inteiramente estranhos ou adversos ao interesse nacional. É desse modo que áreas inteiras permanecem nominalmente no território, fazendo parte do mapa do país, mas são retiradas do controle soberano da nação.