A natureza com direitos

A natureza com direitos (Alberto Acosta)

“Os progressos dos conhecimentos cósmicos cobraram o preço de todas as violências e horrores que os conquistadores, que consideravam a si mesmos como civilizados, alastraram por todo o continente.”

Alexander von Humboldt

Introdução
O acúmulo material – mecanicista e interminável de bens –, assumido como progresso, não tem futuro. Por conseguinte, o conceito de desenvolvimento derivado da ideia colonial de progresso está se exaurindo. Os limites dos estilos de vida sustentados pela visão ideológica do progresso antropocêntrico são cada vez mais notáveis e preocupantes. Se quisermos que a capacidade de absorção e resiliência do planeta Terra não entre em colapso, devemos deixar de ver a natureza como uma simples condição para o crescimento econômico ou como um objeto das políticas de desenvolvimento. E certamente devemos aceitar que o homem é parte integrante da natureza, sem pretender dominá-la, menos ainda destruí-la.

Isso nos leva a aceitar que a natureza, enquanto construção social, isto é, enquanto termo conceituado por seres humanos, deve ser reinterpretada e revisada integralmente, caso não queiramos pôr em risco a vida humana no planeta. Aceitemos que a humanidade não está além da natureza e que esta tem limites biofísicos.

Pensar que a natureza deve ter direitos não se trata de renunciar à razão para refugiarmo-nos, em nossa angústia ou perplexidade diante da atual marcha suicida da humanidade, em misticismos antigos ou de novo cunho, ou ainda em irracionalismos políticos. De maneira alguma se pretende renunciar à razão.

Sem negar as contribuições da civilização atual, estamos conscientes de que a voracidade em acumular capital – em síntese, o sistema capitalista – forçou as sociedades humanas a subordinar a natureza. Tentou-se separar brutalmente o ser humano da natureza por meio de diversas ideologias, ciências e técnicas. Foi uma espécie de corte do nó górdio da vida. O capitalismo, enquanto “economia-mundo” (Immanuel Wallerstein), condenou a natureza a ser uma fonte de recursos aparentemente inesgotáveis…

O interminável domínio da natureza e seus limites ameaçados

Desde a alvorada da humanidade, o medo dos imprevisíveis elementos da natureza esteve presente na vida dos seres humanos. Pouco a pouco, a difícil luta ancestral pela sobrevivência foi se tornando um esforço desesperado por dominar a natureza. Paulatinamente, o ser humano, com suas formas de organização social antropocêntricas, pôs-se, figurativamente falando, por fora da natureza. Chegou-se a definir a natureza sem considerar a humanidade como uma de suas partes integrantes. E com isso, fez-se livre o caminho para dominá-la e manipulá-la. […]

Já faz quase 40 anos que o mundo se deparou com uma mensagem de advertência: a natureza tem limites. Em 1972, no Relatório do Clube de Roma, conhecido como “os limites do crescimento” ou Relatório Meadows, o mundo foi confrontado com essa realidade indiscutível. […] A advertência não foi desprezada: nesse meio-tempo já são muitos os economistas que assumiram uma posição contra o crescimento econômico visto como sinônimo de desenvolvimento. Atualmente, sobretudo nos países industrializados, os apelos por uma economia que propicie não apenas o crescimento estacionário, como também o “descrescimento”, se multiplicam.

Agora, quando os limites de sustentabilidade do mundo estão sendo literalmente superados, é indispensável buscar soluções ambientais vistas como uma matéria universal. Por um lado, os países empobrecidos e estruturalmente excluídos deverão buscar opções de vida digna e sustentável que não representem a reedição caricaturada do estilo de vida ocidental. Enquanto, por outro lado, os países “desenvolvidos” terão que resolver os crescentes problemas de desigualdade internacional que provocaram. Ao assumir sua responsabilidade, devem abrir espaço para uma restauração global dos danos provocados e pagar suas dívidas ecológicas com os países empobrecidos.

Mas, em especial, os países ricos terão que incorporar critérios de suficiência em suas sociedades, em vez de tentar sustentar, a custo do resto da humanidade, a lógica de eficiência entendida como acumulação material permanente. Os países ricos (evidentemente também as elites dos países empobrecidos) devem definitivamente mudar o estilo de vida que levam, pois ele põe em risco o equilíbrio ecológico mundial, e, desse ponto de vista, são também subdesenvolvidos ou “mal-desenvolvidos” (Samir Amin, José María Tortosa).

O desenvolvimento convencional, baseado na ideologia do progresso, nos conduz a um beco sem saída. Os limites da natureza, aceleradamente transbordados pelos estilos de vida antropocêntricos, particularmente exacerbados pelas demandas de acumulação de capital, são cada vez mais notáveis e insustentáveis. A crise provocada pela superação dos limites da natureza implica necessariamente questionar a institucionalidade e a organização sociopolítica global. A necessidade de repensar a sustentabilidade em função da capacidade de encargo e resiliência da natureza aflora com vigor. Em outras palavras, a tarefa reside no conhecimento das verdadeiras dimensões da sustentabilidade, que não podem subordinar-se a demandas antropocêntricas. Esse trabalho exige uma nova ética para organizar a própria vida.

A tarefa parece simples, mas é extremamente complexa. Em lugar de manter a distinção entre a natureza e o ser humano, é preciso propiciar seu reencontro. […] Para atingir essa transformação civilizatória, uma das metas iniciais reside na desmercantilização da natureza. (Vale lembrar que Luigi Ferrajoli, reconhecido filósofo do direito, desenvolve a teoria da desmercantilização dos direitos humanos como ponto de partida para assegurar, por exemplo, o acesso gratuito à educação, à saúde, à habitação, entre outras demandas básicas do ser humano.) Os objetivos econômicos devem estar subordinados às leis de funcionamento dos sistemas naturais, sem perder de vista o respeito à dignidade humana, sempre procurando assegurar a qualidade de vida das pessoas. […]

Escrever essa mudança histórica é o maior desafio da humanidade se não se quer pôr em risco a própria existência do ser humano sobre a Terra.

Os direitos da natureza ou o direito à existência

As reflexões anteriores demarcam na história os passos vanguardistas dados no Equador, durante a Assembleia Constituinte de Montecristi, no ano de 2008, ao aceitar que a natureza é sim um sujeito com direitos.

Ao reconhecer os direitos da natureza e somar a isso o direito de ser restaurada quando tiver sido destruída, estabeleceu-se, na Constituição redigida pela dita Assembleia, um marco mundial. Igualmente transcendente foi a incorporação do termo indígena Pacha Mama, como sinônimo de natureza, enquanto reconhecimento de plurinacionalidade e interculturalidade. […]

Ao longo da história do direito, cada ampliação dos direitos foi anteriormente impensável. A libertação dos escravos ou a extensão dos direitos aos afro-americanos, às mulheres e às crianças foram uma vez rechaçadas por serem consideradas um absurdo. Tem-se desejado que, ao longo da história, se reconheça “o direito de ter direitos” e isso se alcança sempre com um esforço político para mudar aquelas visões, costumes e leis que negavam esses direitos. É curioso que muitas pessoas que se opuseram à ampliação desses direitos não tiveram embaraço algum em estimular a concessão de direitos quase humanos às pessoas jurídicas… uma das maiores aberrações do direito.

Libertar a natureza desta condição de sujeito sem direitos ou de simples objeto de propriedade exigiu e exige um trabalho político que a reconheça, portanto, como sujeito de direitos. Um esforço que deve englobar todos os seres vivos (e a própria Terra), independentemente de terem ou não utilidade para os seres humanos. Esse aspecto é fundamental se aceitarmos que todos os seres vivos têm o mesmo valor ontológico, o que não implica que todos sejam idênticos.

Dotar a natureza de direitos significa, então, encorajar politicamente sua passagem de objeto a sujeito. Conscientes de que não será fácil cristalizar essas transformações em um país concreto, sabemos que sua aprovação será ainda muito mais complexa em nível mundial. Sobretudo na medida em que estas transformações afetam os privilégios dos círculos de poder nacionais e transnacionais, que farão o impossível para tratar de deter esse processo de libertação. Ademais, a partir da vigência dos direitos da natureza é indispensável vislumbrar uma civilização pós-capitalista que exija uma luta de libertação, a qual, enquanto esforço político, começa por reconhecer que o sistema capitalista, um “sistema parasitário” (Zygmunt Bauman), destrói suas próprias condições biofísicas de existência.

Os direitos da natureza diante dos direitos humanos

A vigência dos direitos da natureza exige mudanças profundas. É preciso sair do atual antropocentrismo em direção ao biocentrismo. […] Nesse sentido, essa definição da natureza como sujeito de direitos, pioneira em nível mundial, é uma oportunidade diante da atual crise civilizatória. E como tal ela tem sido assumida em amplos segmentos da comunidade internacional, conscientes de que é impossível continuar com um modelo de sociedade depredadora, baseado na luta dos homens contra a natureza.

Ao reconhecer a natureza como sujeito de direitos, na busca desse indispensável equilíbrio entre a natureza e as necessidades dos seres humanos, supera-se a versão constitucional tradicional dos direitos a um ambiente saudável, presente desde tempos atrás no constitucionalismo latino-americano.

Em sentido estrito, portanto, urge distinguir que os direitos a um ambiente saudável são parte dos direitos humanos, e que não implicam necessariamente em direitos da natureza. A finalidade dessa distinção, como reflete Eduardo Gudynas, é indicar que as formulações clássicas dos direitos humanos de terceira geração, ou seja, dos direitos a um ambiente saudável ou à qualidade de vida, são em essência antropocêntricas, e que devem ser entendidos separadamente dos direitos da natureza. […] Não obstante, é evidente que não se poderá assegurar os direitos a um ambiente saudável sem respeitar os direitos da natureza. Nesse ponto, vem à tona novamente a necessidade de estabelecer um vínculo correto e estratégico entre direitos humanos e direitos da natureza.

Nos direitos humanos, o centro estabelece-se sobre a pessoa. Trata-se de uma visão antropocêntrica. Nos direitos políticos, quer dizer de primeira geração, o Estado reconhece esses direitos à cidadania como parte de uma visão individualista e individualizadora da cidadania. Nos direitos econômicos, sociais e culturais (DESC), conhecidos como direitos de terceira geração, incluem-se os direitos ambientais, concretamente o direito de que os seres humanos desfrutem de condições sociais igualitárias e de um meio ambiente saudável e não contaminado. Procura-se evitar a pobreza e a deterioração ambiental, causadora de impactos negativos na vida das pessoas. […]

Por outro lado, nos direitos da natureza, o centro se estabelece sobre a natureza, que inclui certamente o ser humano. A natureza vale por si mesma, independentemente da utilidade e dos usos que lhe concede o homem. É isso que representa uma visão biocêntrica. Esses direitos não defendem uma natureza intocada, que nos leve, por exemplo, a deixar de praticar a agricultura, a pesca e a pecuária. Esses direitos defendem a manutenção dos sistemas de vida, dos conjuntos de vida. Sua atenção se fixa nos ecossistemas, nas coletividades, não nos indivíduos. […]

Os direitos da natureza são considerados direitos ecológicos no intuito de diferenciá-los dos direitos ambientais, oriundos dos direitos humanos. Esses direitos ecológicos são direitos orientados a proteger ciclos vitais e os diversos processos evolutivos, não apenas as espécies ameaçadas ou as áreas naturais.

Nesse campo, a justiça ecológica pretende assegurar a persistência e sobrevivência das espécies e de seus ecossistemas, como conjuntos, como redes de vida. Não é de sua incumbência a indenização aos humanos pelo dano ambiental. Expressa-se na restauração dos ecossistemas afetados. Na realidade devem-se aplicar simultaneamente as duas justiças: a ambiental para as pessoas e a ecológica para a natureza; são justiças vinculadas estrutural e estrategicamente.

Afinal de contas, seria necessário distinguir dois planos. Um primeiro plano descritivo e crítico, no qual os direitos humanos, e em particular o direito a um meio ambiente saudável em sua versão tradicional, são identificáveis como antropocêntricos. Um segundo plano normativo e reconstrutivo, no qual se produz uma reconceitualização profunda e transversal dos direitos humanos em termos ecológicos, pois se a destruição da natureza nega as condições de existência da espécie humana, então atenta contra todos os direitos humanos. Inversamente, se a natureza inclui os seres humanos, seus direitos não podem ser vistos isoladamente do ser humano, embora também não devam ser reduzidos a isso. Por conseguinte, direitos como o direito ao trabalho, à moradia, à saúde, inclusive ao acesso à propriedade, devem ser compreendidos também em termos ambientais. Nesse plano descritivo, os direitos humanos e os direitos da natureza, analiticamente diferenciáveis, se complementam e se transformam em uma espécie de direito da vida e à vida. […]

Os direitos da natureza, uma tarefa local, nacional, regional e global

Se em um pequeno país andino como o Equador deu-se um passo histórico de transcendência planetária, é motivador ver que em outras latitudes começa-se a debater sobre o tema. A vigência estrita dos direitos da natureza exige a existência de marcos jurídicos internacionais adequados, tendo em consideração que os problemas ambientais são temas que afetam a humanidade em seu conjunto. […] Portanto, se estamos diante de uma questão global, é hora de impulsionar a Declaração Universal dos Direitos da Natureza. Igualmente urgente é o estabelecimento de um tribunal internacional para sancionar os crimes ambientais, como se propôs na Cúpula da Terra de Tikipaya, na Bolívia, no ano de 2010. Tarefas complexas, mas prometedoras, sem dúvida alguma. […]

Em síntese, a tarefa pendente é complexa. É preciso superar tanto visões míopes como resistências conservadoras e posições prepotentes que escondem e protegem uma série de privilégios, ao mesmo tempo em que se constroem diversas e plurais propostas estratégicas de ação.

Fragmentos de uma conferência realizada no contexto da série de atos sobre o desenvolvimento sustentável na América Latina que, com o título “A Different Kind of Development? Perspectives from Latin America”, se celebrou no Institute for Advanced Sustainability Studies (IASS) de Potsdam em outubro de 2011. A versão completa do texto poderá ser lida numa publicação do IASS a ser lançada em fins de 2012.

Alberto Acosta, economista equatoriano, graduado na Alemanha; professor e pesquisador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO–Equador); ex-ministro de Energia e Minas; presidente da Assembleia Constituinte do Equador de 2007–2008; consultor internacional; assessor de movimentos sociais. É autor de inúmeros artigos e livros.

Tradução do espanhol: Douglas Pompeu e Anna-Katharina Elstermann
Copyright: Alberto Acosta
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Fonte:http://www.goethe.de/wis/bib/prj/hmb/the/157/pt9543289.htm

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