O cônego Filipe (Álvares de Azevedo)
O cônego Filipe! Ó nome eterno!
Cinzas ilustres que da terra escura
Fazeis rir nos ciprestes as corujas!
Por que tão pobre lira o céu doou-me
Que não consinta meu inglório gênio
Em vasto e heróico poema decantar-te?
Voltemos ao assunto. A minha musa
Como um falado Imperador Romano
Distrai-se às vezes apanhando moscas.
Por estradas mais longas ando sempre.
Com o cônego ilustre me pareço,
Quando ele já sentia vir o sono,
Para poupar caminho até a vela,
Sobre a vela atirava a carapuça.
Então no escuro, em camisola branca
Ia apalpando procurar na sala—
Para o queijo flamengo da careca
Dos defluxos guardar—o negro saco.
À ordem, Musa! Canta agora como
O poeta Ali-Moon no harém entrando
Como um poeta que enamora a lua,
Ou que beija uma estátua de alabastro,
Suando de calor de sol e amores
Cantava no alaúde enamorado.
E como ele saiu-se do namoro.
Assunto bem moral, digno de prêmio,
E interessante como um catecismo;
Que tem ares até de ladainha!
Quem não sonhou a terra do Levante?
As noites do Oriente, o mar, as brisas,
Toda aquela sua natureza
Que amorosa suspira e encanta os olhos?
Princípio no harém. Não é tão novo.
Mas esta vida é sempre deleitosa.
As almas d’homem ao harém se voltam—
Ser um dia sultão quem não deseja?
Quem não quisera das sombrias folhas.
Nas horas do calor, junto do lago
As odaliscas espreitar no banho
E mais bela a sultana entre as formosas?
Mas ah! o plágio nem perdão merece!
Digam—pega ladrão!—Confesso o crime,
Não é Ovídio só que imito e sonho
Quando pinta Acteon fitando os olhos
Nas formas nuas de Diana virgem!
Não! embora eu aqui não fale em ninfas,
Essa ideia é do cônego Filipe!