O frasco (Charles Pierre Baudelaire)
Tradução de Fontoura Xavier
Há perfumes que em toda a substância material
Se infiltram; até mesmo entranham no cristal.
Às vezes abre-se um cofre hermeticamente
Fechado há anos e um perfume do Oriente,
Evola-se de dentro; outras, em um armário
Esquecido do tempo, antigo relicário,
Acha-se um frasco e nele um olor que revive
A lembrança de alguém que há muito já não vive.
Vaga recordação, simples célula válida
Que ali dormia, toma corpo de crisálida,
Ergue-se e agita em vôo alacre de besouro
Asas tênues, azuis e de lâminas de ouro.
Recordamos então numa penumbra incerta
O prazer ou a dor que o perfume desperta;
Nossa alma agora num ambiente de miasmas
Evoca à vida todo um mundo de fantasmas;
E não raro ressurge entre eles do passado
Há muito embalsamado, Lázaro enterrado,
O cadáver querido, o carinhoso vulto
Do nosso amor extinto, esquecido e sepulto.
Assim, quando eu também for simples relicário
Na memória dos meus, ao fundo de um armário
Macabro de parede, onde talvez com asco
Esqueçam-me partido e inútil como o frasco,
Testemunha da tua força e virulência,
Serei eu teu escrínio, eterna pestilência,
Veneno de mim próprio apodrecido e êsmo,
Morte da minha vida e vida de mim mesmo.