Salário (Mario Benedetti)
Do livro “Poemas do escritório”
Tradução de Julio Luís Gehlen
Aquela esperança que cabia em um dedal,
aquele degrau da calçada junto à lama,
aquele ir e vir do sono,
aquele horóscopo de uma longuíssima viagem
e a longuíssima viagem com adeuses e gente
e países de neve e corações
onde cada quilômetro é um céu diferente,
aquela confiança de não sei quando,
aquela jura até não sei onde,
aquela cruzada até não sei o quê,
esse aquele que a gente podia ter sido
com outro ritmo e uma loteria,
enfim, para dizê-lo de uma vez por todas,
aquela esperança que cabia em um dedal
evidentemente não cabe neste envelope
com papéis sujos de tantas mãos sujas
que me pagam, é lógico, a cada vinte e nove
por ter os livros rubricados em dia e
deixar que a vida transcorra,
pingando simplesmente
como um azeite velho.