A estetização da crise

A estetização da crise

(Robert Kurz)


Publicado em 23/11/97 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.


No capitalismo, os objetos do desejo transformam-se em peças de culto




O sistema da moderna economia de mercado tende a dissolver todo conteúdo em forma. A forma do valor econômico, embora nunca possa realmente prescindir de conteúdo, empenha-se, segundo sua lógica interna, pela autonomia. O dinheiro como fim em si mesmo torna o conteúdo indiferente. ”Para ter sucesso, você precisa acreditar em algo _não importa no quê”, resumiu um guru da administração, numa fórmula simples e lapidar. Os produtores de guloseimas acreditam na necessidade histórica das guloseimas e nelas depositam, diariamente, seu sagrado juramento de sucesso. E o mesmo ocorre, de modo igualmente crédulo, com os produtores de fechos de sutiã, de derivativos financeiros ou de bombas nucleares. Quem muda de ramo muda também de crença e de paróquia. E, a cada novo produto, surge uma nova religião do marketing.


A mesma idolatria se verifica no lado do consumo. Se os atores do mercado total não têm mais uma identidade e não se tomam mais como pessoas, mesmo os mais pobres entre eles ainda são, de alguma forma, consumidores de mercadorias. Os próprios excluídos da produção regular podem sintetizar sua filiação ao mundo das mercadorias na fórmula ”consumo, logo sou”. A força impositiva dessa formuleta mágica permanece válida mesmo quando se trata de um horizonte de desejos ilusórios, que, pelo escasso poder de compra, é em grande parte inacessível. Não importa se o consumo é real ou só se dá na imaginação: os objetos do desejo transformam-se em peças de culto.


Quanto mais irrelevantes se tornam os indivíduos, mais relevantes passam a ser os objetos mais indiferentes das necessidades diárias. Naturalmente, a aura artificial e pseudo-religiosa dos objetos da produção e do consumo é apenas simulada. Uma prova disso é o fato de serem substituíveis à vontade. Como a indiferença da forma capitalista a todo conteúdo substancial torna-se insuportável, o elo perdido da qualidade sensível dos objetos tem de ser recriado numa alucinação. Esse processo assume o caráter de um jogo _não um jogo inteligente, mas pueril. Todos sabem que, para a máscara social do capital, de que eles próprios dão testemunho, o caráter material específico de alimentos, roupas ou edifícios, além das outras coisas, é absolutamente irrelevante, porque eles só podem manifestar-se como um único e mesmo objeto do dinheiro, que muda de figura como Proteu. Como não se permite que tal irrelevância do conteúdo sensível seja discutida, o substrato alucinatório das mercadorias tem de remeter-se a algo diverso: a qualidade sensível perdida é simulada no plano da forma estética. O totalitarismo da forma é conservado; a indiferença da forma social não é superada, mas encoberta esteticamente.


Porém a estética da mercadoria não deve ser confundida com a estética das obras de arte. Um dos objetivos da arte tradicional é superar a contradição entre forma e conteúdo _e isso pela insistente tentativa de emprestar ”à própria coisa” uma expressão sensível imediata. Por isso, um dos atributos da obra de arte é permanecer, de certa maneira, um original inconfundível, mesmo quando ”reprodutível tecnicamente” (Walter Benjamin) _não como um exemplar único, mas sim como uma combinação singular de matéria e forma. Ainda que em milhões de cópias, a ”Girafa em Chamas”, de Salvador Dali, ”O Arremessador de Disco”, de Myron, ou um ”hiphop” de Dr. Dre não são menos únicos e irrepetíveis como representação. Nesse plano, não há reprodutibilidade técnica.


A estética da mercadoria, ao contrário, é design: não expressão ”da própria coisa”, mas roupagem de sua universalidade abstrata como representação da compra e venda, e, nesse sentido, tudo menos inconfundível. Em sua forma, a arte pode ser mercadoria, mas a mercadoria, em seu conteúdo, jamais pode ser arte. Com isso, o design não é questão de arte, mas de marketing. O design não tenta conferir um determinado conteúdo qualitativo a uma forma correspondente a ele e a seu contexto. Em vez disso, ele busca revestir a total irrelevância do conteúdo com uma aura de importância secundária. Como o conteúdo material e sensível da mercadoria capitalista não se sustenta sozinho, mas figura apenas como suporte indiferente do valor econômico, assim também a forma do design não possui uma importância estética própria, mas indica uma função para além de seu vínculo com a matéria casual. Esta função é a ”imagem” da mercadoria. Há tempos a propaganda tenta ligar bens de uso cotidiano com sentimentos positivos. No caso, não se ama o próprio objeto, como, por exemplo, alguém ama uma velha mobília que o acompanhou pela vida. Antes, um bem em si banal (ou até mesmo idiota) deve ser ”representativo” de determinados elementos da empatia social. Como se sabe, as campanhas publicitárias sugerem que, junto com um sabonete, se compra também beleza e charme, ou sucesso com uma barra de chocolate, ou também sex appeal e liberdade com um automóvel.


Desse modo, sonhos e invenções pessoais são um tanto reprimidos, pois a imaginação da mercadoria visa ao clichê: a mulher bela e confiante, o homem forte e bem-sucedido, o jovem boa-pinta, o idoso diligente etc. O engodo é fácil de perceber pelo raciocínio, mas é capaz, apesar disso, de agir inconscientemente. Isso vale tanto mais quando se inverte a relação estética entre a mercadoria e a sua imagem. Na totalização do mercado, agrava-se a inversão capitalista entre fins e meios: o anúncio não se reporta mais ao produto, mas o produto apregoa a fama do anúncio. Os objetos perdem definitivamente sua dignidade. Sua forma estética desprende-se virtualmente da matéria e torna-se o design de uma imagem mercantil.


Nesse contexto, encontramos também a razão social das filosofias e teorias pós-modernas da mídia, que querem nivelar teoricamente a diferença entre essência e aparência, entre conceito e objeto, entre significado e significante. Elas refletem inconscientemente a crescente disparidade entre o design e o corpo da mercadoria. A transformação, especificamente pós-moderna, da teoria do conhecimento em estética é sempre estética da mercadoria. O design autonomizado da imagem de mercadorias substitui-se ao prazer com objetos reais. As pessoas do mercantilizado socialismo de Estado equiparavam-se, em termos sociopsíquicos e estéticos, à versão capitalista privada da sociedade de mercado pelo próprio fato de colecionarem invólucros sem conteúdo e embalagens de mercadorias ocidentais a título de obras de arte e de culto, como, por exemplo, garrafas vazias de Coca-Cola. Um fetichismo análogo manifesta-se quando crianças e jovens de hoje incorporam à imaginação os nomes e logotipos de certas marcas de roupa, brinquedos e diversões eletrônicas. Não é mais a singular qualidade sensível e prática que se torna símbolo de status, mas a marca. A estética do sinal abstrato ocupa o lugar da estética dos conteúdos.


Se a reprodução material, o prazer sensível, a estética das próprias coisas e a práxis real são rebaixadas socialmente a efeitos secundários irrelevantes, então o design, livre de freios, pode
substituir-se quase totalmente, na condição de simples imagem, ao
objeto aviltado. Não por acaso a comercialização total anda de mãos dadas com uma medialização igualmente total. A realidade cheia de arestas tem de sumir para que o capitalismo avance sem atritos, lubrificado. Guy Debord descreveu essa tendência, já há um bom tempo, como ”sociedade do espetáculo”.
A autonomia do design em relação às mercadorias progride pelo fato
de a pseudo-realidade da mídia desbancar as experiências e elações reais. A imaginação permanente de clichês destrói a variedade infinita dos fatos. Na gíria pós-moderna das subculturas, tanto atitudes pessoais quanto acontecimentos reais são chamados de
”filme”. Se a realidade é o pior ”filme”, o ”filme”, talvez, seja a melhor realidade.


Essa evolução do capitalismo pós-moderno, até a perda absurda do conceito de realidade, seria impossível se não encontrasse sua correspondência na forma dos próprios sujeitos. Nos anos 80, realizou-se e radicalizou-se a tendência histórica do moderno sistema produtor de mercadorias à dissolução de todos os laços sociais por meio de um grande surto de ”individualização”. Cada qual o seu próprio deus, o seu próprio escravo, o seu próprio treinador e o seu próprio filme de terror. Esse aguçamento extremo do individualismo abstrato não é ignorado pela estética da mercadoria: cada qual a sua própria obra de arte total. Transformados literalmente _e não somente em relação à sua força de trabalho_ em ”mercadorias sobre duas pernas”, os indivíduos imaginam-se como designs vivos. O mundo dos produtores e consumidores de mercadorias transforma-se num único e vasto palco (ou televisor) e cada qual torna-se ator de si mesmo.


No lugar de relações e conflitos sociais surge a ”auto-encenação” de imitações da pessoa, que trabalham na estetização de sua biografia. Elas relacionam imediatamente tudo o que vêem e ouvem a si próprias: o mundo só existe por que é parte de ”meu” design. Isso traz à memória, de forma suspeita, os sintomas clínicos da esquizofrenia. Não apenas peças do vestuário e objetos de recordação, mas também cenários históricos, paisagens inteiras, a própria família e, finalmente, o próprio parceiro de cama aparecem como simples figurantes da encenação de si mesmo. Também a crítica social e o corpo tornam-se imagens desconexas ou simples invólucro.
Em Berlim, a cada ano, milhares de jovens reúnem-se para a ”loveparede”. Não se trata unicamente de uma paródia
comercializada das antigas demonstrações políticas, mas, sobretudo, de um desfile em massa do design erótico. Ora, os guardiões conservadores da moral irritam-se inutilmente com a encenação do extravagante desnudamento: estes jovens não são mais sexualizados do que bonecos de inflar. Quanto mais o design sexualiza, mais pudico torna-se o comportamento. A atividade realmente erótica dos indivíduos pós-modernos caiu abaixo do nível da era vitoriana.


A metamorfose do ser em design não tardará a atingir também os fenômenos da ruína econômica e social _a crise e a catástrofe. Eis por que o pós-modernismo ainda é possível em sua variante miserável. Se no passado a pobreza foi estetizada, tratava-se invariavelmente da pobreza dos outros. As obras de arte total ambulantes do pós-modernismo, pelo contrário, estetizam a sua própria pobreza. O mais miserável ”McJob” torna-se um tema estético de importância, pois quem o desenvolve é ninguém menos que o próprio ator da biografia encenada.


A indiferença do design a todo conteúdo volta-se, assim, contra o próprio sujeito que encena. É claro que essa estetização da crise não pode durar para sempre. Algum dia ela passará dos limites. Mas qual será a conduta das pessoas degradadas a design de sua própria forma-mercadoria? A estetização do poder pelo fascismo talvez já tenha antecipado o terrível final do pós-modernismo.

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