Capitalismo nas estrelas
Publicado em 07/11/99 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.
Há quase duas décadas o mundo capitalista convive com um fenômeno denominado “New Economy”: em vez da produção real de bens e serviços, são os mercados financeiros que determinam a sorte da economia mundial. Mas há tempos se dissipou o temor de que essa absurda inversão das relações entre mercadoria e dinheiro pudesse conduzir a uma nova crise econômica mundial.
Desde a primeira moratória mexicana no início dos anos 80, sucedeu-se toda uma série de crises financeiras regionais, cada uma delas, porém, capaz de ser contida. O México, pelo menos era a impressão, poderia ficar na pindaíba quantas vezes quisesse. Sempre haveria um novo pacote de ajuda do FMI e dos bancos credores: US$ 20 bilhões, US$ 60 bilhões, uma mixaria! Da crise de endividamento de todo o Terceiro Mundo nos anos 80, ainda o bicho-papão dos analistas, há muito ninguém mais ouve falar. Algo mudou? Resolver, não se resolveu nada. E será que é preciso? Quem se importa, afinal, se nesse meio tempo passaram a circular ao redor do globo US$ 2 ou 3 trilhões em forma de títulos da dívida da periferia capitalista?
O mesmo quadro repete-se no Leste Europeu. De fato, a chamada “transformação para a economia de mercado” dos antigos países socialistas foi por água abaixo. Em termos de economia real, pelo menos, a privatização das empresas estatais foi em grande parte um fiasco -mas que diabos significa economia real? Mesmo onde há muito não germina mais uma semente, dívidas assustadoras transformam-se miraculosamente em ativos da especulação transnacional.
Faz anos que as finanças russas estão quebradas, sem que se possa entrever nenhum tipo de consequência. Os empréstimos do FMI são remetidos religiosamente e, com eles, o clã bizantino de Ieltsin aproveita para comprar presentes de Natal na Califórnia ou na costa oriental. A cada mês a Rússia despeja novamente nos mercados financeiros transnacionais cerca de US$ 1 bilhão, sem que esse dinheiro tenha passado sequer uma vez por investimentos reais.
Também não parece mais criar problema a crise asiática, que em 1997-98 abalou o mundo. A catástrofe da economia real, que arruinou vários milhões de almas, parece não ter feito mal ao mercado financeiro, no qual o otimismo corre novamente solto e os índices das ações, de Seul a Manila, pairam em alturas etéreas, como se crise não houvesse existido. Mesmo na Indonésia, país política e economicamente devastado, a Bolsa recuperou-se bem, para espanto geral.
Atrás dessa fachada restaurada se oculta um volume monstruoso de créditos podres, que jamais poderão ser saldados. Só a falência do cartel sul-coreano da Daewoo arrasta consigo uma montanha de dívidas avaliada entre US$ 50 bilhões e US$ 100 bilhões. Mas quem se importa? A festa continua, essas dívidas não saldadas também circulam como papéis de especulação. E na América Latina a coisa não é diversa: enquanto a fachada dos mercados financeiros (sobretudo o mercado de ações) permanecer de pé, tudo pode continuar como antes, como se em princípio tudo estivesse em ordem.
O mesmo vale para o endividamento excessivo, inviável, de bancos, empreendimentos industriais e setores inteiros no Japão, na América do Norte e na Europa ocidental. O que ontem rendeu manchetes sensacionalistas, hoje é folheado na imprensa econômica com um bocejo de tédio. Certo, pelo menos o sistema de poupança norte-americano entrou em colapso. Foram US$ 500 bilhões em perdas ou US$ 800 bilhões ou muito mais? Pouco importa, nada aconteceu.
Na França, o Estado teve de socorrer alguns grandes bancos em apuros; os bilhões desperdiçados foram encobertos, como se se tratasse de um erro de cálculo negligenciável nas contas públicas. Na Alemanha, Schneider, o “rei dos imóveis”, desaparecido há anos, deu um desfalque que orçou pelos bilhões -e de seu paradeiro hoje ninguém mais fala. E no Japão os créditos podres continuam a “estacionar” em duvidosas sociedades de captação, sob os auspícios da administração estatal. Mesmo assim alguns fundos especulativos insistem em eleger Tóquio para seus negócios, na esperança crédula de uma nova alta da Bolsa local.
Some-se a isso o volume global dos créditos ao consumidor ameaçados de insolvência. Nos numerosos países em crise, grande parte da classe média arruinada nunca mais logrará quitar a dívida a prazo de seus carros, apartamentos, mobiliário, viagens, tratamentos médicos, escola para os filhos etc., que há muito ou já foram consumidos ou se acham penhorados por ordem judicial. Mas, mesmo nos centros ocidentais, intumesce ano após ano o volume da crise privada de endividamento.
Cada vez mais famílias mergulham no desemprego, endividadas até o pescoço, e, de um dia para o outro, não conseguem mais honrar seus créditos e hipotecas. Só na Alemanha, até o início de 1999, mais de 1,2 milhão de famílias já se achavam em apuros financeiros. Quem detém o recorde mundial nesse aspecto são os Estados Unidos, país onde as dívidas privadas, em meados dos anos 90, ultrapassavam em seu conjunto as do Estado -um fenômeno ímpar em todo o mundo. Com um volume de cerca de US$ 12 trilhões de dívida privada, o sistema bancário arrasta consigo créditos podres ao consumidor numa dimensão que, noutro lugar, faria a ruína de Estados inteiros.
Hoje em dia o excessivo endividamento de Estados, bancos, empreendimentos industriais e agentes econômicos deve superar em muito a soma do produto interno dos países. Cifras exatas sobre o verdadeiro volume dos créditos podres ninguém as poderá obter, é claro, pois balanços transparentes e estatísticas financeiras honestas são praticamente o mesmo que lutadores de sumô esbeltos ou ciclistas não-dopados na Volta da França. A tomada de créditos começou já no tempo do boom após a Segunda Guerra Mundial. Mas então o endividamento universal ainda guardava uma relação semi-realista com o crescimento futuro da produção real de mercadorias e serviços.
Quando essa relação começou a se tornar irreal no início dos anos 80, mesmo teóricos adeptos do capitalismo foram assaltados por escrúpulos. Em 1984, Ralf Dahrendorf, um mandarim do liberalismo europeu, já previa no renomado semanário alemão “Die Zeit” um “capitalismo a crédito” e uma “economia do faz-de-conta”, cuja criação de valor estaria “rodeada de interrogações”.
Dahrendorf sabia que a economia dos megaendividamentos, destacada do solo da realidade, não era o resultado de um simples erro de conduta subjetivo dos sujeitos econômicos ou de uma política econômica “equivocada”, mas fruto próprio de um processo endêmico de seu querido capitalismo. Daí o desamparo de seu raciocínio, daí seu mal-estar, que ele não esconde ao escrever: “Só há uma linha tênue entre o bem-estar e a falência (…). E o futuro é só a época em que se paga pelo conforto da véspera e da antevéspera (…). Falta o motivo para dar forma ao futuro, pois tudo o que ele possa trazer de agradável já passou. O futuro não é mais que um fardo”.
No fundo o sistema financeiro global, em virtude do fantástico endividamento acumulado desde então, já haveria de ter entrado em colapso. Mas isso não ocorreu, como se sabe, apesar de todas as crises financeiras parciais desde o crash de 1987. Daí também não haver mais, de lá para cá, nenhum escrúpulo teórico. Não é segredo para ninguém que apenas a alta aparentemente inesgotável do curso das ações irradiou sua luz dourada sobre todas as crises e colapsos; só dessa maneira foi possível dar seguimento à cadeia infindável de endividamento, balanços maquiados e liquidação de créditos podres, que até hoje livrou da queda a dita “arquitetura” do capitalismo financeiro global. Não há fogo de artifício acionário que baste para compensar tamanhas dívidas.
Isso tudo foi discutido à saciedade, de modo que esse tema talvez soe repetitivo para muitos. Não é descabido, porém, dois anos após o início da crise asiática e poucos meses antes da virada do século, pôr a mão na consciência e indagar da solidez da “New Economy”. Se as diversas advertências de Cassandra foram supérfluas, pode agora ser definitivamente dado o fim do sinal de alerta? Todas as crises financeiras futuras não passarão de pequenas depressões numa eterna curva ascendente?
Uma coisa é clara: a liquidez necessária para manter debaixo do tapete o imenso endividamento global exige um aumento progressivo do curso das ações. Se esse processo de criação fictícia de valor se interromper por muito tempo, é inevitável que sobrevenha a grande queda. Dessa perspectiva, como se deve avaliar a situação atual? O índice das Bolsas nos tigres asiáticos elevou-se um pouco, é verdade, mas parece ter atingido seu ápice; os picos aferidos no período anterior à crise são agora inalcançáveis. Mesmo na Europa e no Japão se observa uma estagnação entre antigos recordistas. Só nos Estados Unidos continuou desenfreada, no primeiro semestre de 1999, a luta pela quebra de recordes. Ao que tudo leva a crer, o destino dos mercados financeiros globais só depende agora do movimento ascendente de Wall Street.
Essa situação extremamente precária corresponde ao sentido da corrente global de mercadorias: o déficit da balança comercial norte-americana elevou-se dramaticamente no mesmo período; segundo os números do primeiro semestre de 1999, é de esperar um saldo negativo de mais de US$ 300 bilhões. Em outras palavras, paralelamente ao crescimento dos mercados acionários, a produção global de mercadorias concentra-se, com força tanto maior que antes, na exportação para os Estados Unidos.
Isso se aplica de forma direta tanto como indireta: o aumento das exportações do Japão e da Europa para os tigres asiáticos, para a América Latina etc. referem-se sobretudo a componentes de produção e bens de investimento, com os quais, por sua vez, esses países incrementam suas próprias exportações para os Estados Unidos. A melhora da conjuntura na Europa, Ásia e talvez América Latina, prognosticada pelas instituições internacionais para o ano 2000 e que supostamente se alternaria a esse perpétuo boom dos Estados Unidos, na verdade depende totalmente da conjuntura norte-americana -e essa depende, por sua vez, das injeções dos contínuos aumentos dos índices de Wall Street.
A pergunta fundamental, portanto, é esta: até que ponto Wall Street ainda pode aguentar? Até que ponto a bolha ainda pode ser soprada nos Estados Unidos? É possível avaliar de maneira aproximada as dimensões com base no célebre índice Dow Jones. Desde sua criação no ano de 1900, ele precisou de 66 anos para tangenciar fugazmente o nível dos mil pontos. Durou mais 16 anos até que, em 1982, esses mil pontos fossem ultrapassados em definitivo. Desde o início da nova “economia do faz-de-conta”, ele não encontrou mais obstáculos: em 1995, o Dow Jones já batia os 4.000 pontos -em 13 anos, portanto, ele quadruplicou o volume alcançado nos 82 anos anteriores. O salto quantitativo só ocorreu, porém, na segunda metade dos anos 90: em 1996, o Dow Jones montou a 6.000 pontos; em fevereiro de 1997, a 7.000; em julho de 1997, a 8.000; em 1998, a 9.000; e em meados de 1999, pasmem, a 11 mil pontos.
Uma comparação pode esclarecer quanto os valores das ações norte-americanas se distanciaram da realidade. A megaempresa Microsoft americana, que emprega só 29 mil funcionários e cuja receita anual é só de US$ 14,5 bilhões, possui, com seus US$ 435 bilhões, um “patrimônio acionário” maior que as oito maiores empresas alemãs juntas, que empregam 1,3 milhão de pessoas e cuja receita anual está na casa dos US$ 387 bilhões. E olhem que as ações alemãs se acham sobrevalorizadas!
O que isso significa? Se partimos do pressuposto de que o movimento das ações tem por conteúdo expectativas futuras na economia real, então os Estados Unidos já teriam “capitalizado” de antemão todo o crescimento do século 21: a economia atual do planeta só seria sustentada por intermédio do futuro antecipado dos Estados Unidos. “O futuro já passou”, e isso numa dimensão que, 15 anos atrás, Ralf Dahrendorf ainda não podia nem sequer imaginar em seus mais ousados pesadelos. Ou, por outra, não existe mais futuro, porque sua substância foi consumida para a manutenção do presente capitalista. A liquidez com que, desde meados dos anos 90, os Estados Unidos aqueceram a economia mundial não pode mais manter em vida o conjunto da humanidade no próximo século sem lhe obstar as funções vitais.
Mesmo nos maiores otimistas de Nova York restou um surdo mal-estar. Apesar de todo “business as usual”, corre o palpite de que o grande crash é inevitável, ainda que até agora tenha sido refreado. Ao que parece, não é mais preciso um choque externo dramático para acarretar a queda de Wall Street. O próprio peso das enormes dívidas interna e externa norte-americanas oprimem cada vez mais o curso das ações. Uma hora ou outra cessa a combustão do foguete e ele volta a despencar. Ao se atingir o limite superior absoluto, a transição para a queda passará pelas conhecidas três fases do alerta (estagnação com pequenos movimentos descendentes), do medo (grandes correções para baixo) e finalmente do pânico (queda livre). Hoje nos encontramos numa fase de alerta, que a todo instante ainda pode ser interrompida por um novo impulso para cima.
Mas o ar já está bastante rarefeito. Dois indicadores podem revelar a iminência do perigo: o preço do ouro e a cotação do dólar, e isso numa proporcionalidade inversa. Quanto mais o preço do ouro sobe e quanto mais baixa a cotação do dólar (sobretudo em relação ao iene), mais perto do ápice se acham os mercados financeiros. A ação concentrada dos bancos centrais europeus, que deram a conhecer sua cautelosa limitação da compra de ouro, só é parcialmente responsável pela recente explosão do preço do metal; o outro responsável é o crescente receio da queda. E a pressão sobre o dólar não sinaliza uma reavaliação política no interior do sistema monetário internacional (porventura em razão do euro), mas indica, antes, o fim dramático da alta de Wall Street. Talvez a próxima crise financeira seja mais uma vez contida. Mas no fim Cassandra terá a última palavra.