Desafinando o coro

Desafinando o coro

(Noam Chomsky)

Caravanas de estudantes e professores vêm a Brasília ouvir Noam Chomsky, o demolidor das ideologias que domina o fim do século.
Sandra Lefcovich
Da equipe do Correio


Ele causou tanto rebuliço que recebeu tratamento de star. Entre palestra e palestra, Noam Chomsky andava pelo corredores da Universidade de Brasília escoltado por seguranças que o protegiam do assédio dos tietes. Como o mineiro André, estudante de Letras, tão empolgado pelo mestre que o acompanhou no Rio, em São Paulo e acabou pegando o mesmo avião em que ele veio para Brasília.

“Conversa com ela”, aconselhou André, se referindo a Carol, a mulher de Chomsky. André a conheceu durante a viagem, quando criou coragem para se aproximar e prosear nervoso com o casal que perseguia há duas cidades.

Carol, cabelo loiro curtíssimo, hiperativa, é o relógio do marido. Ela cronometra tudo: palestras, entrevistas ou encontros. Parece a fã número um: carregando uma bolsa de pano com a foto dele pregada, Carol aparece na hora marcada e apita o fim do jogo sem compaixão, levando o marido para o próximo compromisso ou para o descanso.

Ela explica : na Índia, ele esteve à beira de um colapso. Solícito, Chomksy parece sempre incapaz de recusar qualquer pedido. Sob a batuta da mulher, ele é livre para expor suas idéias sem preocupação com problemas terrenos.

Durante dois dias, na semana passada, o revolucionário do estudo da linguaguem e crítico sistemático há trinta anos da política dos Estados Unidos falou em Brasília para uma platéia de mais de duas mil pessoas.

Para muitos, suas palavras soaram explosivas e ameaçadoras. Mas Chomsky expôs as desgraças do mundo em tom calmo e monocórdio, longe da veemência panfletária que se espera de profetas radicais.

“As pessoas gostam de ouvir alguém dizer coisas muito simples que qualquer criança pode ver”, explicou. Não fez grandes revelações, mas costurou uma trama convincente que não deixou ponto sem nó, um discurso permeado por documentos de Estado e leituras da imprensa.



Carlos Constantino, estudante de Ciências da Computação da UNB, 26 anos, não conseguia se recuperar da surpresa: “Estou impressionado com essa visão tão humanista”.



Para ele, que só conhecia o Chomsky cientista, o papa da linguística – uma teoria que os estudantes de informática destrincham para poder mais tarde criar linguagens de computador -, foi uma descoberta ouvir o analista político atacando o neoliberalismo durante quase duas horas no auditório lotado do DNER, na noite de terça-feira.



Entre a teoria linguística e a crítica política e social, Chomsky publicou uma coleção de quase 80 livros. Impactou o mundo científico em 1957 com a tese de doutorado Estruturas Siintáticas, lançando uma luz nova sobre a gramática.



Sua teoria – ainda em permanente mudança – se baseia na hipótese de que a capacidade humana para a linguaguem é geneticamente determinada.



“Eu pensei que nunca irai conhecê-lo”, contava animado Wagner, 23 anos, aluno da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) que encarou mais de 400 quilômetros de estrada com um grupo de 25 estudantes e professores de Letras. Tanto esforço para conhecer o até então lendário professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.



Chomsky atrai as atenções no mundo inteiro. Inclusive nos EUA. Excluído há 16 anos da mídia eletrônica norte-americana, ele inquieta também seus conterrâneos.



Há quatro anos, Consenso Fabricado, um documentário canadense de quase três horas sobre a vida e as idéias de Chomsky chegou a ameaçar, em Los Angeles, o primeiro posto nas bilheterias do hollywoodiano por Demi Moore e Michael Douglas.



Defensor quixotesco de causas algum dia esquecidas como a independência de Timor Leste e a autodeterminação dos palestinos (e muito antes de que se tornassem célebres), em sua viagem pelo Brasil o pensador não se limitou a falar para platéias universitárias. Ele aproveitou para conhecer a liderança dos sem-terra e do PT, conversar com integrantes da CNBB e visitar projetos comunitários nos subúrbios do Rio.



A seguir, trechos da entrevista exclusiva que Noam Chomsky concedeu ao Correio Braziliense na manhã de quarta-feira passada, antes de partir de Brasília.



“Muito Poder e Nenhuma Obrigação”



O principal problema do Brasil, como todo mundo sabe, é ser um caso extremo de uma situação mundial: o Estado está sujeito às forças dos poderosos. O Brasil talvez seja a situação mais extrema do mundo, que ainda é exagerada pelo fato do enorme potencial de recursos naturais. O fato de que aqui os ricos tenham esse poder extraordinário e nenhuma obrigação social é realmente uma verdadeira tragédia.



“Comparação entre o Brasil e o Japão”



O Brasil e o Japão são muito diferentes. O Brasil tem maiores vantagens que o Japão, pois tem enormes recursos naturais, enquanto o Japão praticamente não tem recurso natural nenhum. Por outro lado, o Japão nunca foi colonizado. O Brasil foi colonizado, e ainda é, pois tem uma independência puramente formal. A independência do Brasil de fato nunca aconteceu. Já o Japão bloqueou o esforço do Ocidente de colonizá-lo: foi capaz de seguir seu próprio caminho e se desenvolver. As únicas partes do mundo que realmente se desenvolveram foram aquelas que rejeitaram o controle imperial. Os Estados Unidos se desenvolveram depois que expulsaram os britânicos. Até sob ocupação militar, o Japão começou a seguir seu próprio caminho, recusando as políticas do neoliberalismo, que eram as mesmas de hoje. Existem outras diferenças culturais muito fortes entre o Brasil e o Japão, como o fato de o Japão ser uma sociedade altamente autoritária, algo que no Brasil é muito diferente. Mas isso não significa que o Brasil não possa descobrir seu próprio caminho para a independência.



“América Latina: Elite Internacionalizada”



Há dois grandes problemas na América Latina. O primeiro é que os ricos fazem parte da elite internacional, e não de seu próprio país. O segundo problema é que, mesmo no período colonial, os contatos entre os países da América Latina foram quebrados, tornando independentes as relações de cada país com os centros de poder da Europa. Isso continuou até a década de 80: durante a crise da dívida externa, os países latino-americanos tentaram reagir de forma conjunta, mas não conseguiram. O Ocidente tratou com cada um deles separadamente.



“Elites Precisam Retomar Nacionalismo”



As elites não têm que voltar ao nacionalismo, têm que ser forçadas a voltar. Em primeiro lugar, não devem ter a riqueza que têm. A desigualdade no Brasil é um escândalo. Se você observa o Sudeste Asiático, não é uma sociedade igualitária, mas é muito mais igualitária do que a América Latina. Então, uma parte da questão seria superar esse enorme problema de riqueza e poder que é interno ao país. O Brasil tem o pior panorama de desigualdade do mundo. Não é só tornar as elites mais nacionalistas, mas eliminar o poder dessa elite. O país tem que ser democratizado, e a democratização significa igualdade.



“Desafios do Mercosul: Risco de Desastre”



Tudo dependerá da forma que o Mercosul seja feito. Se for simplesmente uma aliança entre a elite rica da Argentina, Brasil ou Uruguai, o processo vai ser simplesmente um outro desastre, ligado instantaneamente à riqueza internacional. Aqui há dois problemas. Um é a separação entre os países latino-americanos. O outro é a separação da elite do resto da população. Se o Mercosul for implementado pelos mesmos pequenos setores da população de cada país, então será subordinado ao sistema internacional. Esses dois problemas têm que ser superados.



“Da Ditadura Militar à Ditadura Econômica”



Superar a ditadura militar foi uma grande vitória. Então a situação está melhor agoira do que na época em que os generais estavam no poder. Isso não quer dizer que está tudo maravilhoso. É certo que a democracia foi formalmente introduzida na América Latina junto a enormes esforços para que essa democracia não tivesse sentido nenhum. Parte da ideologia oficial do neoliberalismo é minimizar o Estado, o que significa minimizar a democracia, porque o Estado é o espaço público. Então, se a democracia forma surge justamente com o aumento do poder privado e a eliminação das opções públicas, ela perde rapidamente sentido. Por outro lado, os programas neoliberais pioram os problemas: a desigualdade aumenta, a educação piora e os lucros são mais altos enquanto os salários são mais baixos. Por isso, todas as pesquisas realizadas na América Latina mostram que as pessoas estão desiludidas com a democracia. Idêntica situação ocorre nos EUA: 80% da população pensam que o sistema democrático não funciona, que o governo de fato só trabalha para os ricos. Em definitivo, o espaço público é restrito, enquanto você tem uma liberdade formal. Então, você tem que lutar pelos dois lados: contra a ditadura militar e contra a ditadura econômica.



“Estado Forte ou Minimalista?”



Se o Estado é altamente corrompido e praticamente um instrumento dos poderosos, então não importa muito se as empresas são privatizadas ou não. A principal tarefa a ser feita é democratizar os recursos e as empresas públicas. Por exemplo, se a UNB, que é pública, está trabalhando somente para o benefício das corporações, é melhor privatizá-la. Mas se está trabalhando para o interesse de todos os brasileiros, então é necessário manter a universidade no setor público. Quando o governo está planejando privatizar, eles pioram os serviços e fazem com que as pessoas se alegrem de ver aquilo privatizado. O nó da questão não é privatizar, mas a democracia. Isso quer dizer que as empresas nacionais têm que ser democratizadas e protegidas.



“Lutar para Mudar”



Tornar a sociedade mais democrática se faz da mesma forma que se alcançou qualquer outro ganho na história da humanidade. Há cinquenta anos, uma mulher não seria jornalista. E isso como ocorreu? Foi um presente de Deus? As pessoas lutaram para conseguir seus direitos.



“Intelectual Usa Mente com Criatividade”



As pessoas que admiro não são necessariamente consideradas intelectuais. Eu as considero intelectuais porque usam a mente, mas talvez não tenham tido educação. Conheço pessoas na universidade que usam menos criatividade intelectual que pessoas que constroem casas. Usar ou não a mente não depende de sua profissão. Há pessoas que de fato desenvolvem lutas populares. Durante esta viagem, visitei em Buenos Aires uma favela com colegas da univesidade. Eles são ativistas sociais (ensinam e trabalham nas favelas). O lugar era muito pobre, mas as mulheres se organizaram e fizeram um pequeno centro cultural onde alfabetizam as crianças e organizam a comunidade contra as guangues de drogas. Muitas dessas mulheres sabem que não têm futuro, que será difícil para elas conseguir trabalho. Mas estão lutando para fazer daquela favela um lugar mais descente. São intelectuais admiráveis.



“A Insuportável Clareza das Coisas”



Essa receptividade das pessoas ocorre em todo os lugares a que vou e nos EUA também. Mas isso não tem nada a ver comigo. Acontece porque a maioria da classe intelectual se separou totalmente das lutas populares. As pessoas só ouvem um discurso único, mas sabem que é uma farsa. Nunca ninguém diz nada. Veja a questão da dívida externa: é óbvio que o Brasil não tem uma dívida, ela já foi paga. Todo mundo sabe disso, mas quantos o dizem? As pessoas gostam de ouvir alguém dizer essas coisas muito simples que qualquer criança pode ver, porque sabem que as coisas estão indo na direção errada e as razões são fáceis de entender. Mas ninguém fala delas. Então, quando alguém fala, vira um problema enorme. Existem muitas outras pessoas que falam as mesmas coisas e têm os mesmos problemas.

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