A desobediência civil – II (Henry David Thoreau)
continuação da parte I
Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é também a prisão. Hoje em dia, o lugar próprio, o único lugar que Massachusetts reserva para os seus habitantes mais livres e menos desalentados são as suas prisões, nas quais serão confinados e trancados longe do Estado, por um acto do próprio Estado pois os que vão para a prisão já antes tinham se confinado nos seus princípios. E aí que devem ser encontrados quando forem procurados pelos escravos fugidos, pelo prisioneiro mexicano em liberdade condicional e pelos indígenas, para ouvir as denúncias sobre as humilhações impostas aos seus povos; é aí, nesse chão discriminado, mas tão mais livre e honroso, onde o Estado planta os que não estão com ele mas sim contra ele – a única casa num Estado-senzala na qual um homem livre pode perseverar com honra. Se há alguém que pense ser a prisão um lugar de onde não mais se pode influir, no qual a sua voz deixa de atormentar os ouvidos do Estado, no qual não conseguiria ser tão hostil a ele, esse alguém ignora o quanto a verdade é mais forte que o erro e também não sabe como a injustiça pode ser combatida com muito mais eloquência e efectividade por aqueles que já sofreram na carne um pouco dela. Manifeste integralmente o seu voto e exerça toda a sua influência; não se deixe confinar por um pedaço de papel. Uma minoria é indefesa quando se conforma à maioria; não chega nem a ser uma minoria numa situação dessas; mas ela é irresistível quando intervém com todo o seu peso. Se a alternativa ficar entre manter todos os homens justos na prisão ou desistir da guerra e da escravidão, o Estado não hesitará na escolha. Se no ano corrente mil homens não pagassem os seus impostos, isso não seria uma iniciativa tão violenta e sanguinária quanto o próprio pagamento, pois neste caso o Estado fica capacitado para cometer violências e para derramar o sangue dos inocentes. Esta é, na verdade, a definição de uma revolução pacífica, se é que é possível uma coisa dessas. Se, como já ouvi um deles me perguntar, o colector de impostos ou outro funcionário público qualquer indagar: "Mas o que devo fazer agora?", a minha resposta é: "Se de facto quiser fazer alguma coisa, então renuncie ao seu cargo". Quando o súdito negou a lealdade e o funcionário renunciou ao seu cargo, então a revolução completou-se. Mas vamos supor que há violência. Não poderíamos considerar que uma agressão à consciência também provoca um tipo de ferimento grave? Um ferimento desses provoca a perda da autêntica humanidade e da imortalidade de um homem, e ele sangra até uma morte eterna. Posso ver esse sangue a correr, agora.
Especulei sobre a prisão do infractor, e não sobre o confisco dos seus bens – embora ambas as medidas sirvam ao mesmo fim -, porque os que afirmam o certo e que, por isso, são os seres mais perigosos para um Estado corrupto, em geral não gastam muito do seu tempo na acumulação de propriedades. Para homens assim o Estado presta serviços relativamente pequenos e um imposto bem leve tende a ser considerado exorbitante, particularmente quando são obrigados a realizar um trabalho especial para conseguir a quantia cobrada. Se houvesse quem vivesse inteiramente sem usar o dinheiro, o próprio Estado hesitaria em exigir que ele lhe entregasse uma quantia. O homem rico, no entanto – e não pretendo estabelecer uma comparação invejosa -, é sempre um ser vendido à instituição que o enriquece. Falando em termos absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude; pois o dinheiro interpõe-se entre um homem e os seus objectivos e permite que ele os compre; obter alguma coisa dessa forma não é uma grande virtude. O dinheiro acalma muitas perguntas que de outra forma ele se veria pressionado a fazer; de outro lado, a única pergunta nova que o dinheiro suscita é difícil, embora supérflua: "Como gasta-lo?" Um homem assim fica, portanto, sem base para uma moralidade. As oportunidades de viver diminuem proporcionalmente ao acúmulo daquilo que se chama de "meios". A melhor coisa a ser feita em prol da cultura do seu tempo por um homem rico é realizar os planos que tinha quando ainda era pobre. Cristo respondeu aos seguidores de Herodes de acordo com a situação deles. "Mostrem-me o dinheiro dos tributos", disse ele; e um deles tirou do bolso uma moeda. Disse então Jesus Cristo: "Se vocês usam o dinheiro com a imagem de César, dinheiro que ele colocou em circulação e ao qual ele deu valor, ou seja, se vocês são homens do Estado e estão felizes de se aproveitar das vantagens do governo de César, então paguem-no por isso quando ele o exigir. Portanto, dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus"; Cristo não lhes disse nada sobre como distinguir um do outro; eles não queriam saber isso.
Quando converso com os mais livres dentre os meus vizinhos, percebo que, independentemente do que digam a respeito da grandeza e da seriedade do problema e de sua preocupação com a tranquilidade pública, no fim das contas tudo se reduz ao seguinte: eles não podem abrir mão da protecção do governo actual e temem as consequências que a sua rebeldia provocaria nas suas propriedades e famílias. Da minha parte, não gosto de imaginar que possa vir algum dia a depender da protecção do Estado. Mas se eu negar a autoridade do Estado quando ele apresenta a minha conta de impostos, ele logo confiscará e dissipará a minha propriedade e tratará de me hostilizar e à minha família para sempre. Essa é uma perspectiva muito dura. Isso torna impossível uma vida que seja simultaneamente honesta e confortável em aspectos exteriores. Não valeria a pena acumular propriedade; ela certamente se perderia de novo. O que se tem a fazer é arrendar alguns alqueires ou ocupar uma terra devoluta, cultivar em pequena escala e consumir logo toda a sua produção. Você tem que viver dentro de si mesmo e depender de si mesmo, sempre de mala feita e pronto para recomeçar; você não deve desenvolver muitos vínculos. Até mesmo na Turquia você pode ficar rico, se em tudo for um bom súdito do governo turco. Confúcio disse: «Se um Estado é governado pelos princípios da razão, a pobreza e a miséria são factos acabrunhantes; se um Estado não é governado pelos princípios da razão, a riqueza e as honrarias são os factos acabrunhantes". Não! Até que eu solicite um remoto porto sulino, que a protecção do Estado de Massachusetts me seja estendida com o fim de preservar a minha liberdade, ou até que eu me dedique apenas a construir pacificamente um património aqui no meu Estado, posso negar a minha lealdade ao governo local e negar o seu direito à minha propriedade e à minha vida. Sai mais barato, em todos os sentidos, sofrer a penalidade pela desobediência do que obedecer. Obedecer faria com que eu me sentisse diminuído.
Há alguns anos o Estado procurou-me em nome de uma organização religiosa e intimou-me a pagar uma certa quantia destinada a sustentar um pregador que o meu pai costumava frequentar; eu nunca o tinha visto. "Pague ou será trancado na cadeia", disse o Estado. Eu recusei-me a pagar. Infelizmente, no entanto, outro homem achou melhor fazer o pagamento em meu nome. Não consegui descobrir por que o mestre-escola deveria pagar imposto para sustentar o clérigo e não o clérigo contribuir para o sustento do mestre-escola; pois eu não era mestre-escola do Estado, e sustentava-me com subscrições voluntárias. Não vi o motivo pelo qual o liceu não devesse apresentar a sua conta de impostos e fazer com que o Estado apoiasse, junto com a organização religiosa, essa sua pretensão. No entanto, os conselheiros municipais pediram-me e eu concordei em fazer uma declaração por escrito cuja redacção ficou mais ou menos assim: "Saibam todos quantos esta declaração lerem que eu, Henry Thoreau, não desejo ser considerado integrante de qualquer sociedade organizada à qual não tenha aderido". Entreguei o texto ao secretário da municipalidade. Deve estar com ele até hoje. Sabendo portanto que eu não queria ser considerado membro daquela organização religiosa, o Estado nunca mais me fez uma exigência parecida; ele considerava, no entanto, que estava certo e que deveria continuar a operar a partir dos pressupostos originais com que me abordou. Se fosse possível saber os seus nomes, eu teria desligado-me minuciosamente, na mesma ocasião, de todas as organizações das quais não era membro; mas não soube onde encontrar uma lista completa delas.
Há seis anos que não pago o imposto per capita. Fui encarcerado certa vez por causa disso, e passei uma noite preso; enquanto o tempo passava, fui observando as paredes de pedra sólida com dois ou três pés de espessura, a porta de madeira e ferro com um pé de espessura e as grades de ferro que dificultam a entrada da luz, e não pude deixar de perceber a idiotice de uma instituição que me tratava como se eu fosse apenas carne e sangue e ossos a serem trancafiados. Fiquei especulando que ela devia ter concluído, finalmente, que aquela era a melhor forma de me usar e, também, que ela jamais cogitara de se aproveitar dos meus serviços de alguma outra maneira. Vi que apesar da grossa parede de pedra entre mim e os meus concidadãos, eles tinham uma muralha muito mais difícil de vencer antes de conseguirem ser tão livres quanto eu. Nem por um momento me senti confinado, e as paredes pareceram-me um desperdício descomunal de pedras e argamassa. O meu sentimento era de que eu tinha sido o único dos meus concidadãos a pagar o imposto. Estava claro que eles não sabiam como lidar comigo e que se comportavam como pessoas pouco educadas. Havia um erro crasso em cada ameaça e em cada saudação, pois eles pensavam que o meu maior desejo era o de estar do outro lado daquela parede de pedra. Não pude deixar de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e trancaram as minhas reflexões – que os acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade; e o perigo estava de facto contido nelas. Como eu estava fora do seu alcance, resolveram punir o meu corpo; agiram como meninos incapazes de enfrentar uma pessoa de quem sentem raiva e que então dão um chuto no cachorro do seu desafecto. Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas com a sua prataria, incapaz de distinguir os seus amigos dos inimigos; perdi todo o respeito que ainda tinha por ele e passei a considerá-lo apenas lamentável.
Portanto, o Estado nunca confronta intencionalmente o sentimento intelectual ou moral de um homem, mas apenas o seu corpo, os seus sentidos. Ele não é dotado de génio superior ou de honestidade, apenas de mais força física. Eu não nasci para ser coagido. Quero respirar da forma que eu mesmo escolher. Veremos quem é mais forte. Que força tem uma multidão? Os únicos que podem me coagir são os que obedecem a uma lei mais alta do que a minha. Eles obrigam-me a ser como eles. Nunca ouvi falar de homens que tenham sido obrigados por multidões a viver desta ou daquela forma. Que tipo de vida seria essa? Quando defronto um governo que me diz "A bolsa ou a vida!", por que deveria apressar-me em lhe entregar o meu dinheiro? Ele talvez esteja passando por um grande aperto, sem saber o que fazer. Não posso ajudá-lo. Ele deve cuidar de si mesmo; deve agir como eu ajo. Não vale a pena choramingar sobre o assunto. Não sou individualmente responsável pelo bom funcionamento da máquina da sociedade. Não sou o filho do maquinista. No meu modo de ver quando sementes de carvalho e de castanheira caem lado a lado, uma delas não se retrai para dar vez à outra; pelo contrário, cada uma segue as suas próprias leis, e brotam, crescem e florescem da melhor maneira possível, até que uma por acaso acaba superando e destruindo a outra. Se uma planta não pode viver de acordo com a sua natureza, então ela morre; o mesmo acontece com um homem.
A noite que passei na prisão, além de uma novidade, foi também bem interessante. Os prisioneiros, em mangas de camisa, distraíam-se conversando na entrada, aproveitando o vento fresco da noite; assim estavam quando me viram chegar. Mas o carcereiro disse-lhes: "Venham, rapazes, já é hora de trancar as portas"; ouvi o barulho dos seus passos enquanto caminhavam para os seus compartimentos vazios. O carcereiro apresentou-me o meu companheiro de cela, qualificando-o como "um sujeito de primeira e um homem esperto". Trancada a porta, ele mostrou-me o cabide onde deveria pendurar o meu chapéu e explicou-me como administrava as coisas por ali. As celas eram caiadas uma vez por mês; a nossa cela, pelo menos, era o apartamento mais branco, de mobiliário mais simples e provavelmente o mais limpo de toda a cidade. Naturalmente ele quis saber de onde eu vinha e por que eu tinha ido parar ali; quando lhe contei a minha história, foi minha a vez de lhe perguntar a sua, na suposição evidente de que ele era um homem honesto; e, da maneira que as coisas estão, acredito que ele de facto era um homem honesto. Ele disse: «Ora, acusam-me de ter incendiado um celeiro; mas não fui eu". Pelo que pude perceber, ele provavelmente fora deitar-se, bêbado, para dormir num celeiro, não sem antes fumar o seu cachimbo; e assim perdeu-se no fogo um celeiro. Ele tinha a fama de ser um homem esperto, e ali aguardava havia três meses o seu julgamento; tinha outros três meses a esperar ainda; mas estava bem cordato e contente, já que não pagava pela casa e comida e se considerava bem tratado.
Ele ficava ao lado de uma janela, e eu junto à outra; percebi que se alguém ficasse por ali por muito tempo acabaria tendo por actividade principal olhar pela janela. Em pouco tempo eu tinha lido os folhetos que encontrara, e fiquei observando os locais por onde antigos prisioneiros tinham fugido, vi onde uma grade tinha sido serrada e ouvi a história de vários hóspedes anteriores daquele aposento; pois acabei descobrindo que até mesmo ali circulavam histórias e tagarelices que não conseguem atravessar as paredes da cadeia. Essa é provavelmente a única casa na cidade onde se escrevem poesias que são publicadas em forma de circular, mas que não chegam a virar livros. Mostraram-me uma grande quantidade de poesias feitas por alguns jovens cuja tentativa de fuga tinha sido frustrada; eles vingavam-se declamando os seus versos.
Tirei tudo o que pude do meu companheiro de cela, pois temia nunca mais tornar a encontrá-lo; mas finalmente ele indicou-me a minha cama e deixou para mim a tarefa de apagar a lamparina. Ficar ali deitado por uma única noite foi como viajar a um país distante, um país que eu nunca teria imaginado visitar. Pareceu-me que nunca antes ouvira o relógio da cidade dar as horas ou os ruídos nocturnos da aldeia; isso porque dormíamos com as janelas abertas, janelas estas instaladas por dentro das grades. Era como contemplar a minha aldeia natal à luz da Idade Média, e o nosso familiar rio Concord transformou-se na torrente de um Reno; à minha frente desfilaram visões de cavaleiros e castelos. As vozes que ouvia nas ruas eram dos antigos burgueses. Fui espectador e testemunha involuntária de tudo o que se fazia e dizia na cozinha da vizinha hospedaria local – uma experiência inteiramente nova e rara para mim. Tive uma visão bem mais íntima da minha cidade natal. Eu estava razoavelmente perto da sua alma. Nunca antes vira as suas instituições. Essa cadeia é uma das suas instituições peculiares, pois Concord é a sede do condado. Comecei a compreender o que preocupa os seus habitantes.
Quando chegou a manhã, o nosso desjejum foi empurrado para dentro da cela através de um buraco na porta; era servido numa vasilha de estanho ajustada ao tamanho do buraco e consistia numa porção de chocolate com pão preto; junto vinha uma colher de ferro. Quando do lado de fora pediram a devolução das vasilhas, a minha inexperiência foi tanta que coloquei de volta o pão que não comera; mas o meu companheiro pegou o pão e aconselhou-me a guardá-lo para o almoço ou para o jantar. Pouco depois, deixaram que ele saísse para trabalhar num campo de feno das vizinhanças, para onde se deslocava todos os dias; não voltaria antes do meio-dia; ele então deu-me bom-dia e disse que duvidava que nos víssemos de novo.
Quando saí da prisão – pois alguém interferiu e pagou o meu imposto -, percebi diferenças, não as grandes mudanças no dia-a-dia notadas por aqueles aprisionados ainda jovens e devolvidos já trôpegos e grisalhos. Ainda assim uma nova perspectiva tinha-se instalado no meu modo de ver a cidade, o Estado e o país, representando uma mudança maior do que se fosse causada pela mera passagem do tempo. Vi com clareza ainda maior o Estado que habitava. Vi até que ponto podia confiar nos meus conterrâneos como bons vizinhos e amigos; e percebi que a sua amizade era apenas para os momentos de tranquilidade; senti que eles não têm grandes intenções de proceder correctamente; descobri que, tal como os chineses e malaios, eles formam uma raça diferente da minha, por causa dos seus preconceitos e superstições; constatei que eles não arriscam a si mesmos ou a sua propriedade nos seus actos de sacrifício pela humanidade; vi que, no fim das contas, eles não são tão nobres a ponto de conseguir tratar o ladrão de forma diferente do que este os trata; e que só querem salvar as suas almas, através de acções de efeito, de algumas orações e da eventual observação dos limites particularmente estreitos e inúteis de um caminho de rectidão. É possível que esteja proferindo um julgamento duro sobre os meus vizinhos, pois acredito que a maioria deles não sabe que existe na sua cidade uma instituição tal como a cadeia.
Antigamente, na nossa aldeia, havia o costume de saudar os pobres endividados que saíam da cadeia olhando-os através dos dedos dispostos em forma das barras de uma janela de prisão; e perguntava-se ao recém-liberto: "Como vai?" Não recebi essa saudação dos meus conhecidos, que primeiro me encaravam e depois entreolhavam-se, como se eu acabasse de voltar de uma longa viagem. Eu tinha sido preso quando me dirigia ao sapateiro para buscar uma bota consertada. Quando fui solto na manhã seguinte, resolvi retomar o que estava fazendo e, depois de calçar a tal bota, juntei-me a um grupo que pretendia colher frutas silvestres e me queria como guia. E em pouco mais de meia hora – pois logo recebi um cavalo arreado – chegamos ao topo de um dos nossos mais altos morros, onde abundavam frutas silvestres, a três quilómetros da cidade; e dali não se podia ver o Estado em lugar nenhum.
Esta é a história completa das "Minhas prisões”.
Nunca me recusei a pagar o imposto referente às estradas, pois a minha vontade de ser um bom vizinho é tão grande quanto a de ser um péssimo súdito; no que toca à sustentação das escolas, actualmente faço a minha parte na tarefa de educar os meus conterrâneos. Não é um item particular dos impostos que me faz recusar o pagamento. Quero apenas negar lealdade ao Estado, quero me retirar e me manter efectivamente indiferente a ele. Não me importo em seguir a trajectória do dólar que paguei – mesmo se isso fosse possível -, até o ponto em que ele contrata um homem ou compra uma arma para matar um homem; o dólar é inocente. O que me importa é seguir os efeitos da minha lealdade. Na verdade, eu silenciosamente declaro guerra ao Estado, à minha moda, embora continue a usá-lo e a tirar vantagem dele enquanto puder, como costuma acontecer nestas situações.
Se outros resolvem pagar o imposto que o Estado me exige, nada mais fazem além do que já fizeram quando pagaram o seu imposto, ou melhor, estimulam a injustiça além do limite que o Estado lhes pediu. Se eles pagam o imposto alheio a partir de um equivocado interesse pela sorte daquele que não paga, para salvar a sua propriedade ou para evitar o seu encarceramento, isso só ocorre porque não meditaram seriamente no quanto estão permitindo que os seus sentimentos particulares interfiram no bem geral.
Esta, portanto, é minha posição actual. Mas não se pode ficar exageradamente de sobreaviso numa circunstância dessas, pelo risco de que tal atitude seja desviada pela obstinação ou pela preocupação indevida para com a opinião do próximo. Que cada um cuide de fazer apenas o que lhe cabe, e só no momento certo.
Por vezes penso assim: ora, esse povo tem boas intenções, mas é ignorante; ele faria melhor se soubesse como agir; por que incomodar os meus vizinhos e forçá-los a tratar-me de uma forma contrária às suas inclinações? Mas depois penso: não há motivo para proceder como eles ou para permitir que mais pessoas sofram outros tipos de dor. E digo ainda a mim mesmo: quando muitos milhões de homens, sem paixão, sem hostilidade, sem sentimentos pessoais de qualquer tipo, lhe pedem apenas uns poucos xelins, sem que a sua natureza lhes possibilite retirar ou alterar a sua exigência actual e sem a possibilidade de você, por seu lado, fazer um apelo a outros milhões de homens, por que você deveria se expor a tal força bruta avassaladora? Você não resistirá ao frio e à fome, aos ventos e às ondas com tanta obstinação; você submete-se pacificamente a mil imposições similares. Você não coloca a cabeça na fogueira. Mas exactamente na medida em que não considero esta força inteiramente bruta – e sim uma força parcialmente humana – e em que avalio que mantenho relações com esses milhões e com outros muitos milhões de homens – que não são apenas coisas brutas ou sem vida -, vejo também que é possível a apelação: em primeira instância e de pronto, eles podem apelar ao Criador; em segunda instância, podem apelar uns aos outros. Mas se ponho a minha cabeça no fogo de propósito não há apelo possível a ser feito ao fogo ou ao Criador do fogo, e sou o único culpado pelas consequências. Se eu conseguisse convencer-me de que tenho algum direito a me sentir satisfeito com os homens tal como eles são, e a tratá-los de acordo com isso e não parcialmente de acordo com as minhas exigências e expectativas de como eles e eu mesmo deveríamos ser, então, como bom muçulmano e fatalista, eu teria que me esforçar para ser feliz com as coisas como elas são e proclamar que tudo se passa segundo a vontade de Deus. E, acima de tudo, há uma diferença entre resistir a essa força e a uma outra puramente bruta ou natural: a diferença é que posso resistir a ela com alguma efectividade. Não posso esperar mudar a natureza das pedras, das árvores e dos animais, tal como Orfeu.
Não quero polemizar com qualquer homem ou nação. Não quero fazer filigranas, estabelecer distinções elaboradas ou colocar-me numa situação superior à dos meus vizinhos. Estou a buscar, posso admitir, até mesmo uma desculpa para aceitar as leis do país. Estou preparado até demais para obedecer a elas. Neste particular tenho motivos para suspeitar de mim mesmo; e a cada ano, quando se aproxima a época da visita do colector de impostos, surpreendo-me disposto a revisar os actos e as posições do governo central e do governo estadual, a rever o espírito do povo, para descobrir um pretexto para a obediência. Acredito que logo o Estado será capaz de aliviar-me de todos os encargos deste tipo e então não serei mais patriota do que o resto dos meus conterrâneos. Encarada de um ponto de vista menos elevado, a Constituição, com todos os seus defeitos, é muito boa; a lei e os tribunais são muito respeitáveis; mesmo o Estado de Massachusetts e o governo dos Estados Unidos da América são, em muitos aspectos, coisas admiráveis e bastante raras, pelas quais devemos ser gratos, tal como nos disseram muitos estudiosos das nossas instituições. Mas se elevarmos um pouco o nosso ponto de vista, elas mostram-se tais como as descrevi; e indo mais além, até chegarmos ao mais alto, quem será capaz de dizer o que são elas, ou quem poderá dizer que sequer vale a pena observá-las ou reflectir sobre elas?
Entretanto, não me preocupo muito com o governo, e quero dedicar a ele o menor número possível de reflexões. Mesmo no mundo tal como é agora, não passo muitos momentos sujeito a um governo. Se um homem é livre de pensamento, livre para fantasiar, livre de imaginação, de modo que aquilo que nunca é lhe parece ser na maior parte do tempo, governantes ou reformadores insensatos não são capazes de lhe criar impedimentos fatais. Sei que a maioria dos homens pensa de maneira diferente de mim; mas não estou nem um pouco mais satisfeito com os homens que se dedicam profissionalmente a estudar estas questões e outras parecidas. Pelo facto de se colocarem tão integralmente dentro da instituição, os homens de Estado e os legisladores nunca conseguem encará-la nua e cruamente. Eles gostam de falar sobre mudanças na sociedade, mas não têm um ponto de apoio situado fora dela. Pode ser que haja entre eles homens de certa experiência e critério e evidentemente capazes de criar sistemas engenhosos e até úteis, pelos quais lhes devemos gratidão; mas todo o seu génio e toda a sua utilidade não ultrapassam certos limites relativamente estreitos. Eles tendem a esquecer que o mundo não é governado através de decisões e conveniências. Webster nunca chega aos bastidores do governo e, por isso, não pode ser uma autoridade no assunto. As suas palavras são sábias apenas para os legisladores que não cogitam de qualquer reforma essencial no governo existente; para as exigências dos pensadores e dos que fazem leis duradouras, ele nem chega a visualizar o assunto. Conheço algumas pessoas cujas especulações serenas e sábias logo revelariam os limites do alcance e da hospitalidade da imaginação de Webster. Mesmo assim, quando comparadas com as paupérrimas declarações da maioria dos reformadores e com a mentalidade e a eloquência ainda piores dos políticos em geral, as suas palavras são praticamente as únicas que têm valor e revelam sensibilidade; devemos por isso agradecer ao céu por contarmos com Webster. Em termos comparativos, ele é sempre impetuoso, original e, acima de tudo, prático. Mas a sua virtude não é a sabedoria, e sim a prudência. A verdade de um jurista não é a Verdade, mas a consistência, ou uma conveniência consistente. A verdade está sempre em harmonia consigo mesma, e a sua importância principal não é a de revelar a justiça que porventura possa conviver com o mal. Webster bem merece o título pelo qual é conhecido: "Defensor da Constituição". De facto, ele não precisa atacar, mas apenas armar a defesa contra os golpes alheios. Ele não é um líder, e sim um seguidor. Os seus líderes são os constitucionalistas de 1787. Eis as suas próprias palavras: "Nunca tomei e nunca pretendo tomar uma iniciativa; nunca apoiei ou pretendo apoiar uma iniciativa – que vise desmanchar o acordo original pelo qual os diversos Estados formaram a União". Ao comentar a cobertura que a Constituição dá à escravidão, diz ele: "Já que é parte do pacto original, que continue a escravidão". Apesar da sua agudeza e habilidade especiais, ele não consegue isolar um facto das suas relações meramente políticas para contemplá-lo nos termos absolutos exigidos para o seu aproveitamento pelo intelecto – por exemplo, o que se impõe moralmente hoje em dia nos Estados Unidos no tocante a agir frente à escravidão; no entanto, ele arrisca-se ou é levado a formular uma resposta desesperada tal como a que se segue, e insiste que fala em termos absolutos, como um homem particular: "A forma pela qual os governos dos Estados onde existe escravidão decidem regulamentá-la é matéria da sua própria deliberação, pela qual são responsáveis perante os seus cidadãos, perante as leis gerais da propriedade, da humanidade e da justiça, e perante Deus. Quaisquer associações formadas em outro lugar, mesmo oriundas de um sentimento de compaixão humana, ou com qualquer outra origem, nada têm a ver com o assunto. Nunca lhes dei qualquer apoio, e nunca darei". Que novo e original código de obrigações sociais pode ser inferido de palavras como estas? (1)
Para os que não conhecem as fontes mais puras da verdade, que não querem subir mais pela sua correnteza, a opção – sábia – é interromper a sua busca na Bíblia e na Constituição; será aí que eles a sorverão, com reverência e humildade; mas para aqueles que conseguem perceber que a verdade vem mais de cima e alimenta esse lago ou aquele remanso, é preciso preparar de novo o corpo para continuar a peregrinação, até chegar à nascente.
Ainda não surgiu um homem dotado de génio para legislar no nosso país. Homens assim são raros na história mundial. Oradores, políticos e homens eloquentes existem aos milhares; mas ainda estamos por ouvir a voz do orador capaz de solucionar as complexas questões do dia-a-dia. Amamos a eloquência pelos seus méritos próprios, e não pela sua capacidade de pronunciar uma verdade qualquer, nem pela possibilidade de inspirar algum heroísmo. Os nossos legisladores ainda não aprenderam a distinguir o valor relativo do livre-comércio frente à liberdade, à união e à rectidão. Eles não têm génio ou talento nem para as questões relativamente simplórias dos impostos, das finanças, do comércio e da indústria, da agricultura. A América do Norte não conseguiria manter por muito tempo a sua posição entre as nações se fôssemos abandonados à esperteza palavrosa dos congressistas; felizmente contamos com a experiência madura e com os protestos efectivos do nosso povo. Talvez não tenha o direito de afirmar isto, mas o Novo Testamento foi escrito há mil e oitocentos anos; no entanto onde encontrar o legislador suficientemente sábio e prático para se aproveitar de tudo o que esse texto ensina sobre a ciência da legislação?
A autoridade do governo, mesmo do governo ao qual estou disposto a me submeter – pois obedecerei com satisfação aos que saibam e façam melhor do que eu e, sob certos aspectos, obedecerei até aos que não saibam nem façam as coisas tão bem -, é ainda impura; para ser inteiramente justa, ela precisa contar com a sanção e com o consentimento dos governados. Ele não pode ter sobre a minha pessoa e meus bens qualquer direito puro além do que eu lhe concedo. O progresso de uma monarquia absoluta para uma monarquia constitucional, e desta para uma democracia, é um progresso no sentido do verdadeiro respeito pelo indivíduo. Será que a democracia tal como a conhecemos é o último aperfeiçoamento possível em termos de construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente – do qual a organização política deriva o seu próprio poder e a sua própria autoridade – e até que o indivíduo venha a receber um tratamento correspondente. Fico imaginando, e com prazer, um Estado que possa enfim se dar ao luxo de ser justo com todos os homens e de tratar o indivíduo respeitosamente, como um vizinho; imagino um Estado que sequer consideraria um perigo à sua tranquilidade a existência de alguns poucos homens que vivessem à parte dele, sem nele se intrometerem nem serem por ele abrangidos, e que desempenhassem todos os deveres de vizinhos e de seres humanos. Um Estado que produzisse esta espécie de fruto, e que estivesse disposto a deixá-lo cair logo que amadurecesse, abriria caminho para um Estado ainda mais perfeito e glorioso; já fiquei a imaginar um Estado desses, mas nunca o encontrei em qualquer lugar.
Notas:
1 Inseri estes trechos do discurso de Webster depois de ter proferido a conferência. NOTA DO AUTOR