Idealizações (Augusto dos Anjos)
A Santos Neto
I
Em vão flameja, rubro, ígneo, sangrento
O sol, e, fulvos, aos astrais desígnios,
Raios flamejam e fuzilam, ígneos,
Nas chispas fulvas de um vulcão violento!
É tudo em vão! Atrás da luz dourada,
Negras, pompeiam (triste maldição!)
– Asas de corvo pelo coração…
– Crepúsculo fatal vindo do Nada!
Que importa o Sol! A Treva, a Sombra – eis tudo!
E no meu peito – condensada treva –
A sombra desce, e o meu pesar se eleva
E chora e sangra, mudo, mudo, mudo…
E há no meu peito – ocaso nunca visto,
Martirizado porque nunca dorme
As Sete Chagas dum martírio enorme,
E os Sete Passos que magoaram Cristo!
II
Agora dorme o astro de sangue e de ouro
Como um sultão cansado! As nuvens como
Odaliscas, da Noite ao negro assomo
Beijam-lhe o corpo ensangüentado d’ouro.
Legiões de névoas mortas e finadas
Como fragmentações d’ouro e basalto
Lembram guirlandas pompeando no Alto
Eterizadas, volaterizadas.
E a Noite emerge, santa e vitoriosa
Dentre um velarium de veludos. Astros,
Descem os nimbos… No ar há malabatros
Turiferando a negridão tediosa.
Além, dourado as névoas dos espaços,
Na majestade dum condor bendito,
Subindo à majestade do Infinito,
A Via-Láctea vai abrindo os braços!
Áureas estrelas, alvas, luminosas,
Trazem no peito o branco das manhãs
E dormem brancas como leviatãs
Sobre o oceano astral das nebulosas.
Eu amo a noite que este Sol arranca!
Namoro estrelas… Sírius me deslumbra,
Vésper me encanta, e eu beijo na penumbra
A imagem lirial da Noite Branca.
III
De novo, a Aurora, entre esplendores, há-de
Alva, se erguer, como tombou outrora,
E como a Aurora – o Sol – hóstia da Aurora,
Abençoada pela Eternidade!
E ei-lo de novo, ontem moribundo,
Hoje de novo, curvo ao seu destino,
Fantástico, ciclópico, assassino
Ébrio de fogo, dominando o mundo!
Mas de que serve o Sol, se triste em cada
Raio que tomba no marnel da terra,
Mais em meu peito uma ilusão se enterra,
Mais em minh’alma um desespero brada?!
De que serve, se, à luz áurea que dele
Emana e estua e se refrange e ferve,
A Mágoa ferve e estua, de que serve
Se é desespero e maldição todo ele?!
Pois, de que serve, se, aclarando os cerros
E engalanando os arvoredos gaios,
A alma se abate, como se esses raios
N’alma caindo, se tornassem ferros?!
IV
Poeta, em vão na luz do sol te inflamas,
E nessa luz queimas-te em vão! És todo
Pó, e hás de ser após as chamas, lodo,
Como Herculanum foi após as chamas.
Ah! Como tu, em lodo tudo acaba,
O leão, o tigre, o mastodonte, a lesma,
Tudo por fim há de acabar na mesma
Tênebra que hoje sobre ti desaba.
Ninguém se exime dessa lei imensa
Que, em plena e fulva reverberação,
Arrasta as almas pela Escuridão,
E arrasta os corações pela Descrença.
Ergue, pois, poeta, um pedestal de tanta
Treva e dor tanta, e num suprema e insano
E extraordinário e grande e sobre-humano
Esforço, sobe ao pedestal, e… canta!
Canta a Descrença que passou cortando
As tuas ilusões pelas raízes,
E em vez de chagas e de cicatrizes
Deixar, foi valas funerais deixando.
E foi deixando essas funéreas, frias,
Medonhas valas, onde, como abutres
Medonhos, de ossos, de ilusões te nutres,
Vives de cinzas e de ruinarias!
V
Agora é noite! E na estelar coorte,
Como recordação da festa diurna,
Geme a pungente orquestração noturna
E chora a fanfarra triunfal da Morte.
Então, a Lua que no céu se espalha,
Iluminando as serranias, banha
As serranias duma luz estranha,
Alva como um pedaço de mortalha!
Nessa música que a alma me ilumina
Tento esquecer as minhas próprias dores,
Canto, e minh’alma cobre-se de flores
– Fera rendida à música divina.
Harpas concertam! Brandas melodias
Plangem… Silêncio! Mas de novo as harpas
Reboam pelo mar, pelas escarpas,
Pelos rochedos, pelas penedias…
Eu amo a Noite que este Sol arranca!
Namoro estrelas… Sírius me deslumbra,
Vésper me encanta, e eu beijo na penumbra
A imagem lirial da Noite Branca!