A ideologia do sangue
Publicado em 18/04/99 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.
Quando falam as armas, cala a razão. Com a mesma exaltação que já acompanhara as bombas lançadas no Iraque, a opinião pública ocidental festeja o tiro ao alvo eletrônico na Sérvia, comandado à distância, como a “ultima ratio” da luta pelos direitos humanos, pela paz e pela liberdade. De um lado, como ouvimos repetidas vezes, está a “comunidade das nações democráticas”; de outro, um dos Estados terroristas mais patifes, com o seu ditador enraivecido à frente, a quem só mesmo uma saraivada de mísseis e bombas poderia impedir o massacre de civis inocentes. Se as armas democráticas, por seu turno, atingirem inocentes civis por engano, isso infelizmente fará parte dos riscos e custos inevitáveis de uma intervenção militar, que, embora não tenha sido legitimada dessa vez pela ONU, não seria uma guerra propriamente dita, mas somente uma espécie de operação de urgência.
Essa lógica, por mais arrevesada que seja, não deixa de especular, porém, com o fato de que não pode haver nem simpatia nem solidariedade com carniceiros do tipo de Saddam Hussein ou Slobodan Milosevic. A antiga esquerda e os pacifistas nos governos europeus, que agora saltitam de lá para cá ao lado dos Estados Unidos, na condição de democratas em uniforme verde-oliva, cacarejam que não há outra alternativa. Resta apenas uma perguntinha: de onde vêm, afinal, todos esses Estados patifes e ditadores desmiolados, que de súbito parecem povoar o mundo em número cada vez maior e, desde 1989, metem brutalmente o bedelho no consenso democrático?
Salta aos olhos que o mundo democrático do mercado ocidental não seja capaz de explicar racionalmente esse fenômeno nem sua responsabilidade na desgraça. Em vez disso, os Saddam Hussein e os Milosevic são mitologizados negativamente como encarnações de um mal externo e alheio, que paira acima da história. Nisso o Ocidente adota tintim por tintim o padrão intelectual maniqueísta dos fanáticos fundamentalistas, cujos efeitos devastadores ele diz combater. Essa notável identidade lógica da legitimação em ambos os lados aponta para um recalque de nexos históricos e econômicos essenciais, porque desvendá-los seria embaraçoso para a consciência ocidental.
Desde o princípio, a opinião pública ocidental esfumou o pano de fundo econômico da crise iugoslava. Segundo a voz corrente, era como se, depois da morte de Tito, o patriarca do Estado que servia de figura integradora, houvessem prorrompido instintos balcânicos atávicos das profundezas da história. Na verdade, a guerra civil iugoslava tem motivos fundamentalmente sociais e econômicos. A exemplo de inúmeras outras sociedades de modernização tardia no século 20, o modelo iugoslavo estava falido ao término dos anos 80, uma vez que o acirramento da concorrência no mercado mundial cortou-lhe a respiração. Crise e colapso seguiram o mesmo padrão de muitas economias nacionais que estertoravam na periferia capitalista. O estoque de capital, à falta de capital monetário, foi incapaz de armar-se para a terceira revolução industrial; com o aumento das importações, despencaram os preços de produtos exportados, o que fez explodir o endividamento externo.
O colapso da Iugoslávia foi encoberto historicamente pelo colapso da União Soviética. Sem se preocupar muito com diferenciações, o Ocidente interpretou a crise mundial dos anos 80, de modo redutor, como o fracasso do modelo marxista do socialismo de Estado a ele antagônico, cujo término faria luzir com tanto mais brilho a glória do capitalismo. Essa interpretação, que em suas linhas gerais tornou-se senso comum, contribuiu para reforçar o consenso neoliberal no mundo, embora seja marcada por uma ignorância boçal. O Ocidente não queria atinar com o fato de que o fim do suposto modelo antagônico era também o início do fim de um sistema de coordenadas político-econômicas comuns.
Há dez anos já se podia vislumbrar facilmente que o colapso desse modelo não era um resultado específico de uma ideologia marxista “falsa”, mas parte integrante de uma crise muito mais genérica do sistema global produtivo, creditício e monetário, que primeiro se abateu com toda virulência na periferia do mercado mundial. Não foram absolutamente apenas regimes de inspiração marxista cujos fundamentos econômicos começaram a ruir. Também Estados que contavam com a proteção do Ocidente no continente africano, na América Latina e em partes da Ásia experimentaram uma derrocada econômica semelhante.
Se o caráter universal da crise ainda pôde ser abafado por algum tempo pelo aparente sucesso dos tigres asiáticos e outros alunos exemplares do capitalismo nos “mercados emergentes”, o colapso inglório desse próprio modelo tão aclamado tornou definitivamente claro, desde 1997, que a percepção ocidental do fato histórico da crise sofria de uma distorção ideológica desde 1989, em razão de seu superficialismo. Constatou-se, nesse meio tempo, que as chamadas reformas de mercado em boa parte da Europa Oriental já conviviam com o fracasso. Só uma ignorância esclerosada ainda é capaz de recusar a visão de que o capitalismo e as relações globais de mercado não representam a solução, mas uma parte integrante do problema.
E justamente o caso iugoslavo foi o primeiro a tornar patente essa correlação. Isso porque a Iugoslávia afastou-se do bloco soviético logo depois da Segunda Guerra Mundial e recebeu em recompensa clamorosos aplausos do Ocidente. O elogio cresceu de tom quando, nos anos 70 e 80, a economia iugoslava submeteu-se a uma austera reforma econômica e o país foi até mesmo aceito pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Nesse sentido, o desastre econômico e social da Iugoslávia no final dos anos 80 representou, ironicamente, o caso exemplar do malogro das transformações econômicas de antigos países caracterizados pelo capitalismo estatal.
Porém a dimensão econômica desse caso mal foi notada, já que o colapso da economia nacional iugoslava assumiu a forma de conflitos étnicos com mais rapidez do que em outros lugares: primeiro, cindiram-se da liga de Estados iugoslavos, com auxílio ocidental (sobretudo alemão), as regiões setentrionais da Eslovênia e da Croácia, tradicionalmente mais desenvolvidas; depois rebentou na Bósnia a guerra civil entre sérvios, “muçulmanos” e croatas, enquanto em Kosovo grupos étnicos albaneses e sérvios encaravam-se com ódio cada vez mais aberto. A Sérvia, república com maior contingente populacional da ex-Iugoslávia, foi privada de importantes recursos industriais com as diversas secessões e teve de pagar o pato da crise econômica quase sozinha. Isso gerou um enorme rancor, que pôde ser insuflado sem esforço pelo nacionalismo sérvio de Milosevic.
O fracasso das reformas econômicas foram originalmente responsáveis pela eclosão dos excessos nacionalistas. Os Bálcãs, dessa perspectiva, há muito não são mais um caso isolado: em todos os cantos do mundo, as consequências catastróficas da ruína econômica são culpadas pelo fato de pessoas de convivência relativamente pacífica definirem-se como “etnias” ou comunidades religiosas antagônicas, entregando-se com voracidade à carnificina. Também na Indonésia, ainda há pouco a mimada criança prodígio da globalização capitalista, pessoas lançadas à pobreza desfilam com as cabeças de seus vizinhos dependuradas numa vara. Isso para não falar da Ruanda e de outras regiões varridas pela guerra civil. A história verdadeira de todas essas atrocidades ainda não foi escrita, pois sempre se trata de um “prolongamento da concorrência por outros meios”, sob as condições do colapso econômico.
O retorno de desavenças aparentemente arcaicas, sejam étnicas ou religiosas, segue com exatidão a lógica do mercado. As “vítimas” de repentinos surtos de crise buscam refúgio social e emocional numa comunidade de preceitos irracionais, que, ao mesmo tempo, volta-se com fúria para o “exterior”. Como não há nenhuma alternativa econômica e social, tem início um processo de anarquia da consciência de massas capitalista. O atrito de identidades étnicas e religiosas muitas vezes não é mais do que o pretexto para a formação de bandos armados, que fazem as vezes de uma “empresa comercial” na economia de pilhagem reinante. Esse, aliás, não é um motivo menor para que, também em Kosovo, as milícias sérvia e albanesa pilhem até as roupas de baixo de seus antigos vizinhos.
Mesmo a ideologia étnico-nacionalista, porém, não é tão arcaica quanto parece; antes, ela foi igualmente importada do glorioso Ocidente. O conceito burguês de nação, a exemplo do capitalismo, foi difundido para todo o mundo a partir da Europa e impingido a outras relações sociais. Em várias regiões do mundo, a construção sintética de nações plantou bombas-relógio que sempre explodem em situações de crise. Isso se aplica sobretudo para a variante de formação do Estado-nação de origem alemã. Enquanto os países anglo-saxões e a França haviam definido a nação capitalista nascente em termos puramente políticos (quem nasceu na França ou é assimilado à comunidade política francesa ou é francês), na Alemanha, historicamente atrasada, desenvolveu-se uma ideologia paralela, na qual a nação aparece como entidade exclusivamente étnico-cultural.
Essa idéia “étnica”, concebida pelos filósofos Johann Gottfried Herder (1744-1803) e Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), reduziu contextos culturais ao conceito abstrato e irracional da nação moderna, que nessa forma, à semelhança do conceito liberal-ocidental, serviu a uma ideologização da concorrência capitalista incipiente e, no curso do século 19, foi enriquecido com elementos de racismo biológico. Nisso ela se cruza com a ideologia ocidental e anglo-saxã, já que o próprio patriarca do liberalismo, Thomas Hobbes (1588-1679), explicara a concorrência de todos contra todos como a essência “natural” de toda pessoa. O darwinismo social do século 19, generalizado no meio liberal, perpetuou essas relações sociais e fundiu-se, na Alemanha, com o conceito nacional “étnico” de Herder e Fichte. A nação alemã foi definida, assim, como uma comunidade de ascendência biológica e étnico-cultural, uma idéia que, no fascismo, cometeu seus mais sombrios excessos com o Holocausto e a matança de “gente indigna da vida”.
Nos Bálcãs e em boa parte da Europa Oriental, a classe dos modernizadores intelectuais burgueses adotou, desde o final do século 19, o conceito germânico e étnico de nação. Em vista do fato de que ali a população reunira-se sem nenhuma homogeneidade e, segundo os critérios “étnicos”, num espaço reduzido, com a adoção da “ideologia alemã” foi inoculado o germe de uma catástrofe humanitária: gente de diversas religiões (muçulmanos, ortodoxos e católicos), línguas e proveniências (albaneses, sérvios, croatas), que por muito tempo haviam convivido pacificamente, foram definidos de repente como nações de “raças” diversas, que assim passaram a disputar palmo a palmo o território comum. As atrocidades atuais da “limpeza étnica” remontam a essa história. E a ideologia que lhe serve de base não é um arcaísmo balcânico, mas um fruto envenenado da própria árvore da história de modernização ocidental.
Sobretudo a Alemanha, que em nome dos direitos humanos agora também lança suas bombas com valentia, confronta-se duplamente consigo mesma nos Bálcãs. De um lado, lá ainda paira o espectro da ideologia “étnica” da história alemã, ao mesmo tempo em que ressurgem as lembranças da agressão fascista na Segunda Guerra Mundial. De outro, a nação alemã, a exemplo das nações catastróficas dos Bálcãs, ainda hoje é definida como uma comunidade de ascendência “étnica”: o direito alemão em vigor concede automaticamente a cidadania a pessoas que não falam uma palavra de alemão e cujos antepassados mudaram-se do país a séculos, porque em suas veias supostamente corre “sangue alemão”. O mesmo “direito de sangue” discrimina política e juridicamente milhões de pessoas de outras ascendências, que nasceram na Alemanha ou ali vivem há décadas.
E ainda há pouco o novo governo verde-vermelho fracassou em reformar, aliás de forma inconsequente, esse direito de cidadania “pelo sangue”, pois os conservadores puseram a boca no mundo e lograram mobilizar uma parcela considerável da população alemã, de maneira quase “balcânica”. Essa forma política e jurídica de “apartheid étnico”, num centro capitalista e no contexto da “Fortaleza Europa”, diferencia-se apenas em grau do mesmo processo numa sociedade em colapso; e pode-se fazer idéia do que ocorreria na Alemanha se, numa inflação de 27.000%, os salários deixassem de ser pagos durante meses.
Com seu bombardeio contra a Sérvia, no entanto, o Ocidente deixou de merecer qualquer crédito também por outras razões. De um lado, trata-se formalmente de um precedente arriscado: sem mandado da ONU, a Otan (aliança militar ocidental) intervém e faz justiça com as próprias mãos. O reconhecimento mútuo da “integridade territorial” dos Estados-leviatã capitalistas, obtido a custo depois da Segunda Grande Guerra e sedimentado no direito internacional, virou letra morta; as portas das relações internacionais abriram-se de par em par à selvageria. De outro lado, a fundamentação humanitária para a intervenção é até agora moralmente ilegítima, uma vez que, ali perto, a Turquia, membro da Otan, tem carta branca para perpetrar contra a minoria curda massacres da magnitude de Kosovo e, ainda por cima, receber armas do Ocidente para tanto. É evidente que há carniceiros “bons” e “maus”, conforme permitam ou não a instalação de bases aéreas norte-americanas em seu território.
O objetivo estratégico da Otan, contudo, permanece obscuro. Afinal, o Ocidente detém a hegemonia mundial, de uma forma ou de outra; só que talvez ele não saiba mais o que fazer com esse mundo arruinado. As instituições criadas na Guerra Fria vagueiam em busca de um inimigo e incubam planos patológicos, que só tornam as coisas ainda piores. A “comunidade das nações democráticas”, deslocada pela dinâmica própria do complexo militar e industrial, só pode lutar com os espectros sangrentos que são seu produto mais autêntico.