O tédio mortal da modernidade

O tédio mortal da modernidade

(Robert Kurz)


Publicado em 27/11/99 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.





Será que ainda pode haver objetivos culturais para o século 21? Apesar da crise social do globo, ou talvez justamente por causa dela, não se trata mais, nesta virada do século, da conquista de novos horizontes. O poço de desejos da infindável modernização, é bem verdade, continua a receber suas moedinhas, mas pouquíssimos são os que ainda lhe dão crédito. Para começar algo novo, necessário seria proceder a um apaixonado debate sobre os projetos sociais a que se aspira. Mas as paixões sociais, políticas e culturais parecem extintas, os discursos da mídia arrastam-se a custo, pasmacentos. Nem no trato social nem na relação com a natureza são formulados novos desafios. A idéia de uma grande “tarefa para a humanidade” soa não só antiquada, mas também ingênua e até fora de cabimento.

O que hoje se louva como novo e promissor não é mais um conteúdo ou um fim qualquer, mas a simples forma ou o simples meio, o aparato despido de todo espírito. A Internet é o melhor exemplo para tanto. Quanto mais rapidamente evolui a tecnologia da comunicação, menos conteúdo há que valha a pena ser transmitido. Se o meio tecnológico rouba a posição ao conteúdo, a própria “razão instrumental” conduz ao absurdo. No estágio final desse processo, seres humanos munidos de perfeitos meios de comunicação nada mais terão a dizer.

Essa ilimitada falta de conteúdo e objetivo anuncia o esgotamento intelectual e cultural do sistema social dominante. Tal como o homem só pode se constituir como indivíduo dentro da sociedade, como indivíduo ele só pode cultivar conteúdos e objetivos sociais. O indivíduo voltado exclusivamente a si mesmo é por força vazio, incapaz de forjar conteúdos próprios; seus projetos se esvaem na trivialidade fútil. No fim do século 20 a modernidade mergulhou num tédio mortal.

Nesse sentido, no próprio aspecto cultural a microeconomia extremista, a atomização social e a perda de solidariedade já tiraram sua desforra do capitalismo -porque se apartam umas das outras, as mônadas sociais já não logram se impor objetivos comunitários, e porque já não têm uma relação de conteúdo entre si, apartam-se cada vez mais umas das outras. Uma sociedade incapaz de desafios comuns, todavia, está condenada ao definhamento.

Para poder formular um objetivo, um projeto comunitário, urgente é um “rumo” cultural, uma orientação espácio-temporal da sociedade. Essa orientação não repousa só na técnica ou na economia, mas também na psique social, na imaginação comunitária, na relação entre os sexos e na “autoconsciência”, para não falar na relação com a história. Claro que o capitalismo moderno possui também um tal rumo simbólico-cultural. Mas, como sistema mundial que chegou a seus limites, agora ele já não consegue mais entrever objetivo nenhum e perde assim toda a orientação no espaço e no tempo. A tarefa -propagada sem trégua por toda a mídia- de se conformar ao processo cego do mercado mundial não representa um objetivo substancial de reconfiguração ativa, um “projeto humano” positivo; antes é a mera apropriação mecânica de uma estrutura que há tempos se fez independente, que a priori converte todo o conteúdo e assim todo o objetivo ou projeto ao status da indiferença. Seja lá o que for, nada goza de sentido autônomo, antes só fornece pasto ao imutável processo de valorização do capital.

Que a chamada pós-modernidade, nesse ponto decisivo, não haja superado a modernidade nem criado nada de novo já se revela na falta de conteúdo de seu próprio conceito, que só remete a um “futuro” vazio. A pós-modernidade, além de não fornecer nenhuma orientação cultural, erige a falta de orientação em virtude. O sistema produtor de mercadorias, petrificado numa pressa sem alvo, tem de sobreviver a seu estado de esgotamento cultural a fim de seguir rodando por inércia, eternidade afora. A teoria pós-moderna é de certa maneira a caricatura de um guia, na medida em que aponta em todas as direções ao mesmo tempo, sem fixar nenhum sentido.

É fácil ver que a nova orientação simbólico-cultural e os novos objetivos culturais só podem ser plasmados pela crítica radical da ordem social esgotada; e a crítica radical é justamente o que a pós-modernidade descarta como impensável. Ora, a crítica socialista da sociedade, com o seu objeto, só se esgotou, de fato, porque ela própria era a quintessência do capitalismo. Por constituir o capitalismo estatal do Leste um mero subproduto do capitalismo privado do Ocidente, com este também repartiu a sua imaginação cultural e o seu código simbólico. A crítica social dos séculos 19 e 20 se deteve no limiar do moderno sistema produtor de mercadorias; ela própria era uma herdeira da “razão instrumental”, pela qual acabou sendo presa e engolida.

Se uma nova orientação cultural só há de ser obtida mediante uma crítica radical da sociedade, o inverso é, portanto, igualmente válido: que uma tal crítica da ordem reinante no século 21 só pode ser formulada a par de uma codificação simbólica essencialmente diversa do sentimento espácio-temporal. Quem quiser romper o “terror da economia” deve também infringir com plena consciência o código simbólico do capitalismo; a crítica da economia política só pode ser levada a cabo se for acompanhada de uma crítica da ordem simbólica e do rumo cultural inerente a este sistema, ou seja, se desviar a atenção e as esperanças para outra direção e sobretudo revolucionar a “imagem do mundo”.

Até agora tal problema foi tão pouco tematizado, com fundamento e abrangência, quanto a crítica das categorias econômicas; é por isso que a esquerda se encontra outra vez na defensiva, embora o esgotamento do mundo capitalista salte à luz com nitidez tanto maior. Em que consiste, enfim, a orientação cultural agora obsoleta do capitalismo? No eixo temporal, ela é sem dúvida uma dinâmica voltada unilateralmente para o futuro. A modernização é sinônimo de depreciação permanente do passado, da história. “O novo”, a moda, o desenvolvimento econômico infindo, a perpétua mobilidade como um valor em si mesmo vigoram independentemente de sua qualidade. O conceito moderno de história, tal como a filosofia do iluminismo o forjou, é determinado por esse código, no qual a humanidade aparece de certo modo como um foguete em vôo que percorre sua órbita num movimento histórico ascendente, mecânico. Nessa inquietude vã, o passado surge apenas como restos calcinados do presente, e o presente, como restos do futuro.

A suposta imagem reacionária antagônica, a de uma idealização imaginária do passado, não é mais que a outra face da mesma moeda. Nela não se apreende o valor próprio das culturas passadas nem o aspecto destrutivo da dinâmica capitalista; antes é sempre mistificada, projetada no passado, a relação capitalista de domínio impessoal. É seu próprio passado que o capitalismo idealiza nas modernas ideologias conservadoras e reacionárias, com a intenção de banir as consequências catastróficas de sua dinâmica cega e reprimir seus antagonismos sociais internos. Quanto a essa idealização, trata-se na verdade de um modo diverso de depreciar a história. Pessimismo cultural reacionário e ideologia liberal progressista representam os dois pólos culturais do mesmo repúdio capitalista à história, que aliás são intercambiáveis: o pensamento fascista contém ambos os aspectos em igual dosagem.

Na pós-modernidade, essa polaridade de “progresso” e “reação” imanente ao capitalismo caiu por terra, o que de bom grado se festeja como a superação do antagonismo entre “esquerda” e “direita”, mas que, na verdade, ao lado do esgotamento cultural, anuncia também o esgotamento político e ideológico do capitalismo. O “progresso” burguês caiu num movimento circular, vazio de sentido, com o que se identificou a “reação”. A depreciação do passado só ocorre agora de uma única e mesma maneira, transformando também a história, as culturas, as idéias e as relações passadas em mercadorias que podem ser consumidas -supõe-se- a bel-prazer.

Uma tal contemporaneidade calculada, que embebe todo o espaço da história humana na luz fria do mercado e suprime todas as diferenciações quanto mais se fala de “diferença”, empresta à cultura comercial pós-moderna uma semelhança aflitiva com a ação de macacos que brincassem numa biblioteca e, aos guinchos, fizessem uma embrulhada com os livros.

Uma nova orientação da cultura, ligada à crítica radical do capitalismo, só pode consistir em dar um basta à permanente depreciação da história, não no sentido da idealização de um passado qualquer, nem como seu consumo, mas como busca crítica dos rastros que o capitalismo apagou sistematicamente. Trata-se de dar a conhecer a história do disciplinamento moderno e do amestramento humano, a transformação da vida em repositório de imperativos econômicos, a fim de pôr em xeque a aparente naturalidade desse modo de vida. Hoje, ao serem questionados sobre os seus deslizes passados e as respectivas causas, qualquer empresário, político ou jogador de futebol responde sempre com a frase estereotipada: “O que passou passou”. A inversão dessa perspectiva seria, de certa forma, uma “crítica do capitalismo voltada para trás”, uma orientação simbólica com a retrospectiva crítica como norte, uma recusa da lei capitalista do movimento, um “tiro no relógio” (Walter Benjamin).

Para conquistar um outro futuro, o passado soterrado é paradoxalmente mais importante que o futuro esvaziado. O progresso emancipatório só pode ser salvo caso o pensamento crítico se emancipe do código simbólico da filosofia iluminista burguesa, isto é, de um conceito de história que implique uma orientação futura permanente, “automática”, guiada pela “mão invisível” da economia. Hoje é progressista estacar o passo e voltar-se para trás, a fim de olhar em retrospecto as ruínas da modernidade. Trata-se, portanto, de uma nova compreensão da história, uma vira-volta da imagem histórica mundial. A sociedade só pode voltar a si quando nutrir certa paixão por uma arqueologia radicalmente crítica da modernidade esgotada.

Uma tal inversão de perspectiva traria também consequências para a orientação psíquica. Isso porque a guinada crítico-emancipatória para trás, a fim de assegurar-se no passado, significa ainda uma mudança na relação simbólico-cultural entre “interior” e “exterior”. No capitalismo, o ser humano é “guiado externamente” pelos critérios do prestígio e da bela aparência, tal como são sugeridos pela publicidade, pelas embalagens, pela autopromoção.

Também nesse particular, entretanto, a inversão do rumo cultural não favoreceria o reverso reacionário da medalha, uma mistificadora “vida íntima” ou uma “contemplação esotérica” apta a se refugiar num imaginário “eu”, ao abrigo das contradições sociais. Ao contrário, a “introspecção” emancipatória consistiria em revelar a história recalcada e a falsa objetivação das coerções capitalistas também na psique e na linguagem de certa forma, como uma “arqueologia íntima” da modernização, tanto no plano pessoal quanto no sociopsicológico, a fim de tornar patente o processo da “introspecção” psíquica dessas coerções. A psicanálise, que os precipitados diziam morta, e a crítica linguística feminista encerram inesgotáveis possibilidades para tal recodificação.

Finalmente, a própria orientação no espaço dessa radical mudança simbólico-cultural de paradigma não pode passar em brancas nuvens. Tal como a dinâmica capitalista é temporalmente cega ao futuro, espacialmente ela é orientada “para cima”. Já na virada do século passado, o poeta futurista Marinetti desejaria que o automóvel decolasse como um foguete; e poucas décadas mais tarde um homem pousou, de fato, na Lua. Que essa imaginação “alteada” do capitalismo se defina por padrões masculinos já se revela, tocando as raias do ridículo, no próprio formato do foguete como símbolo do falo. A orientação pelo espaço aéreo e sideral, que não por acaso se funde com traços militares, contém a imagem de uma sexualidade masculina que de certo modo “alçou vôo”.

Mas também esse código simbólico há muito se esgotou. A viagem espacial tornou-se tão monótona quanto o futuro vazio do mercado. Nos planetas em alça de mira só se acham desertos físico-químicos. E mesmo sua exploração capitalista como fonte de recursos permanece ilusória, pois os custos de transporte sorveriam as cifras estratosféricas do possível butim. A tecnologia de combustíveis fósseis em que se baseia o modo de produção capitalista é primitiva demais para uma “aurora no espaço”. O cabo Canaveral e Baikonur são hoje ruínas da civilização masculina orientada pela produção de mercadorias, apenas ainda não se deram conta disso.

Uma radical recodificação simbólica da relação com o espaço trará a vista “para baixo” (pois não é só no sentido arqueológico que nossa história se encontra sob nossos pés), com vistas a desafios e exigências tecnológicas da reprodução social. Além do interior da Terra, boa parte da superfície terrestre ainda resta inexplorada, sejam o subsolo ou as profundezas oceânicas. Que o dispêndio de recursos e de aptidões para um tal propósito seja mínimo em comparação às viagens aéreas e espaciais revela a profunda dependência do desenvolvimento técnico-científico por códigos simbólicos obsoletos do capitalismo. Se o ser humano é um ente cultural, terá ele de buscar uma nova orientação cultural no espaço, no tempo e na psique; e, no século 21, talvez essa guinada revolucione tanto a sociedade quanto a crise social e econômica.

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